Já alguma vez observou, no pavilhão ou no estádio da sua equipa, um indivíduo agarrado ao smartphone que, de uma forma mecânica, coloca online, de forma incessante, tudo o que se acontece na partida? Pois muito bem, ele a ponta visível do um gigante icebergue que move todos os anos milhares de milhões de euros em todo o planeta.
Para se ter uma noção do que estamos a falar, estima-se que a “verba anual dedicada às apostas desportivas em todo o mundo ronde os 500 mil milhões de euros”, revela José Lima, coordenador do Plano Nacional de Ética no Desporto. “O Europeu de França mexeu com 70 mil milhões de euros” e num derby da capital a verba em jogo “anda à volta dos 100 milhões de euros”.
As apostas desportivas são, nos dias que correm, uma verdadeira loucura e não se pode pensar que o distrito de Leiria vive à margem desta realidade. Há vários clubes da região que estão presentes em inúmeras casas de apostas, sejam legais ou não.
No passado fim-de-semana, por exemplo, conseguimos encontrar na internet a possibilidade da apostar em vários emblemas da região, a começar pelas equipas masculinas que militam no principal escalão da respectiva modalidade.
O Sporting das Caldas, no voleibol, e o Burinhosa, no futsal, estão no Placard, plataforma da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, mas em muitas outras casas, licenciadas para actuar em Portugal, ou não. Também a União de Leiria, o Marinhense e o Caldas SC, que militam no terceiro patamar do futebol português, foram encontrados.
"O jogador tem de optar entre jogar futebol ou ser apostador na modalidade, não pode fazer as duas coisas ao mesmo tempo"
João Oliveira, Sindicato dos Jogadores
São centenas e centenas de sites, com ofertas para todos os gostos, nas mais variadas modalidades e até nos desportos electrónicos. Do futebol, ao andebol, do ténis às corridas de cavalos, de jogos amigáveis à final da Champions League, está praticamente tudo à distância de um clique.
A questão é quando todo este esquema é desvirtuado, quando um apostador consegue adulterar o normal decurso de um jogo em benefício da aposta realizada.
À escala planetária
É um problema crescente com diversas ocorrências registadas, nomeadamente nos campeonatos turco, suíço, alemão e de outras zonas do leste europeu. Itália também tem um historial de escândalos, que envolveram alguns dos nomes grandes do futebol transalpino, como a Juventus, a Lazio, o Milan, Paolo Rossi e Antonio Conte.
Em Portugal, a operação Jogo Duplo levou à detenção de jogadores e dirigentes de clubes da 2.ª Liga. Recentemente, o Ministério Público confirmou que quatro jogadores do Rio Ave são arguidos num alegado caso de resultados combinados.
Para o filósofo José Antunes de Sousa, professor da Faculdade de Educação Física da Universidade de Brasília, o fenómeno é “global”. “A humanidade vive um estádio de instalação capitalista: a absolutização do lucro. Há uma maquiavelização da fasquia ética: todos os meios são validados pelo lustro ilusório do fim. E os mais fracos e desvalidos – jogadores das equipas mais modestas – são os mais vulneráveis à tentação imediatista do lucro enviesado e fácil.”
“Sabemos que para a prática destes ilícitos as competições intermédias, como é o caso do Campeonato de Portugal, são bastantes procuradas”, diz João Oliveira, advogado responsável pelo Gabinete Jurídico do Sindicato dos Jogadores e especialista na matéria do combate à viciação de resultados, certificado pela FIFA e Interpol.
“Apesar de a carência económica não ser o único factor de risco, existindo dificuldades financeiras e menor controlo do cumprimento das obrigações laborais estão criadas condições ideais para abordagem pelos match-fixers. Todas as competições que sejam objecto de aposta desportiva podem ser alvo destas organizações criminosas e merecem a nossa maior atenção”, completa este especialista na matéria do combate à viciação de resultados, certificado pela FIFA e Interpol.
“Ninguém está imune: a massa monetária é elevada, o que faz com que seja fácil corromper”, diz José Lima. “Não há estudos que apontem o valor das apostas combinadas”, mas “futebol, atletismo, cricket, boxe e ténis” são as modalidades mais visadas pelas “Máfias do Oriente”.
“É um problema bastante grave”, completa o responsável. Ainda para mais, “grande parte do volume de apostas é proveniente do mercado asiático, fora da jurisdição das autoridades portuguesas”, salienta João Oliveira. Importa, pois, “educar e sensibilizar todos os agentes desportivos para o fenómeno e para as consequências disciplinares e criminais que resultam do envolvimento no mesmo”.
“Os jogos combinados são um grande problema, não só do desporto, mas de toda a sociedade, e se não desenvolvermos um conjunto de acções preventivas será um verdadeiro cancro”, augura o coordenador do PNED.
