Passear no Pinhal de Leiria ou pinhal do Rei, como também é designada a Mata Nacional de Leiria, evoca mistura de sentimentos perante um cenário devastador. Os pinheiros praticamente desapareceram e no território vêem-se massas de acácias e até eucaliptos a brotarem sem qualquer intervenção.
A regeneração natural defendida por especialistas e pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) também evidencia o aparecimento de pinheiros jovens, mas que, em alguns talhões, passam despercebidos pelo envolvimento das invasoras.
Joaquim Sande Silva, especialista em engenharia florestal e um dos elementos envolvido no estudo do Observatório Técnico Independente sobre a recuperação da Mata Nacional de Leiria após os incêndios de 2017, lamenta que se tenha deixado passar demasiado tempo para eliminar as invasoras do território.
“Em muitas zonas da mata já não é possível fazer nada. Infelizmente, a mata de Leiria vai passar a ser uma coisa muito diferente daquilo que foi no passado, a não ser que se canalizassem verbas absolutamente astronómicas para recuperá-la. É intervir quase pé a pé no controlo das invasoras e na manutenção das nativas. Mas, infelizmente, em muitas zonas da mata já se entrou num ponto sem retorno. São processos já irreversíveis em que não é expectável que seja possível mudar o destino de vastas áreas da mata”, constata o investigador.
Joaquim Sande Silva concorda com a decisão de se privilegiar a regeneração natural, mas alerta que este método “não é suficiente para conduzir a mata”.
“A regeneração natural que se está a verificar em muitas zonas mostra o aparecimento de espécies desejáveis e indesejáveis. Estamos a ver acácias a regenerar juntamente com pinheiros. O expectável é que em muitas zonas as acácias venham a dominar o sistema e o pinheiro não tem hipóteses de competir”, alerta, apontando que “aquilo que antes era um pinhal, vai passar a ser um acacial e, noutras zonas, um eucaliptal”.
O eucalipto irá predominar na Ribeira de São Pedro de Moel, “onde há núcleos importantes de regeneração de eucalipto” e “zonas que antes eram galerias ripícolas, com algum interesse do ponto de vista botânico e de biodiversidade, já estão dominadas pelo eucalipto”.
“Todos estes processos poderiam ter sido evitados se houvesse uma intervenção mais musculada por parte do Estado e, sobretudo, mais assertiva ao longo do tempo”, avança o investigador, ao considerar que já não é possível reverter a situação com empreitadas adjudicadas de quando em vez. “Exige um trabalho de continuidade permanente que não está a acontecer na Mata Nacional de Leiria”, acrescenta.
A vegetação que está a tomar conta do pinhal vai ainda impedir que alguns dos serviços que a mata prestava anteriormente não se possam verificar. “O pinhal já prestou serviços ao nível do fornecimento das matérias-primas de madeira, mas mais recentemente tinha um papel muito importante ao nível do recreio, da paisagem e até mesmo da biodiversidade”, salienta.
Joaquim Sande Silva reforça que mais do que organização florestal, é necessário “mobilizar recursos no espaço e no tempo, e de forma contínua, de modo a conduzir aquela estrutura vegetal para os objectivos que se pretendem em termos dos serviços e que é suposto aquela mancha prestar.”
“O relatório feito por uma comissão científica para as matas do litoral aconselhava uma diversificação de espécies nativas. Quer um modelo antigo da mata produtora de lenho quer um modelo mais de acordo com as tendências actuais, de uma mata um pouco mais diversa com outras espécies autóctones, ambas têm mais-valias em termos dos serviços que a mata pode prestar”, afirma, admitindo, contudo, que a evolução da mata, neste momento, é contrária a essas intenções. O investigador defende uma intervenção “muitíssimo mais intensa do que aquilo que tem sido feito”.
“Exigiria um investimento do Estado muito superior, que deveria ter começado poucas semanas após o incêndio e na primeira Primavera. Isso não aconteceu devido à grande lentidão do Estado e porque há escassez de recursos. Neste momento, são mais os processos naturais que traçam o percurso da mata do que propriamente a vontade humana”, critica.
