A Comissão Comemorativa dos 50 anos do 25 de Abril apresentou, na semana passada, o programa para 2024. O que destaca?
Um dos aspectos interessantes destas comemorações é o seu arco temporal lato. Ainda que 2024 seja necessariamente um ano especial, as comemorações iniciaram-se em 2022 e só vão terminar em 2026. No primeiro período, até Setembro de 2023, a ideia foi recordar e recuperar a acção de todos aqueles que contribuíram para o derrube da ditadura: o movimento estudantil e dos trabalhadores, os sindicatos, e, necessariamente, a acção das oposições. A partir de Setembro, começámos a centrar o nosso foco no movimento das Forças Armadas. Em 2024, a grande temática é, necessariamente, o derrube da ditadura, protagonizada pelos militares, mas também por muitos outros que fizeram possível a mudança que o País sofreu. Celebraremos o fim ditadura e a conquista da liberdade e iremos acompanhar os primeiros passos depois do 25 de Abril.
E para 2025 o que têm previsto?
As primeiras eleições livres, realizadas a 25 de Abril de 1975, serão o tema central. Foram as mais participadas da história da democracia portuguesa. Noventa e dois por centro das pessoas votaram. Isto não foi simples. Exigiu, por exemplo, a actualização dos cadernos eleitorais. O recenseamento eleitoral foi um processo épico. No último ano, o de 2026, iremos celebrar os 50 anos da nossa Constituição e todo o ciclo eleitoral desencadeado a partir daí, com eleições legislativas, presidenciais, nas regiões autónomas e, a 12 de Dezembro de 1975, as eleições autárquicas.
As comemorações começaram há um ano e vão prolongar-se até 2026. O que mais a tem surpreendido?
A primeira grande surpresa é a enorme mobilização e a vontade de todas as instituições, desde autarquias e escolas até às mais pequenas associações, em celebrar os 50 anos do 25 de Abril, com inúmeras actividades. O País está verdadeiramente a pulsar com estas comemorações. A comissão tem-se associado a muitas iniciativas e promovido muitas outras. Só no ano passado, tivemos mais de 90 iniciativas próprias, desde exposições, conferências, produção de dossiers temáticos disponibilizados no nosso site e que são utilizados em escolas e noutras situações, e promoção de espectáculos. Fizemos também o lançamento de várias linhas concursais. Uma delas dedicada às artes nas suas mais diferentes dimensões, que já aprovou 45 projectos, com um financiamento total de um milhão de euros, para a concepção dessas peças de teatro, espectáculos e exposições, que vão celebrar Abril por todo o País. Está também em curso uma linha de financiamento semelhante, com o Instituto de Apoio ao Cinema, dedicada à produção audiovisual. Temos ainda um concurso específico para projectos académicos e educativos e, em breve, abrirá outro para escrita criativa.
Os jovens têm sido um dos grandes focos da programação e da actividade desta Comissão. Como tem sido a adesão deste público?
Temos tido iniciativas específicas dirigidas aos jovens, com bons resultados. É disso exemplo a campanha #não podias, que recordou algumas das múltiplas proibições que existiam até ao 25 de Abril de 74 e que teve um grande sucesso, quer nas redes sociais, quer em iniciativas que os próprios jovens dinamizaram, por exemplo, imprimindo os postais que estavam no nosso site e fazendo exposições e debates em torno dessas proibições. Esta adesão é reveladora do gosto, do interesse e do desejo dos jovens em conhecer mais sobre a história do seu País. As escolas têm feito um trabalho fantástico, muitas vezes contornando problemas básicos de recursos, para poder explicar e dar a conhecer, não só o que ficou para trás, como as portas que Abril abriu.
Há a ideia de que os jovens não se interessam por conhecer a nossa história. É essa a percepção que tem?
Sou professora há 26 anos e o que constato é que, quando se fala do 25 de Abril, o interesse dos jovens é generalizado. Sempre que proponho a realização de trabalhos, que envolvam, por exemplo, a recolha de testemunhos ou a observação de monumentos que evocam a ditadura e o 25 de Abril, há uma enorme adesão dos jovens. Existe nos mais novos uma enorme vontade de conhecer a nossa História.
A comissão escolheu como mote “Multiplicar a liberdade, afirmar a democracia”, frase em destaque no seu site oficial. Por quê? São valores em perda?
A frase remete-nos para o ponto de partida, ou seja, os afortunados que somos pelo 25 de Abril, pela sua mensagem e pelos seus valores, que são universais e intemporais. Se há 50 anos os portugueses conquistaram a liberdade e a democracia nas ruas, numa luta directa com o envolvimento de toda a sociedade, também hoje o podemos fazer. O apelo a preservar, cuidar e fomentar valores tão importantes para todos, como a liberdade e a democracia, mantém-se actual e devemos mobilizar-nos em torno deles.
De que forma o podemos fazer?
A demonstração de envolvimento e da mobilização que temos tido em torno das comemorações são um bom prenúncio de como os portugueses se querem envolver e participar mais activamente na construção do País. A democracia e a liberdade são valores e conquistas pelas quais temos de continuar a trabalhar. Não podemos dar estas conquistas como adquiridas.
O crescimento do extremismo e do populismo, não só em Portugal, mas também na Europa e no mundo, faz perigar essas conquistas?