A tarefa de quem tenta combater estes ilícitos é complexa. “Primeiro, porque é muito difícil de detectar e, depois, de obter meios de prova. Há muitos meios de corromper e combinar resultados. Seria necessário um elevado investimento para fazer essa investigação”, observa José Lima.
Jogador ou apostador
Não se pense, contudo, que este problema se resume apenas àquela corrupção em que um indivíduo paga a outros, sejam jogadores, dirigentes ou árbitros, para que estes alterem o normal desfecho de uma partida, qualquer que seja a modalidade. Com a democratização das apostas desportivas, são cada vez mais aqueles que têm acesso às casas onde um palpite acertado pode transformar uns euros em mais alguns.
O problema é que também há um número crescente de desportistas a apostar nos próprios jogos, como admitiu ao JORNAL DE LEIRIA um atleta que preferiu não ser identificado. [LER_MAIS] Porque acreditam que percebem mesmo da modalidade e que daí pode retirar dividendos.
“O problema está meterem modalidades amadoras. Veio criar uma grande confusão, porque são pessoas que quase nada recebem como atletas e encontraram nas apostas uma maneira de fazer dinheiro.”
São jogadores que acreditam que não estão a pôr em causa a verdade desportiva, que vão jogar para ganhar como sempre fizeram. Contudo, podem não saber, mas a verdade é que estão a fazer algo ilegal.
Em Portugal, por exemplo, nenhum futebolista pode chegar ao Placard e apostar em futebol, “sob pena de cometer uma infracção disciplinar”. Quando aposta numa competição na qual tenha ou possa vir a ter envolvimento “incorre no crime de aposta antidesportiva, punível até três anos de prisão”.
“O jogador tem de optar por jogar futebol ou ser apostador na modalidade, não pode fazer as duas coisas em simultâneo”, salienta o responsável pelo Gabinete Jurídico do Sindicato dos Jogadores
Esta época, Sindicato, Federação Portuguesa de Futebol e Liga Portugal visitaram todos os clubes das competições profissionais de modo a sensibilizar os plantéis para o tema. “O objectivo é abranger as demais competições susceptíveis de abordagem”, explica João Oliveira.
“A nossa missão é representar e defender os jogadores, informá-los que não podem apostar em futebol e dar-lhes os instrumentos para denunciar qualquer abordagem de que tenham conhecimento. Foi por isso que criámos o projecto Deixa-te de Joguinhos, ao qual aderiram a Federação Portuguesa de Futebol e a Liga Portugal.”
Ainda existe a plataforma integridade.fpf.pt através da qual qualquer pessoa pode denunciar a abordagem ou o conhecimento que tiver sobre a ocorrência de manipulação de resultados. Este instrumento constitui um canal directo e seguro entre quem denuncia e as autoridades com competência investigatória em matéria criminal.
Para João Oliveira, a legislação das competições portuguesas é suficientemente punitiva para persuadir os atletas. “Quer a regulamentação desportiva, quer a lei são o reflexo de uma política de tolerância zero para este fenómeno. As penas de suspensão foram agravadas e a lei 50/2007, de 31 de Agosto, alterada em 2017, para além de agravar a moldura penal passou a prever, expressamente, o crime de aposta antidesportiva.”
A corrupção, activa e passiva, é o tipo legal de crime onde se enquadra a manipulação de resultados. Do lado passivo, isto é, relativamente ao agente (jogador ou árbitro) que recebe um beneficio para manipular o decurso de um jogo, “está prevista uma pena de prisão de um a oito anos, que agravada em função do valor recebido pelo agente pode atingir os dez anos de prisão”.
Por isso, “é importante que os jogadores saibam que a condenação pela manipulação de resultados implica o fim da sua carreira desportiva, mas também a destruição da sua vida pessoal e familiar.
É o futuro que está em jogo, entende o responsável jurídico do Sindicato. “A manipulação de resultados afecta a imprevisibilidade que sustenta o jogo em si, por isso falamos da morte do futebol se nada for feito para travar estas organizações criminosas.”
Está tudo feito? Claro que não. Para Alexandre Miguel Mestre, vice-presidente da Associação Portuguesa de Direito Desportivo, falta “mais fiscalização”, mas também “harmonizar os regulamentos a partir da lei, como se faz na dopagem, garantindo molduras sancionatórias iguais” para todas as federações.
“Urge privilegiar sanções desportivas – perda de títulos, descida de divisão, dedução de pontos, derrota, inibição do exercício de funções de agente desportivo – a coimas ou sanções pecuniárias.”
O ex-secretário de Estado do Desporto não tem dúvidas: “vai mal um sistema em que um mesmo facto, que até pode acarretar pena de prisão, seja ilícito disciplinar apenas para algumas federações, numas modalidades seja sancionado com suspensão até quatro anos, noutras só até dois, num caso se retire pontos, noutros se exija pagar certo montante.”
Artigo publicado na edição de 11 de Janeiro de 2018 do Jornal de Leiria