Francisco Castro Rego, ex-presidente do Observatório Técnico Independente, também concorda que a primeira resposta da recuperação da mata fosse uma aposta na regeneração natural, mas critica a demora do ICNF. “A regeneração do pinheiro bravo acontece num ano, máximo dois. Aquilo que o ICNF disse várias vezes de que estava à espera dessa regeneração não tinha razão de ser, porque biologicamente não era possível esperar mais tempo. Essa falta de actuação atempada faz com que as invasoras tenham todas as condições para se desenvolverem sem competição”, explica. O também engenheiro silvicultor, professor catedrático, especialista em florestas e fogo, acrescenta que “a intervenção quando é feita logo de início em relação às invasoras é muito simples”.
“Tem de ser feita com cuidado e manualmente, porque permite erradicar estas espécies com muita facilidade. Quando se espera tempo demais, as plantas criam raízes, desenvolvem-se e depois é muito custoso retirá-las”, adianta, ao afirmar que o conhecimento científico existente permitia antecipar esse tipo de questão. “Houve intervenções com decapagem do solo, mais extensivas, quando a intervenção mais útil seria mais manual e mais criteriosa. Limpando tudo vai muita matéria orgânica para o lixo e a possibilidade de regeneração das espécies mais importantes, que acabam por ter dificuldade em regenerar.”
Francisco Castro Rego diz que havia “necessidade, na altura, de actualizar o plano de gestão florestal, que demorou muito tempo a ser concretizado”, contribuindo para que se perdesse a “janela de oportunidade que o fogo sempre traz”. “O fogo traz uma perturbação, que se for bem trabalhada pode ser também uma janela de oportunidade para conduzir os povoamentos da maneira mais lógica. Isso perdeu-se.” Para este especialista, a nova mancha florestal será uma mistura de pinhal e eucaliptal.
“Poder-se-ia ter aproveitado mais para diversificar em algumas zonas com pinheiro manso, que é outra espécie que se dá ali muito bem e até algum sobreiro e medronheiro, mas mantendo o carácter de pinhal que é tradicional e faz parte do nosso património e que deve ser mantido como tal.” O ataque às invasoras é urgente, reconhece Francisco Castro Rego, ao referir que “já é muito tarde”, mas é necessário tentar substituir as acácias e o eucalipto por pinhal ou por outras espécies que sejam adequadas.
O engenheiro recorda ainda que o Observatório Técnico propôs uma alteração de governação do pinhal de Leiria, onde o ICNF deixaria de ser o único protagonista da tomada de decisões sobre o local. “Dever-se-ia envolver também o observatório do pinhal, organizações mais locais interessadas no Pinhal de Leiria e a câmara municipal, sobretudo, da Marinha Grande. O Museu da Floresta, que era um desígnio nacional, também está emperrado por uma visão do ICNF muito pouco participada e partilhada com os agentes locais”, critica.
Carlos Franquinho nasceu na Marinha Grande e a tristeza invade- o ao passar na mata nacional, embora admita que tem sido feita alguma recuperação, através da regeneração natural e replantação de iniciativas voluntárias. “O património genético da mata é muito importante e, por isso, é importante aproveitá-lo”, afirma o formado em Ciências do Ambiente na Universidade Aberta, que aponta as espécies invasoras, nomeadamente as acácias, como a “maior ameaça à mata”.
“Era um trabalho que deveria ter sido feito logo de início e não foi. Perdeu-se uma janela de oportunidade a seguir ao incêndio.”
Para Carlos Franquinho, outro aspecto relevante é a recuperação das casas florestais, que se encontram em ruínas. “Algumas estão a fazer 100 anos e estão totalmente degradadas. Falta vigilância na mata, faltam guardas florestais, trabalhadores diariamente na mata e diversificar as espécies florestais. A mata nunca será igual, até porque o mundo em que vivemos hoje também não o é. Mas acredito que não teremos um eucaliptal.”
O número
86%
Até 2024, o Governo compromete-se a investir 9,1 milhões de euros. As acções de rearborização e de aproveitamento da regeneração
natural representam dois terços
deste valor, ou seja, 6 milhões de
euros. A venda de madeira ardida
proveniente dos incêndios de
Outubro de 2017 no Pinhal de Leiria está 99% concluída e rendeu 16 milhões de euros.