Corpo, manual, desobediência, histórias, colectivo, fim. Seis palavras, a espoletar a ocupação de 12 cartazes, que vão estar espalhados nas ruas da cidade, em mupis, nas próximas semanas.
A ligá-los, o vidro manual e a iniciativa Artistas no Território.
A voz do operário volta a manifestar-se na Marinha Grande, mas, em vez de cortes de estrada e confrontos com polícias de choque, como nos piores momentos dos despedimentos e falências da década de 1990, surgem vias de comunicação entre o passado, o presente e o futuro.
Cada cartaz, dos seis que agora vão ao encontro da população do concelho, é um glossário de vivências, em que a palavra-chave aparece ao centro, rodeada por frases, imagens e ilustrações: “que futuros tem o vidro manual?”, “não há solidão no trabalho das obragens”, “o corpo subordinado à velocidade da máquina”, “pote sem sangue não é pote”, “nove meses de salários em atraso”, “fuja senhor ministro que aí vai galheta!”, “que lugares para a desobediência existem hoje?”, “luta contra o individualismo”, “colectas de dinheiro para as famílias dos presos políticos”, “movimento associativo”, “o que vem depois do fim?”, “uma arte nunca morre!”, entre muitos outros exemplos.
Artistas no território
Antigos vidreiros e vidreiras, e também trabalhadores que permanecem na indústria, contribuíram para a co-criação, em conversas com pão e vinho, e um cenário de ferramentas e objectos associados aos gestos, recolhidos em fábricas abandonadas, com o cartaz a servir como toalha de mesa onde se escreve e desenha enquanto se tira o pó a um acervo com mais de 250 anos. Entre eles, Carlos Franco, que entrou na vidreira Manuel Pereira Roldão aos 11 anos de idade, antes de seguir para os plásticos e depois para os transportes de mercadorias. Destaca “a ideia forte da unidade do colectivo”, que existia no sector vidreiro, e, actualmente na liderança da colectividade da Comeira, explica como “gostaria que a Marinha Grande mantivesse a sua história viva” e pudesse “dar visibilidade à sua identidade”.
A proposta, na origem: trabalhar com a comunidade, em residência, para intervir no espaço público. “É um processo de escuta”, resume o designer e arquitecto João Gonçalo Lopes, em dupla com a coreógrafa e performer Márcia Lança. “Permite-nos estar muito mais perto de um lugar de relação do que de um lugar de especialista que vem aplicar um método. E é o que nos interessa: perceber, antes de tudo, o que é que move as pessoas”.
Segundo Carlos Veríssimo, director artístico do Teatro Stephens, que dinamiza o projecto Incorporar, em que se insere a iniciativa Artistas no Território, interessa ao município “a ligação da memória para o contemporâneo” e conseguir “o maior impacto possível” através da presença de artistas convidados, a quem se pede que criem a partir do património local. “O ideal, para nós, é que o artista trabalhe com coisas ou pessoas da Marinha Grande”.
Um museu vivo?
Por um lado, salienta João Gonçalo Lopes, “há muito conteúdo e muitos saberes”, e descobri-los “é importante”, por outro, o objectivo é “sair da caixa palco, dos teatros, dos locais artísticos convencionais [e transitar] para o quotidiano”. Ponto de partida, que tem como contexto o convite do Teatro Stephens: a possibilidade de “activação” e “ressignificação” de “fábricas enormes, com um passado gigante”, como as extintas Stephens e Morais Matias, ambos os edifícios propriedade da autarquia.
Desde Abril, João Gonçalo Lopes e Márcia Lança exploraram pavilhões industriais desactivados, visitaram a derradeira fábrica com vidro manual e desaguaram no Cencal, um pólo de formação para a indústria, à boca de fornos em que ainda se molda, a ouvir e a indagar “sobre as experiências do vidro” com os protagonistas da narrativa, cerca de duas dezenas. “Dois pontos tornaram-se bastante importantes: o fazer e o legado estar ligado às mãos e à acção, e as redes de solidariedade”.
Entre angústias e frustrações, sonhos e aspirações, e um debate mais aceso a falar de museu do vidro e de museu vivo, emerge o “incrível” léxico do vidro manual, a definir objectos como extensões das mãos – cana, forcado, maço, cordelina – e não só: fustinagem, escaravelha, entre outras.
“Queremos que esta conversa seja partilhada e continue na rua”, assinala João Gonçalo Lopes. Os cartazes evidenciam “relatos pessoais, íntimos, que se misturam com eventos históricos, ligados ao país, ligados à Marinha”, e em todos se pergunta “o que fazer?” com a herança. “Há questões fundamentais para toda a gente e para a cidade e que não vão ser consensuais, mas é conversando que vamos conseguindo perceber a dimensão delas”.
Com o mesmo propósito, de oferecer pensamento para a construção colectiva, é já certo que o diálogo vai prosseguir, no primeiro semestre de 2025.