Trabalhou vários anos na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque. Como era o seu trabalho?
Estive no gabinete do subsecretário Geral das Nações Unidas para os assuntos jurídicos. No fundo, era um jurista que dava apoio a diferentes órgãos da ONU. É muito vulgar os Estados não saberem bem as regras procedimentais. Ajudava a resolver discussões em negociações e outras questões relacionadas com Direito Internacional. Foram tempos interessantes de grande aprendizagem. Já tinha estado como delegado representante de Portugal em algumas reuniões. Percebi que acreditamos que percebemos como a máquina funciona, porém, apenas quando estamos nos bastidores é que, de facto, entendemos como o mundo se move. Estive lá cerca de três anos. Foi uma boa experiência para toda a família. Fui com a minha mulher e com o nosso primeiro filho, o Miguel que tem agora 11 anos e que tinha 3. Foi óptimo, porque Nova Iorque é uma cidade interessantíssima e muito intensa, com grande diversidade e riqueza cultural. Uma coisa é visitar, outra é viver lá. Já tinha estado uns tempos em Paris, a estudar, e, por ter estudado em Coimbra, já tinha noção do que era viver numa cidade média e numa cidade grande. Mas Nova Iorque ultrapassa tudo! Do ponto de vista cultural e da diversidade. Uma pessoa está em casa e apetece-lhe ouvir um concerto de jazz. Basta atravessar a rua e ir a um bar.
Era um tempo diferente na política internacional?
Diferente do último ano, naturalmente que sim, e as exigências eram outras. Quando Trump foi eleito, em 2016, criaram-se vários problemas de cooperação internacional em volta de determinadas questões comuns. Houve a do orçamento da ONU, a retirada do Acordo de Paris e do acordo com o Irão para a desnuclearização, que mudou completamente a atitude desse país em termos de potência regional, entre outras coisas. António Guterres foi a pessoa certa e no momento certo, pois é precisa muita determinação e habilidade para conseguir navegar e dar um propósito às Nações Unidas. Hoje, os desafios são outros e a situação na Ucrânia, para nós, europeus, está mais próxima, mas, infelizmente, não é a única guerra no mundo. Nunca na história da Humanidade houve tantos conflitos armados, em simultâneo, como hoje. A guerra na Ucrânia entra-nos todos os dias pela casa adentro. Somos solidários e isso é excelente, mas há muitos Estados do “Sul Global”, que se queixam que, quando estiveram, e estão, necessitados de apoio internacional, a comunidade internacional não se uniu desta forma. Há sempre uma certa queixa e, em alguns casos, com razão. Veja-se o conflito no Iémen, veja-se os conflitos em África e noutras partes do Mundo.
Com a Ucrânia, há, até agora, coerência e cooperação muito grandes entre a larga generalidade dos membros das Nações Unidas, mas quanto mais a guerra continuar, mais difícil será encontrar essas maiorias esmagadoras na Assembleia Geral das Nações Unidas. Naturalmente o conflito na Ucrânia, saídos nós da pandemia e a começar a recuperar em termos comerciais, nas viagens, nos contactos diplomáticos, levou-nos a uma situação de guerra às portas da Europa, de um Estado contra outro Estado, e isso não acontecia há muitos anos na Europa. Continua a velha pergunta que se faz desde há séculos, mas particularmente desde o fim da Primeira e da Segunda guerras mundiais, “como conseguimos paz em conflitos armados a este nível?” Temos a sensação que há uma inevitabilidade e que há um destino comum da Humanidade com vários elementos e um deles é a guerra constante, com um nível de barbaridade, que impressiona.
Alguns teóricos diziam que, hoje, assistíamos a uma evolução nos conflitos entre países com uma transposição para o nível económico. Entre a China e EUA temos visto isso acontecer. A guerra na Ucrânia parece um conflito do século XIX, destinado a estabelecer fronteiras.
Tem razão no que diz, mas não podemos relativizar estes conflitos, como pertencentes ao passado. Temos de perceber que ainda são do presente. Desde 2014, que há um conflito entre a Ucrânia e a Rússia, embora não à escala a que temos assistido desde há um ano. Neste conflito, não está apenas em causa a soberania da Ucrânia, mas a intervenção de outras potências, de um lado e do outro, que levantam questões geoestratégicas, como o enfraquecimento do próprio exército e das forças armadas russas. Ou ainda ganhar definitivamente a Ucrânia para a Europeia Ocidental, para a NATO e eventualmente para a União Europeia. Este é um jogo onde a China também participa. Desde há muito que a China é vista pelos EUA como o actor estratégico que mais rivaliza com o Ocidente.
A Rússia já estava mal a nível internacional, mas poderá perder ainda mais protagonismo, após este conflito?
