Chove a cântaros. As miúdas acabam o aquecimento e depois, com elas, entramos no balneário da equipa da Maceirinha. Na coluna toca o hino da Champions League.
Simão Cardoso dá as últimas palavras ao grupo e Daniela Pereira, 18 nas costas, ouve com atenção as indicações do treinador. “Todos queremos ganhar, mas acima de tudo estamos aqui para divertir-nos. A melhor forma de respeitar a equipa adversária é jogar no máximo. Na dúvida, rematem à baliza.”
E lá vão elas, todas entusiasmadas, fazer o que mais gostam. Vão jogar, desta feita contra a recém-formada equipa da Ilha, em partida a contar para a segunda jornada do Campeonato Nacional Feminino de sub-19.
Alinham, lado a lado com as adversárias e atrás das árbitros Ana Teixeira e Célia Gonçalves. Descem a rampa até ao campo das Pedras, na Bajouca. Fazem o grito, tiram a foto da praxe e colocam-se nas posições à espera do apito inicial.
Daniela tem 14 anos e alinha dois escalões acima da sua idade. É de Moinhos de Carvide, joga à bola desde os 7, mas esta é a primeira temporada em que tem direito a um balneário onde, no fim dos jogos, pode “desabafar e partilhar emoções”.
Jogava na Costifoot, em grupos mistos, onde, apesar de estar em esmagadora minoria, era capitã de equipa, mas acabava por sentir-se um pouco de lado. “Como fazia? No fim dos jogos esperava que os árbitros acabassem de tomar banho ou ia directamente para casa e tomava lá. Para os treinos ia já equipada”, recorda a estudante do 9.º ano no Colégio Dinis de Melo, em Amor.
O futebol, admite, não era uma paixão. A família não tinha interesse pela modalidade, mas quando mudou de escola, no 2.º ano, havia uma academia ao lado do estabelecimento de ensino a recrutar miúdos. “Era a única rapariga da minha turma e todos os meus colegas foram tentar. Na escola já jogava de vez em quando e diziam que tinha algum jeito. Quis experimentar e desde os primeiros treinos senti que era aquilo que queria.”
E foi o que fez, apesar de a família ter estranhado. “A primeira reacção dos meus pais foi chamar-me maluca. Não tinham conhecimento de raparigas a jogar à bola e nunca pensaram que fosse uma opção. Tive de provar que era mesmo o que eu queria e gostava. Agora, apoiam-me.”
É algo comum entre as jogadoras. Simão Cardoso admite que não é fácil, ainda hoje, uma menina querer jogar futebol, apesar de já se ter feito algum caminho nesta luta contra a discriminação. “É preciso mesmo coragem”, diz o treinador.
“Temos uma equipa extra-competição, que joga contra rapazes, e é muito difícil para elas. O que ouço, do lado de fora, é que são as mães dos adversários que mais as criticam.” Verbalizam coisas como “é menina, mas até se desenrasca”, gozam e troçam. Ou seja, “há um preconceito enraizado e são as mulheres as maiores inimigas das jogadoras”.
Daniela acha que não vale a pena falar dos comentários “sexistas e inapropriados” que foi ouvindo ao longo do tempo. Conta apenas dois episódios, dos mais leves: “não tenhas medo que é uma garota” e “é uma garota boa para ti”.
Ela chateia-se, mas ignora. Tem de ser assim. Não é isso que a vai fazer mudar de rumo. Sonha ser profissional de futebol e chegar à selecção. Como a Ana Lopes, por exemplo, que joga no Benfica e ocupa a mesma posição do que ela em campo.
A Ilha abriu o activo, mas a Maceirinha deu a volta ao marcador e venceu por 6-1. Apesar da intempérie, as meninas jamais viraram a cara à luta, ao vento e à chuva. Daniela fez o gosto ao pé num remate potente de fora da área que restabeleceu momentaneamente o empate.
Contudo, esta partida, em que todos os elementos dentro do rectângulo de jogo eram mulheres, teve um episódio peculiar. Não foram as inevitáveis bocas às juízes, como “fiz eu cem quilómetros para ver estas duas abéculas”, mas, curiosamente, uma outra decisão da equipa de arbitragem.
Mostraram o cartão branco de fair play à equipa da Ilha porque Diana Quinta, futebolista do clube do concelho de Pombal, admitiu que um canto marcado em seu favor era, afinal de contas, um pontapé de baliza para a Maceirinha. E, assim, a verdade desportiva prevaleceu.
Uma atitude que em nada surpreende Simão Cardoso. “Elas são mais honestas e há muito mais pureza. Estão ali pelo gosto, de tal forma que ainda é difícil aplicar uma táctica defensiva, porque querem é marcar golos. Por outro lado, estão sempre dispostas a aprender, querem saber mais. Por vezes, fazem perguntas tão simples que não temos respostas para lhes dar.”
Exemplo
Todas, ou pelo menos grande parte destas meninas sonham conseguir o que Tita, ou Ana Lopes, conseguiu. E não foi por ser de Pedrógão Grande que os horizontes ficaram alguma vez confinados. Começou pelo futsal nos clubes do norte do distrito. Já no futebol, foi campeã no Atlético Ouriense, jogou no Cadima e na União Ferreirense enquanto concluía o curso de Fisioterapia.
Até que, no início da temporada passada, surgiu o convite do Benfica, quando o gigante da Luz decidiu avançar para o futebol feminino. Não havia forma de dizer não. “É uma honra. Um clube com esta grandeza. Mas é principalmente um privilégio fazer parte desta equipa criada de raiz e que está a fazer uma caminhada gloriosa.”
A paixão, essa, vem de criança. “Está no sangue. Sorria com bola nos pés, ficava feliz por jogar, com o tempo fui percebendo que a felicidade ingénua de criança era o sonho de ser jogadora de futebol.” O pai foi o primeiro ídolo, depois Cristiano Ronaldo subiu na hierarquia.
“Entretanto admiro a competência, a persistência e a resiliência. Gosto de me dar e relacionar com pessoas com estas características”, diz.
Mas esta internacional portuguesa, actualmente com 30 anos, cresceu num período em que o futebol feminino era visto com um olhar mais severo.
Admite, era vista como uma maria-rapaz. “Actualmente vêem uma rapariga a jogar e já acham giro e felizmente que isso acontece, mas sinceramente não me importava nada que me achassem isso. Fui muito feliz no meio dos rapazes da minha turma, dos meus vizinhos… não mudava nada.”
Admite que sentiu discriminação por ser futebolista, mas nunca quis levar isso demasiado a peito. “O foco não pode ser no que os outros dizem, é em nós próprios. Se me falar em igualdade, temos muito caminho pela frente, infelizmente ainda não é como queremos, mas já foi pior. Parece-me que esse preconceito diminui quando as pessoas nos vêem a jogar, nos acompanham e percebem o quanto trabalhamos para sermos quem somos.” Hoje, admite, bem-disposta, que é reconhecida na rua pelos adeptos do futebol, sobretudo os do clube que representa.
A entrada dos clubes grandes no futebol feminino acabou por mudar o paradigma da modalidade em Portugal. “Principalmente a entrada do Sport Lisboa e Benfica veio elevar fasquia. Traz outro tipo de condições as jogadoras. Profissionalização. Visibilidade. Maior competitividade. Mais patrocínios. Maior investimento.”