O concurso para a construção do primeiro troço da Linha de Alta Velocidade (LAV) entre Lisboa e Porto já está na fase de análise de propostas. É um processo sem retorno?
Sem retorno e que só peca por tardio. A alta velocidade já devia estar a começar a funcionar. Em condições normais, teria sido lançada, o mais tardar, em 2015. Mas o que se passou no País entre 2011 e 2015 [troika] parou o investimento público.
Concorda com a prioridade dada à ligação Lisboa-Porto em detrimento de Lisboa-Madrid?
Tal como as coisas estão, sim. A actual ligação ferroviária Lisboa-Porto está em ruptura. A linha do Norte, o itinerário principal ferroviário do País, onde entroncam outras linhas, tem a sua capacidade ocupada entre 90% a 120%, consoante os troços, com um acumulado de mais de 700 comboios por dia, de diferentes tipologias. Uns que, em alguns troços, andam a 220 quilómetros por hora, à mistura com os de mercadorias e os regionais, que páram em todo o lado. É uma situação semelhante à da EN1 nos anos 80 e 90, em que era a única ligação rodoviária entre Lisboa e Porto. Hoje, temos duas auto-estradas paralelas, mas até 1990 só havia a EN1, que passava no meio das povoações e que tinha tráfego de longo curso e local. É o que se passa hoje com o nosso principal itinerário ferroviário, que não tem capacidade de resposta. Daí, a premência de uma linha para onde possam ser desviados os serviços rápidos de passageiros e que faça parte da rede transeuropeia, dando continuidade ao eixo atlântico que vem da Corunha, de Santiago Compostela e de Vigo, em direcção a Sul.
O projecto da alta velocidade pode ser um catalisador para, finalmente, termos uma verdadeira rede ferroviária no País?
Sem dúvida, porque vai permitir acelerar as relações entre linhas. Ir de Lisboa ao Porto em 1:20 hora, significa menos de duas horas para ir de Lisboa a Braga, menos de três horas entre Lisboa e Guarda ou 2:30 horas para fazer Lisboa-Régua, mesmo que não haja uma intervenção profunda nessas linhas. Outro exemplo, Lisboa e Figueira da Foz ficarão a menos de duas horas, porque Leiria vai ser um centro distribuidor ferroviário através da Linha do Oeste. Haverá uma revolução muito grande na relação distância/tempo. O território encolhe e isso terá impactos a nível do mercado de trabalho, porque as empresas vão poder recrutar longe do local onde estão sediadas, e do imobiliário. As pessoas passarão a poder viver a dezenas de quilómetros do local de trabalho e ir e vir todos os dias. Os impactos também se farão sentir no turismo. Leiria ficará a 40 minutos de Lisboa e a pouco de mais do Porto e, através da Linha do Oeste, vai distribuir para a Figueira da Foz, Caldas da Rainha e Torres Vedras.
A LAV vai alterar o papel de Leiria no território?
Completamente. Ainda mais pelo facto de ter um tecido empresarial muito diversificado. Coimbra também beneficiará da alta velocidade, mas é, sobretudo, um centro de serviços, com a Universidade, o Politécnico e o hospital. Leiria tem muito mais, porque conta com um forte tecido empresarial e industrial.
A construção de uma nova estação na Barosa, para servir a alta velocidade, em detrimento da manutenção da actual estrutura, é a solução que melhor serve à região?
Independentemente da opção, o mais importante é haver articulação entre a LAV e a Linha do Oeste. As duas soluções – nova estação na Barosa ou actual estação – são equivalentes em termos de qualidade e de valia. A opção Barosa permite criar uma nova centralidade entre Leiria e Marinha Grande, o que implica um conjunto de instrumentos de ordenamento do território, particularmente, de planeamento urbano, que devem ser acautelados. A solução pela actual estação implicaria uma variante da LAV para ligar à Linha do Oeste, mas em termos urbanísticos e de transformação dos solos não seria tão complexa, na medida em que íamos usar uma estação e uma valência que já existia. Por outro lado, a opção Barosa permite poupar dinheiro, porque não há necessidade de fazer uma variante da alta velocidade. Tenho dificuldade em indicar a melhor opção. O importante é que haja interface entre as duas linhas e que se evite que a distribuição das viagens da alta velocidade se faça por estrada.
A construção da estação na Barosa implicará a desactivação de alguns quilómetros da Linha do Oeste. Que tipo de uso pode ser dado a esse troço?
A plataforma que ficar livre poderá ser usada para um eléctrico inter-urbano, que pudesse até interagir com a própria Linha do Oeste e estender-se ao núcleo urbano da cidade de Leiria.
Faz sentido criar também um metro de superfície a ligar Leiria e Marinha Grande?
Se houver capacidade de idealizar na Barosa um grande interface distribuidor dentro da região de Leiria e da Marinha Grande, diria que ter um metro de superfície, distribuidor da alta velocidade e da Linha do Oeste, seria virtuoso e benéfico. Mas, antes de tudo, temos de pensar como reestruturar todas as relações funcionais à volta de Leiria. E isso vai muito para além da própria Marinha Grande. Abrange também o acesso a Caldas da Rainha, Valado de Frades, Nazaré e até a Torres Vedras. Temos de pensar Leiria, não como um município, mas como o fulcro de uma região muito ampla.
Por que razão considera que o facto de alta velocidade ser em bitola ibérica e não europeia “é um falso problema?
