Qual foi o concerto que mais o marcou?
Não consigo reduzir a um. Houve uma vez um festival de jazz, na Macedónia, em que começámos a tocar e, ao fim de um bocadinho, estavam três mil pessoas histéricas. O concerto teve uma energia incrível.
Isso interfere no vosso desempenho?
Completamente. Há uma motivação enorme. Sabe-nos muito bem sentir que estão a gostar de nós e que o manifestem. O que muda é que uma pessoa toca melhor. Outro concerto mágico foi um em que toquei com o Bernardo Sassetti, na Festa do Avante. Tocámos, pela primeira vez ao vivo, um disco chamado Grândolas, que andava muito à volta de músicas do Zeca Afonso. As pessoas conheciam as letras e cantavam baixinho, para não se sobreporem ao piano. Foi incrível e comovente.
As pessoas cantarem não vos desconcentra?
Nada tira mais a concentração do que sentirmos que as pessoas não estão connosco. Por exemplo, quando estão a falar. Se o som que a plateia faz é por estar connosco, é preenchedor. Também destaco o concerto dos três pianos – eu, o Pedro Burmester e o Bernardo Sassetti – na Coreia. Tinham-me pedido para fazer o arranjo de uma canção que, para eles, é muito importante e, quando começámos a tocar, de repente, começaram todos a cantar baixinho. Também foi muito emocionante. Muitas vezes, aquilo que faz a diferença é a relação que se cria com as pessoas.
O comportamento do público varia de país para país?
Apesar de haver muitas coisas em que os povos são diferentes, com o público, as diferenças são um nadinha mais pequenas. Os orientais respeitam o silêncio até ao som do último acorde acabar. Batem palmas com um som muito forte e, depois, acabam de repente. Isso é desconcertante, porque, às vezes, estamos a levantar-nos para agradecer, eles calam-se, e ficamos meio pendurados. De resto, dizem que a Alemanha é um povo frio. A verdade é que tem uma grande cultura musical. Normalmente, o público é óptimo e super-caloroso, mas, se o concerto começa com cinco minutos de atraso, começa a ficar irritado. Mas irritado mesmo.
Qual o perfil do seu público?
São pessoas que têm o hábito de ouvir música e têm curiosidade de ouvir vários tipos de música. A faixa etária que predomina vai dos 40 para cima. Vão aparecendo jovens, mas a percentagem é menor. O mercado generalista da música afunilou muito o gosto de grande percentagem da população. As pessoas são bombardeadas com os hits e com o que está moda. Não há uma cultura de diversidade. Apesar de achar que a música que faço não é tão difícil assim, é uma música que não passa na rádio ou na televisão, a menos que seja às 3 da manhã.
Por que é que isso acontece?
Não há uma política cultural que cuide disto. Dá muito menos trabalho vender a Beyoncé, a Madonna ou o Ed Sheeran, que fazem músicas que entram no ouvido logo à primeira. É mais fácil as editoras dedicarem a sua energia a um artista que vende três milhões do que a 50, em que cada um vende mil. É um negócio. O estímulo e o apoio para se fazer outras coisas tem de vir de outro lado. Fico doente quando chamam “subsídio-dependente” a alguém que faz uma coisa que não tem âmbito popular e que é pago através de um apoio do Estado. Essas pessoas estão a receber dinheiro por um trabalho. Há música que é fundamental para a História da Europa – desde Bach, a Mozart, a Haydn, a Mendels, a Beethoven -, pelo bem que fizeram à alma das pessoas ao longo de séculos, mas só existiram porque havia mecenas. Reis e príncipes que gostavam de música e lhes pagavam. Para que haja uma grande diversidade na cultura será sempre preciso apoio.
Vive dos concertos que dá e da venda de CD?
Vivo, mas já não da venda de CD, porque as pessoas não compram, copiam. Um disco custa dinheiro a fazer. Se vender dois mil discos, que é um sucesso de vendas num disco de jazz, dá para cobrir o que se investiu. Por isso é que, agora, qualquer contrato para um disco inclui uma percentagem de todos os concertos. Um artista vai tocar e o dinheiro vai para os promotores, para os agentes e para a discográfica, porque já não lhes chega a venda de discos.
O que pensa do modelo de ensino da Música nas escolas básicas?
Está provadíssimo que o ensino musical ajuda no desenvolvimento do raciocínio matemático e torna as pessoas mais tolerantes. Se isso for feito desde criança, habituam-se a dar valor à diversidade e isso é uma riqueza imensa. O ensino musical devia ser obrigatório desde a primeira classe.