Nalguns sectores das elites russas, sempre houve saudosismo da União Soviética, do império dos czares, de Pedro, de Catarina, e Putin, com a sua mensagem, consegue arregimentar vários sectores. Aquilo que é hoje a Ucrânia é, do ponto de vista histórico, muito importante para a nação russa. Há um entendimento que, aquilo que é hoje a Ucrânia independente, deveria continuar a ser território russo. Não é pelo facto de os Estados terem berços em sítios que não estão no seu território, que se desencadeia guerras! No caso da Rússia, há ainda muitas outras questões misturadas. A própria justificação dada ao Conselho de Segurança da ONU, como sendo um “acto de legítima defesa” contra o “regime nazi de Kiev”, que estaria a “praticar genocídio sobre a população russófona, no seu território”. É uma argumentação fácil de desmontar. É uma capa de legitimidade, quando ela não existe.
Há um ano, com o início desta guerra, houve quem vaticinasse para a ONU um destino semelhante ao da sua precursora Sociedade das Nações, uma vez que é impossível aprovar medidas contra a Rússia, pois ela é membro permanente do Conselho de Segurança. É mesmo assim?
O Conselho de Segurança é uma tentativa de criar de maneira mais perfeita o que era a Sociedade Das Nações. Aí, havia um conselho onde era requerida a unanimidade. Por isso, o lugar permanente no Conselho de Segurança dos quatro vencedores da II Guerra e a França, com poder de veto, foi visto como uma cedência. Não é necessária unanimidade, basta a maioria, desde que um dos membros permanentes não vote contra. Durante toda a Guerra Fria, houve esse problema. O órgão principal da ONU, criada com o fim de impedir a III Guerra Mundial esteve congelado. Felizmente, desenvolveram-se outros domínios como os Direitos Humanos ou a Descolonização. Com a queda do Muro de Berlim e com o fim da Guerra Fria, houve um regresso ao Conselho de Segurança. A década de 90 permitiu a esperança de que o conselho, finalmente, fosse capaz de concretizar a tarefa de manutenção da paz e segurança. Desde o fim da Guerra Fria ao conflito na Ucrânia, o veto foi usado poucas vezes. Havia um veto americano em tudo o que envolvia Israel e um russo em tudo o que envolvesse, por exemplo, a Síria. A nova crise surge a partir de 24 de Fevereiro de 2022, quando é impossível adoptar qualquer resolução para trazer paz à Ucrânia. Isto demonstra duas coisas. Por um lado, o problema do poder de veto e que os Estados não estão disponíveis para aceitar a actuação da ONU. Perante os vetos da Rússia, regressou-se à solução, com base na resolução Unidos para a Paz, dos anos 50, do tempo da Guerra da Coreia, onde se dá algum poder à Assembleia Geral das Nações Unidas obrigando a que o Conselho de Segurança quando veta, venha explicar por que o fez. Mas não resolve o problema, porque a assembleia não tem poder para tomar decisões vinculativas. Há vários a clamar pela saída da Rússia como elemento do Conselho ou pela sua exclusão da ONU, como aconteceu no Conselho da Europa, mas isso implica a revisão da carta da ONU e até nisso os cinco membros permanentes têm poder de veto.
A diplomacia portuguesa ficou a ganhar com a eleição de Guterres para secretário-geral da ONU?
Acima de tudo, ganhou prestígio. Portugal é um país com uma taxa de sucesso proporcional muito elevada nas candidaturas que faz a órgãos internacionais. Veja-se António Vitorino, como director da Organização Internacional das Migrações. No caso de Guterres foi um sucesso da diplomacia. As candidaturas fazem-se com bons candidatos, e com a máquina diplomática que, durante anos, preparou a candidatura. O português não era o favorito, embora granjeasse respeito. Havia a ideia que o novo secretário-geral deveria ser alguém dos Estados do Leste e de preferência uma mulher. A eleição foi um processo mais transparente e um desses momentos foi a entrevista pública, realizada a todos. Desde o primeiro dia, António Guterres destacou-se claramente e passou a ser o candidato natural. Ganhou e foi agora reeleito para o segundo mandato. Um secretário-geral que sabe falar com todos, reforça o prestígio de Portugal. Somos muitos bons a falar cara-a-cara e sem posições de superioridade. É bom para o softpower ter um português independente como secretário-geral e isso faz com que Portugal seja mais requisitado. Em geral, a diplomacia portuguesa sempre foi muito bem considerada. Pelo facto de termos menos meios, menos pessoas, faz com que haja menos hierarquização das decisões e com que a criatividade e a carolice, coisa muito portuguesa, sobressaiam.