Durante muito tempo, quando este fenómeno começou, não só em Portugal, mas, sobretudo, em termos europeus, senti-me relativamente tranquila. Pensava que o nosso passado de 50 anos de ditadura, e uma ditadura com as características que a portuguesa teve, nos salvaguardava de uma possibilidade de regresso a tempos tão escuros. A verdade é que, quer a situação internacional, quer nacional, obriga-nos a não baixar a guarda, a estarmos atentos e a trabalhar para que essa ditadura não possa regressar.
Dos valores de Abril, qual aquele que menos se cumpriu?
De forma geral, os ideais de Abril cumpriram-se, mas é preciso continuar a cumpri-los e a trabalhar para que se cumpram todos os dias. É muito bom que exista insatisfação e que queiramos ir mais longe nas conquistas que foram alcançadas.
A sociedade portuguesa já está reconciliada com o seu passado ditatorial?
As sondagens que, periodicamente, são levadas a cabo, transmitem a imagem de que Portugal é um País que está reconciliado com o seu passado. É uma percepção muito diferente do que se passa em Espanha, onde a conquista e a transição para a democracia foi feita em moldes muito diferentes. Isto não invalida que existam momentos, episódios ou questões que continuem a gerar polémica. O que se espera é que essa discussão em torno de alguns dos momentos de ruptura, quer do período anterior ao 25 de Abril, quer do próprio processo revolucionário, sejam feita de forma construtiva e fundamentada.
Também se pode falar em pacificação quando falamos do nosso passado colonial ou aqui há mais feridas abertas?
As questões do colonialismo e da descolonização são, provavelmente, aquelas sobre as quais ainda recaem mais tabus. Mas acredito que estão a ser dados passos importantes para ultrapassar essa questão. Basta olhar para o que está a ser feito na academia e também na sociedade civil. Há uma produção bibliográfica e uma multiplicidade de debates muito interessantes, que nos fazem crer que os 50 anos de Abril e as celebrações em torno da data podem dar contributos importantes nesse domínio.
Tinha apenas cinco anos quando se deu o 25 de Abril. Tem alguma memória desse momento, que viveu em Leiria?
Tenho uma memória muito difusa. Recordo-me de, nesse dia, o meu irmão mais velho ter sido enviado para casa porque não houve escola. As imagens que tenho são posteriores, de celebrações do 1º de Maio, com convívios no pinhal, com violas e canções. É, sobretudo, uma memória de festa, que o 25 de Abril representou.
Que papel teve a região de Leiria no caminho que se fez até à revolução?
No período anterior ao 25 de Abril, temos dois ou três momentos que são importantes. Por exemplo, a campanha de Humberto Delgado e o envolvimento de leirienses como Vasco da Gama Fernandes, e de muitos outros, em todo esse processo. No anos 60 e 70, vários oposicionistas, como o doutor Vareda, da Marinha Grande, que se envolveram na luta contra a ditadura. Mas há muitos outros leirienses que é preciso recordar e homenagear, um trabalho que está a ser feito. No processo revolucionário propriamente dito, Leiria não esteve na primeira linha, excepto aquando da ocupação da base aérea de Monte Real no 25 de Novembro. De qualquer forma, Leiria, tal como todas as outras partes do País, são peças centrais para percebermos como se conquistou a liberdade e o que foi o 25 de Abril.
Das muitas figuras associadas ao 25 de Abril, há alguma por quem tenha uma especial admiração?
É muito difícil escolher uma única figura no rol imenso de actores militares, civis e também anónimos que fizeram a história do 25 de Abril. Pessoalmente, tenho uma admiração por homens como Melo Antunes, de quem fiz uma biografia, ou Vítor Alves. Tenho também um enorme fascínio por figuras como Vasco Gonçalves, peça central e fundamental do período de 1974 e 75. É incontornável referir aqueles que consideramos os pais fundadores do sistema político português: Mário de Soares, Sá Carneiro, Álvaro Cunhal e Freitas do Amaral, entre muitos outros que trabalharam para que a democracia e o sistema político-partidário nascesse. Depois, há os anónimos que nunca podem ser esquecidos desta história. Essa mobilização popular foi uma das características centrais e, provavelmente, das mais interessantes na forma como construímos as bases da democracia.
O que espera que fique destas comemorações dos 50 anos?
Espero que estas comemorações permitam, entre outras coisas, tornar-nos mais responsáveis e conscientes da necessidade do nosso envolvimento na prática democrática. Espero também que se possa contribuir para um maior conhecimento histórico do que foi o período e, dessa forma, tornar-nos cidadãos mais intervenientes e com uma maior consciência do nosso lugar na sociedade.
Uma das formas de intervenção é através do voto. Estamos hoje muito longe dos 92% de votação nas primeiras eleições livres. Porque é que chegámos a níveis tão baixos de participação eleitoral?
É uma questão muito complexa. Sem querer retirar-nos da equação, este não é um fenómeno exclusivamente português e leva-nos a pensar, por exemplo, se a forma como decorre o processo de eleição de quem nos representa continua a ser adequada aos nossos tempos. Por outro lado, é importante fomentar outras formas de intervenção política dos cidadãos, através, por exemplo, dos orçamentos participativos, como já está a acontecer. Em relação aos mais jovens, é fundamental pensarmos como fazê-los sentir que a sua voz é importante e que eles podem e devem participar no futuro político.
Historiadora e professora