Projectos como os Concertos para bebés são importantes?
Já participei em alguns. São fantásticos. Têm muita graça e são muito originais. São inteligentemente feitos, porque a mensagem mais importante é passada aos pais das crianças. O próprio Paulo [Lameiro] o diz: é mais importante a música que ouvem em casa, porque isso é que dá a continuidade.
Não é demasiado redutor só se ensinar flauta no ensino básico?
É melhor do que nada, mas tinha de ser feito um programa inteligente, que misturasse o lado das apetências musicais e dos ritmos e algum conhecimento da música que se foi fazendo ao longo dos séculos. Ouvirem música e, aos poucos, dizer-lhes para experimentarem fazer certos ritmos. Fazer a coisa começar de uma maneira que eles não fechassem a porta, como acontece com outras disciplinas. Há maus alunos a Matemática, não porque não tenham raciocínio matemático, mas porque nunca foram estimulados numa boa direcção.
Está a referir-se à falta de qualidade de alguns professores?
Sim, e dos programas. As pessoas sozinhas não podem fazer milagres. Um dos passos fundamentais para que o ensino seja bom é a valorização dos professores e, cá, desvaloriza-se os professores. Os professorem sentem-se desmotivados, injustiçados, ganham mal e isso passa para os alunos, que os respeitam menos. Se houvesse uma imagem da importância que eles têm e do respeito que merecem, tudo isso melhoraria, seguramente, o ensino. A Educação é fundamental.
Tem boa imagem do ensino público?
Tenho uma óptima imagem. Também frequentei o ensino público. O meu filho andou num colégio até ao 4.º ano, mas tive a percepção de que era uma bolha. Os amigos são filhos de pessoas que têm algum dinheiro, não têm grandes preocupações, têm tempo para estudar e praticam desporto. Aquilo que uma pessoa deseja para os filhos. Mas ele não se confrontava com os outros e eu não gosto nada da ideia de um filho meu crescer a não conhecer a realidade, o que é o mundo. Claro que uma pessoa também tem algum medo, porque, por vezes, as escolas são vítimas dos sítios onde estão implantadas. Numa zona muito pobre dos subúrbios de Lisboa, já sabemos que provavelmente as escolas têm mais problemas. Não culpo [LER_MAIS] os miúdos que provocam os problemas. É das circunstâncias. São pobres, não têm referências, a mãe sai muitas vezes para o trabalho às 6 horas da manhã. Não há milagres.
“Todas as drogas deviam ser despenalizadas”
Portugal é um dos países da Europa que menos investe em Cultura. Por que é que esta área é tão pouco valorizada em Portugal?
Parece que se recusam a ver os benefícios óbvios que a cultura traz para o País. Na História recente, 48 anos de obscurantismo cultural não ajudaram. Sempre que se vive em ditadura, é mais fácil comandar pessoas que não são esclarecidas. Normalmente, não há uma grande tendência para investir em cultura.
À excepção do fado.
Sim, mas porque tinha de haver uma bandeira. Salazar podia ser ditador, mas não era estúpido. Quando estou irritado com políticos ou políticas lembro-me que, apesar de tudo, Portugal mudou muito. Entre o acesso à Saúde e à Educação, com todas as falhas, é outro país. O que me preocupa não é o que as pessoas que têm dinheiro conseguem, mas aquilo a que as pessoas que não têm dinheiro têm acesso, e isso mudou muito.
Democratizou-se o acesso à cultura?
Sim. Só isso foi uma coisa boa, mas é preciso investimento para a coisa crescer para outra dimensão. Os políticos vêem muito a curto prazo. A forma como se desenhou o jogo político leva a haja algum populismo à mistura, para que tenham votos e possam continuar a governar e, muitas vezes, as grandes mudanças não são tão populares assim. Não estou à espera de políticos perfeitos e não tenho tendência para dizer: "Os políticos são todos não sei o quê". Já conheci alguns que tenho a certeza que são bons, querem fazer as coisas bem e pioraram a sua vida para se dedicarem a uma causa. Há um facilitismo enorme em criticar. Atrai-me muito mais a construção. Se houvesse um certo respeito pelo outro, quando houvesse confronto político, seja sobre a eutanásia seja sobre o que for, as pessoas respeitavam mais os políticos. É muito fácil criticar, mas ser político é dificílimo. É claro que há muita gente que usa a política para benefício próprio, mas por muito que apareçam tantos maus, continuo a dizer que a política é uma arte nobre.
Via-se a exercer um cargo político?
Não, não, não. Por achar que é uma arte nobre tem de ser feita por aqueles que têm talento para ela. Tenho talento para a música.