Enquanto filho de pai polaco, vê algum fundo de verdade nas afirmações de alguns políticos de países do norte da Europa que dizem que os povos do sul são indolentes e os do norte é que os sustentam?
Na crise de 2008-2011, alguns ministros mais a Norte fizeram comentários desagradáveis dos países do Sul a quem denominaram PIIGS, a partir das iniciais de Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha. Não podemos confundir os políticos que estão em determinado momento no poder, com o pensamento geral da população. Nessa época, havia uma conjugação do ponto de vista político nalguns países que não era favorável a países que viessem pedir mais dinheiro. Eram as direitas mais conservadoras, direitas que opunham uma enfâse muito grande na parte financeira. Mesmo na UE houve dificuldade em demonstrar que, mais dívida não é sempre necessariamente mau. Vimo-nos, por pressão do FMI, obrigados a adoptar determinadas políticas restritivas, nuns casos com uma abordagem racional, noutros com perspectiva da Escola de Chicago, muito posta na macroeconomia, mas no sentido de limitar ao máximo a despesa pública, mesmo que isso implicasse, momentaneamente, dificuldades para os cidadãos. Entre os meus colegas dos países do Norte, não sinto que haja essa sobranceria, de modo algum. No entanto, para ser honesto, na época, quando se ouviam alguns comentários mais depreciativos, tínhamos de ter consciência e esforçar-nos para fazer como se nada fosse. Apesar de tudo, não vejo isso como uma coisa de Norte-Sul. No Sul, aliás, temos muita coisa que os Estado do Norte poderiam aproveitar. É verdade que nesta situação de inflação e de juros a subir, vamos passar ainda por um mau bocado, durante mais algum tempo, é difícil perceber qual é o caminho certo e quão temporário isto vai ser. As políticas públicas estão apostadas que será mais ou menos temporário. O BCE vai aumentar novamente os juros até ao final do semestre. Se for temporário, vai ser mais fácil sairmos por cima.
Diz-se cada vez mais que o BCE e a senhora Lagarde, em especial, está a rasgar mais profundamente a ferida da revolta contra a UE, ao acelerar o mal-estar social.
Exactamente. E sabemos para onde esse mal-estar social se vai virar. Para partidos populistas, para partidos eurocépticos. Na Europa, temos partidos destes cada vez mais presentes no Governo, veremos como será em Portugal. O problema é que esses partidos agarram muito bem o ressentimento e a falta de esperança das pessoas e alimentam e dão respostas extremamente simplistas, que não servem para nada. Têm programas incompreensíveis ou extremamente curtos e até contraditórios. Se chegassem ao Governo, dificilmente teriam uma estratégia que nos beneficiasse a todos. Para os eleitores, trata-se de, dentro do processo democrático e constitucional, votar em alguém que, simplesmente, faz eco no ressentimento e da desesperança, que aponta dedos a tudo o que se mexe, como causa do nosso sofrimento.
É uma política de bodes expiatórios?
Completamente. E isso faz mal e contribui para aumentar o ressentimento. Na verdade, esses partidos não querem um modelo alternativo, pois nada oferecem, mas captam o sentimento do momento, levando os eleitores a dizer que estão fartos dos políticos no poder e que vão votar nestes partidos para lhes dar uma lição. Não o fazem na esperança de que estes irão governar melhor, mas para sinalizar ao político tradicional o seu descontentamento extremo.
Em Portugal, os “casos e casinhos” comprometem a estabilidade?
Penso que são mesmo isso. São “casos e casinhos”. Devem ser vistos à lupa e consequências devem ser retiradas, no entanto, não é de todo o mais importante que se passa em Portugal neste momento. É uma cortina de fumo para outras coisas. Alguns partidos, alguns jornais, algumas redes sociais mobilizam essa informação de forma a criar alarmismo na opinião pública, que é também alimentado por circuitos populistas e passam a ser casos nacionais.
Acredita que algumas das revelações são alimentadas pela oposição e pelo partido no poder?
A política acontece muito ao nível da comunicação, a dos partidos, a dos media, a das redes sociais. Há profissionais disso. É evidente que as coisas são alimentadas com o propósito de pôr em cheque o Governo, desviando a nossa atenção para outras coisas. Isto não quer dizer que a seriedade dos políticos, o compromisso com o País e a ética republicana não são importantes. Os casos e casinhos têm de ser resolvidos sem esquecermos que há coisas mais importantes em jogo.
Da ONU para Leiria
Mateus Kowalski é doutor em Política Internacional e Resolução de Conflitos e mestre em Ciências Jurídico-Internacionais, sendo licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra.
“No Natal, em 2020, estávamos em Leiria e fui dar uma volta com a minha mulher, a Patrícia, que é investigadora na Universidade de Aveiro.