O domingo é soalheiro, mas o vento frio da serra sopra no Estádio Manuel Donato. Vinte e dois jogadores correm atrás da bola. A União Recreativa Mirense recebe o Grupo Desportivo e Recreativo da Boavista, de Leiria, e uma centena de adeptos vibra na bancada. Assistimos a um jogo do último escalão do futebol distrital. Amadorismo no estado mais puro.
Ali, tudo parece ter sido congelado no tempo. Foi em 1989 que foi inaugurado o campo, uma verdadeira sala de visitas à antiga. Nesse mesmo ano, o clube sagrou-se campeão da 3.ª Divisão de futebol.
Fisicamente, quase tudo parece estar na mesma desde então: o mesmo relvado natural, a mesma vedação, a mesma bancada de cimento pintada de preto-e-branco. E até os membros da claque parecem ser os mesmos dos períodos mais felizes.
Os Black Angels, mostram-se prontos para puxar pelo emblema que têm junto ao coração. Outros assistem à partida confortavelmente sentados no carro, aproveitando um local alto que proporciona uma vista desimpedida. Agarrado à vedação, o presidente dos serranos sofre. O jogo é entre duas equipas que lutam pela subida à Divisão de Honra, o mais alto patamar do futebol distrital.
Há três décadas, o clube de Mira de Aire era temido e disputava de peito aberto as competições nacionais com emblemas de localidades com outra dimensão e maior influência política. Tinha o suporte de indústria têxtil que dava vida e dinheiro à vila do concelho de Porto de Mós.
“Essencialmente, num raio de 40 quilómetros, toda a gente queria jogar no clube”, conta António Lima, antigo jogador e treinador do clube e presidente há dois anos e meio. Hoje, já não é assim.
O “entusiasmo da vila”, “muito bairrista” puxava as equipas para a frente, com jogadores escolhidos a dedo por quem sabia da matéria. Antes de ser inaugurado o Manuel Donato, a equipa jogava no velhinho campo da Fiandeira, “onde os adversários tinham receio de jogar devido ao ambiente feroz”. Do terreno de jogo, que como o nome indica pertencia à Fiandeira Mirense, restam as balizas enferrujadas e as ruínas dos balneários.
“Era uma altura em que se ia para todo o lado com o Mirense. A Fiandeira era no centro da vila e os velhotes iam lá mais, mas quando viemos jogar cá para cima começaram a afastar-se. Chegou a arranjar-se um autocarro para levar as pessoas até ao novo campo, mas já não era a mesma coisa”, explica Vítor Marques.
Na terra, serão poucos os que o conhecem pelo nome, mas se falarmos em Pascácio já ficarão elucidados. A alcunha vem do tempo do avô e já passou cinco gerações, até aos netos. Pascácio começou a ser roupeiro do clube em 1980 e, também ele, está de regresso aos afazeres da bola.
“Tive quatro AVC e já andava ao pé dos velhotes quando o senhor Lima, o presidente – está a ver quem é? – me chamou. Foram as minhas melhoras totais. Comecei a andar, comecei a conduzir e espero continuar a ser o roupeiro até Deus me levar. Mas olhe que não vale a pena ser-se roupeiro se não se gostar. Adoro ver os jogadores bens equipados, bem engraxados, todos de igual e sem meias rotas.”
O ano da mudança do pelado da Fiandeira para o relvado do Manuel Donato foi absolutamente histórico. Em 1988/89, a Armada Invencível conquistou o título nacional da 3.ª Divisão sem qualquer derrota e na temporada seguinte conseguiria a melhor classificação de sempre no segundo escalão do futebol português, ao ser oitavo.
O actual treinador, Cabé, fazia parte da equipa. Foram oito anos de pujança, em que vestiram as cores do clube nomes conceituados do futebol português, como o guarda-redes Paulo Santos, Casquilha, Rui Ferreira, Sérgio Lavos ou Cabumba.
Depois, os têxteis “levaram um tombo”, o que “ajudou à decadência”. “Se calhar, o Mirense andou em patamares demasiado altos para a vila que é e isso pagou-se caro”, admite António Lima. O clube perdeu gás. [LER_MAIS] No início do milénio ainda teve uma passagem pelas provas nacionais, mas sem grandes resultados.
Com imensas dívidas, chegou a estar em hasta pública e ia aparecendo e desaparecendo das competições. Viveu nas “ruas da amargura” e tornou-se num “gigante adormecido”. Até agora.
O intervalo chega com 0-0, mas a equipa da casa marcou o golo da vitória nos momentos iniciais da segunda parte. Agora, é líder isolado. Pascácio explica-nos o truque. “Na primeira parte devemos jogar sempre contra o vento, que é quando há mais força. Já quando o José Dinis e o Vítor Manuel eram os treinadores era assim. Depois, na segunda parte, é para jogar melhor, com toque de bola. Como vê, mais uma vez deu resultado.”
Sede é prioridade
"Actualmente, o Mirense nada deve”, orgulha-se António Lima. Elogia a anterior Direcção por ter saneado as contas, mas voltar a fazer um clube relevante é tarefa para os actuais órgãos sociais. Têm trabalhado para que isso aconteça, tendo noção que os apoios jamais serão os de outrora. Nestes quase trinta anos, as unidades industriais perderam grande parte da expressão e 10% da população viu-se obrigada a migrar.
“Os têxteis já não contam para o totobola. Quarenta por cento do orçamento do Mirense é proveniente das tasquinhas das Festas de São Pedro, em Porto de Mós. Quando chegámos tínhamos dez sócios pagantes e agora temos duzentos”, explica António Lima. A restante verba é proveniente das cinquenta publicidades existentes no estádio e dos subsídios da autarquia de apoio aos escalões jovens.
“Quando entrámos, há dois e meio anos, propusemo-nos recuperar o clube, sem pressas e de forma consistente”, diz o responsável. “Estava tudo em muito mau estado e criámos um departamento para obras e manutenção. Devolvemos a dignidade ao estádio, fizemos uma sala de troféus e um bar, e estamos a trabalhar numa sede, algo que o clube não tem há mais de duas décadas e que esperamos inaugurar a curto prazo. Ou seja, queremos que o clube cresça, mas não apenas no âmbito desportivo.”
E foi assim que criaram o slogan Mais do que União, uma paixão, e deram à luz o Mirinho, a mascote meio morcego, meio humano. A vila está a “aderir em força” a esta nova vida da União Mirense. O número de atletas já chega aos 200, com destaque para o voleibol, modalidade que adoptaram após ter sido feita uma prospecção pelas escolas e que serviu, acima de tudo, para atrair o sexo feminino.
“Esta é uma Direcção de trabalho e não de mecenas”, enfatiza António Lima. “Era um gigante adormecido e com a ajuda de todos – emigrantes, comerciantes, restauração – tem estado a sair do buraco. Subir? Sentimos que temos o pássaro na mão e não o queremos deixar fugir. Desejamos para o ano estar na Divisão de Honra distrital e depois vamos analisando, perceber se podemos pensar numa subida aos campeonatos nacionais. Sem pressas, queremos chegar o mais longe possível, mas agora a prioridade é concluir a sede.”