Está mais ligado à esquerda. Está satisfeito com esta solução governativa?
Estou. Foi uma solução que trouxe duas coisas de que gosto muito. A primeira é que se voltou a ouvir falar em pessoas. E quando [António] Costa se esqueceu de falar em pessoas, depois dos incêndios, isso custou-lhe caro. Houve um aproveitamento hipócrita da oposição, porque o que causou os incêndios foram políticas erradas de dezenas de anos. Os três partidos que mais responsabilidades têm são o PS, o PSD e o CDS. Mandaram os guardas florestais para casa, pouparam nisto e naquilo. António Costa falhou quando se esqueceu das pessoas e falou em números. Caiu-lhe toda a gente em cima, mas foi ele que se pôs a jeito e, na política, pagam-se as consequências. Quanto a Passos Coelho, acho que é um político honesto e fez aquilo que achava melhor, mas de uma forma doentiamente cega. A Merkel exigia x e ele fazia ainda mais. A economia morreu, porque estava tudo com um garrote em todo o lado. O discurso era cruel para as pessoas.
Hoje, vive-se melhor em Portugal?
Houve um alívio enorme. As pessoas andam mais descontraídas, mais sorridentes. Irrita-me quando as pessoas dizem que, agora, vai ser pior. Uma das coisas que já percebemos é que a dívida não se paga. É muito difícil pôr a geringonça a funcionar, mas o Costa é um mestre, pois consegue gerir o impossível.
Como é que se posiciona em relação à eutanásia?
Sou completamente a favor. Não suporto que as pessoas assumam que são melhores do que outras. Isso ficou no ar com a conversa de que "eu é que sou bom e não quero que morra ninguém". Dei a cara pela despenalização do aborto e tenho três filhos. Aceito que as pessoas não concordem, mas é bom perceber que o que está em causa não é que elas o façam, mas que não seja um crime fazê-lo. Não suporto a ideia de que são contra, mas depois vão dar esmolas aos desgraçados. Na fase inicial da gravidez, se uma mãe não pode dar uma vida digna a um filho, é muito melhor fazer um aborto. As pessoas têm o direito a ter uma vida com dignidade e todas estas coisas andam à volta disso. Ninguém quer matar ninguém. Não compreendo como é que é um bem manter alguém vivo a sofrer, como é que isso é gostarmos das pessoas. Há aqui uma contradição, se um cristão acha que a vida não acaba.
Mas o PCP também tomou uma posição em bloco contra a eutanásia.
Li um artigo do Miguel Esteves Cardoso, de quem gosto muito, onde ele dizia que as pessoas têm a mania de que o conservadorismo só está na direita, mas não. Concordo com ele. A esquerda pode ser imensamente conservadora.
Concorda com a utilização da canábis para fins terapêuticos?
Completamente. Vou muito mais longe. Todas as drogas deviam ser despenalizadas. Das melhores às piores. Poupavam-se milhões e milhões a tentar apanhar os traficantes, que nascem como cogumelos. Se isso fosse controlado pelo Estado, a médio e a longo prazo, ia haver muito menos droga, a qualidade seria muito melhor, pagavam impostos. Eram só vantagens.
“As pessoas estão a desligar-se dos sons reais, da vida a acontecer, porque a poluição sonora é uma constante. Até nos parques de estacionamento ao ar livre”, lamenta Mário Laginha, de 60 anos.
O músico diz que os sons habituais da rua, como ouvir os pássaros, uma criança a rir ou a chorar, ou um diálogo entre um filho e uma mãe estão a deixar de se ouvir, porque há música em todo o lado. “Isto foi alastrando até ao ponto de as pessoas se começarem a sentir desconfortáveis perante o silêncio”, afirma.
Mário Laginha conta que desistiu de comprar uma peça de roupa para o filho mais novo, de 11 anos, por o volume de som da loja de pronto-a-vestir estar demasiado alto e contesta que os restaurantes também estejam a adoptar a mesma estratégia.
“Fazia bem à música haver menos música”, afirma. “A música alta é uma forma de preencher o vazio que poderá existir, se ela não estiver lá. Quando não falamos há silêncio e os silêncios, se calhar, seriam mais incómodos”, admite.
Sempre que não está a dar concertos ou em viagem, o pianista estuda seis a sete horas por dia, mas não abdica de levar o filho mais novo à escola, antes de começar a trabalhar.
Defensor da diversidade, diz que sempre insistiu com os três filhos para pensarem pela própria cabeça, sem desprezar a opinião dos outros.