Estamos a falar de uma linha para passageiros, que será construída com travessa de dupla furação, tal como a LAV que liga Ourense e Santiago de Compostela, que é de via larga, mas que está preparada para migrar, quando necessário, para o padrão europeu. Em Espanha, nos sítios de contacto com a rede convencional, que é a nossa bitola ibérica, existem aparelhos de mudança automática de bitola, que permitem que o material ferroviário passe de umas linhas para as outras sem parar. Indo de Madrid para Vigo, vamos na alta velocidade até perto de Ourense, onde existe um desses aparelhos e, partir daí, entramos na linha convencional.
Em matéria de transportes qual foi o pecado capital que o País cometeu nas últimas décadas?
Foi, sem dúvida, o abandono do caminho de ferro. Só agora, tarde e a más horas, se pretende voltar à ferrovia. Com a entrada na União Europeia, a estratégia foi desactivar linhas férreas e construir auto-estradas. Algumas dessas rodovias eram efectivamente necessárias e são incontestáveis, pela sua utilidade e pela funcionalidade que trazem ao território. Outras, não deviam existir, mas construiram-se ao abrigo de parcerias público-privadas, que são ruinosas para os contribuintes, porque não têm tráfego. Estou a lembrar-me da A13, entre Tomar e Condeixa, e da A19, que liga Leiria, Batalha e Porto de Mós, que só sobrevivem porque têm rendas garantidas pelos contribuintes. Em termos de racionalidade económica nunca deviam ter sido construídas.
Por falar em racionalidade, sobretudo ambiental, que sentido faz ter uma ligação aérea entre Lisboa e Porto?
Nenhum. A ligação aérea entre Lisboa e Porto é uma aberração, que já devia ter sido eliminada. O mesmo é válido para a ponte aérea Lisboa-Faro. São aberrações em termos de emissões e de ocupação de espaço aéreo. A ligação aérea Lisboa-Porto está a tirar capacidade ao aeroporto Humberto Delgado. Neste intervalo de tempo até termos um novo aeroporto, que vai ser longo, essas ligações são slots [vaga] do aeroporto que estão a fazer falta para voos de longo curso. O aeroporto Sá Carneiro está a funcionar como uma espécie de satélite do Humberto Delgado, com uma ponte aérea completamente absurda.
Concorda com decisão de construir o novo aeroporto no Campo de Tiro de Alcochete?
Francamente não sei, mas, como a maior parte dos portugueses, estou tão saturado com esta história que já aceito a decisão, não como a melhor, mas como a menos má. Contrariamente a um aeroporto a norte do Tejo, fosse em Torres Novas/Santarém ou na Ota, Alcochete fica fora dos grandes itinerários e aglomerados urbanos
Pode ser a oportunidade para criar uma nova centralidade?
É verdade, mas para isso temos de construir todo um conjunto de vias de comunicação e de acessibilidades, incluindo uma ponte entre Chelas e o Barreiro, com 13 quilómetros e mista, ou seja, ferroviária e rodoviária. Quando a presidente da Comissão Técnica Independente diz que até 2030 podemos ter uma pista construída e a funcionar em Alcochete, estamos a ouvir coisas de quem não conhece a realidade. Não é para levar a sério.
A região Centro bateu-se por Santarém. Seria melhor?
Teria logo a vantagem de, em termos de acessibilidades, ser implementada mais facilmente. No Campo de Tiro de Alcochete podem criar-se seis a oito pistas paralelas. Poderá vir a ser um aeroporto duas vezes maior do que o de Heathrow, em Londres. O problema é como é que se chega lá. No processo de escolha, deu-se pouca importância à questão das acessibilidades, quando devia ser a primeira de todas. São as acessibilidades que, depois, definem a área de influência de uma grande infra-estrutura como um aeroporto. Ora, se aquilo é metido num local fora dos grandes eixos, evidentemente que é necessário infra-estruturas novas. Só a ponte Chelas-Barreiro custará perto de 2.500 milhões de euros. É também necessário construir vias férreas e ramais rodoviários. As abordagens estritamente sectoriais são uma das pechas da chamada elite a quem se entregam estes estudos e estas comissões, que esbarram depois com a realidade. A correr tudo bem só termos o novo aeroporto daqui a 15 ou 20 anos. Até lá, a alta velocidade vai suprimir aberrações como a ponte aérea Lisboa-Porto e, posteriormente, os 30 aviões por dia que temos para Madrid. Quando estiverem muito atrapalhados, terão de recorrer a redundâncias que hoje desprezam, como o aeroporto de Beja. Este processo é o espelho da forma como funciona o País. O planeamento em Portugal é muito na base da estratégia do ‘logo se vê’. E isso explica muito do atraso que ainda temos.
Percurso
Geógrafo com paixão pelos transportes
Natural de Lisboa, Manuel Tão é investigador auxiliar na Universidade do Algarve. Licenciou-se em Geografia e Planeamento Regional pela Universidade Nova de Lisboa, e doutorou-se em Economia dos Transportes pela Universidade de Leeds, no Reino Unido. “A formação de geógrafo confere uma vantagem sem par a quem a acumula com a formação em transportes, tanto numa perspectiva técnica como económica”, explicou numa entrevista publicada no site da Associação Portuguesa de Geógrafos. Especialista em transportes, tem emitido pareceres sobre vários Planos de Ordenamento Regional.