Tinha 14 anos quando começou a trabalhar no Pinhal do Rei. Foi resineira, cortou mato e colaborou na serração. Com uma vida profissional dedicada à Mata Nacional de Leiria, Elisa Évora é uma das poucas moradoras do bairro de Pedreanes, aglomerado de casas florestais, que resiste numa das entradas da cidade da Marinha Grande, onde se guardam memórias de tradições, ofícios e lugares que se esfumaram.
O incêndio florestal de 2017, o declínio de muitas profissões associadas ao pinhal e o próprio abandono das casas das matas, muitas delas agora vazias e degradadas, são alguns dos seus lamentos.
Elisa, de 62 anos, é natural de Moinhos de Carvide, mas foi na Mata Nacional de Leiria, no concelho da Marinha Grande, que começou a trabalhar quando era ainda adolescente. Resineira foi a sua primeira função. “Éramos umas 30”, recorda a antiga funcionária, que conhecia todos os recantos, vales e montes do pinhal. “A zona da Ponte Nova é só encostas. Às vezes,[LER_MAIS] quando já íamos no cimo, virava-se a lata cheia de resina”, lembra Elisa, que, apesar da dureza das tarefas, gostou sempre dos ofícios ao ar livre.
“Depois fui para o corte do mato. Eram duas camionetas carregadas de gente. Agora não há ninguém”, lamenta. “Também trabalhei na serração, em Pedreanes, e no Parque do Engenho. Despejávamos as pinhas, no Verão tirávamos as ramas de cima, para as secar, tirávamos o penisco (semente de pinheiro bravo) e semeávamos”, relata Elisa.
Por trabalhar nas matas, candidatou- se a uma casa do bairro de Pedreanes. Foi há quase 40 anos. Passou a pagar renda ao Estado e por ali ficou. A partir do momento em que se reformou, deixou de pagar renda – como sucedeu com todos os inquilinos aposentados das matas – e por ali tem ficado. Teve, entretanto, possibilidade de comprar um apartamento, mas é perto da floresta que se sente bem.
Agora os moradores do bairro falam menos entre si. Até porque são hoje muito menos do que outrora. “As pessoas deixaram de habitar as casas. E nalgumas, que ficaram vazias, é só vandalismo”, expõe a moradora. Com ela vive o companheiro, Fernando Jesus, aposentado da cimenteira da Maceira. “Nem daqui por 100 anos vamos ter um pinhal como havia”, lamenta Fernando, que lembra os dias em que passeava com a mulher por entre árvores, onde tudo era “bonito e cheio de sombra”.
Maria Adélia Santos, de 87 anos, é uma das poucas moradoras cujo agregado familiar não teve ligação profissional à mata. Chegou a Pedreanes, vinda de Angola. “Como não havia casas disponíveis noutros sítios, o meu marido pediu esta.” Consegue contar quem ainda está e quem já partiu do bairro.
Recorda os tempos em que cada moradia tinha uma família com muitos filhos. Era um local animado, onde todos se davam bem. De vez em quando, havia encontros nas eiras e saltava-se à fogueira, conta Maria Adélia. “Os rapazes e raparigas iam aos bandos para as escolas.” E, entre a vizinhança, chegaram a fazer-se casamentos.
Maria Adélia enviuvou. Vive com a sua nora, Rosa, de 68 anos, já viúva também. Na sala, onde a fogueira estala para aquecer a manhã, a octogenária diz que “as matas estão muito tristes” e que agora até é preciso poupar a lenha, que o incêndio 2017 reduziu a “muito pouco”.
O menino que ajudou a construir o bairro
Tinha 10 ou 11 anos, quando Gabriel Roldão ajudou a transportar, de bicicleta, muitos vidros que fizeram as janelas do bairro de Pedreanes. Foi no final da década de 40, a Europa tinha acabado de sair da Segunda Grande Guerra e a maioria das famílias portuguesas atravessava dificuldades financeiras resultantes desse conflito, recorda o historiador da Marinha Grande.
Depois de terem deixado os dois filhos mais velhos avançar nos estudos, os pais de Gabriel Roldão já não tinham condições de manter mais uma criança na escola. Assim, mal terminou a quarta classe, começou a trabalhar no armazém de vidros que o avô tinha na Marinha Grande, conta Gabriel Roldão, que só mais tarde havia de prosseguir estudos.
Detentor de cerca de 18 mil documentos referentes ao concelho, o historiador explica que foi durante a administração florestal de António Arala Pinto, que se determinou a construção de cerca de 50 casas das matas na Marinha Grande, a maioria no bairro de Pedreanes, mas também no bairro da Guarda Nova e mais algumas distribuídas pelo pinhal.
O bairro de Pedreanes estava localizado estrategicamente num dos pontos de saída da vila, próximo do pinhal, onde ficavam também serrações, espaços de armazenamento de madeira, oficinas mecânicas, etc. Estas eram casas ocupadas por guardas florestais e suas famílias, mais tarde pelos seus descendentes.
Um dos emblemas de Pedreanes foi o comboio de lata, que por ali passava. Gabriel Roldão salienta que, antes desde comboio, o escoamento da madeira do Pinhal do Rei já era feita através de caminho-de-ferro, mas com recurso a tracção animal. Entre 1923 e 1965, esse transporte de madeiras foi assegurado por uma locomotiva a vapor.
“Grande quantidade da madeira saída da serração de Pedreanes destinava-se a Inglaterra e servia para suster a abertura das minas de carvão”, conta o historiador, que defende que o antigo comboio deveria ser recuperado e adaptado, talvez com motor a diesel, para fins turísticos.
Das 31 casas de Pedreanes, 13 estão desocupadas Contactado pelo JORNAL DE LEIRIA, o Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) explica que existem actualmente 31 casas das matas em Pedreanes, das quais 13 estão desocupadas. Entre as que estão a ser usadas, nove estão habitadas, duas estão a ser utilizadas pelos serviços do ICNF, quatro estão abrangidas por protocolos e três estão integradas num estudo para reconversão em arquivo da Direcção Regional de Conservação da Natureza e das Florestas do Centro (apesar de estarem classificadas como casas florestais, funcionavam como estação do comboio). Diz ainda que está a trabalhar na revitalização daqueles imóveis. “Tem vindo a estabelecer acordos de parceria e de cedência de construções da propriedade e/ou gestão deste instituto, com várias entidades. Seja para utilização com interesse público – como acontece no caso de Lagos, para a instalação de um centro de interpretação ambiental- seja no caso de outros municípios, para lançar parcerias com entidades dos concelhos, como o caso da Cruz Vermelha Portuguesa, seja ainda no caso do Fundo Revive Natureza, em que se procura a rentabilização turística do património público”. Além disso, acrescenta, “na sequência de uma proposta do ICNF, o ministro do Ambiente e da Acção Climática deu orientações, há cerca de três semanas, para se fazer o levantamento do património do instituto, de forma a podermos ponderar o lançamento de um programa de reabilitação do edificado e posterior avaliação do seu potencial, nomeadamente para habitação”.