Pedra sobre pedra, sem qualquer elemento de ligação. Nem barro, muito menos cimento. Apenas a força braçal e muita técnica na colocação dos sedimentos. Assim se construíram, ao longo dos séculos, os característicos muros do carso de Sicó, que estão a desaparecer, em consequência do abandono do mundo rural, mas também de furtos e da retirada de pedra para outras construções e de demolições para o alargamento de caminhos.
As associações ligadas ao património defendem, por isso, uma maior sensibilização para a importância deste património e a criação de medidas e de apoios que promovam a sua preservação.
Arqueóloga e vice-presidente da Al-Baiäz – Associação de Defesa do Património, sediada em Alvaiázere, Catarina Mendes não tem dúvidas que este traço identitário de Sicó “está ameaçado”, sobretudo, devido ao abandono dos campos e despovoamento das aldeias.
“O abandono leva à degradação”, afirma a técnica, frisando que, ao facto de “não haver quem recupere”, há a acrescentar as destruições que se fazem “a coberto” de obras de reabilitação. “Deita-se abaixo, para reconstruir com outros materiais, como tijolo e cimento”, constata.
O problema, alega Sérgio Medeiros, do GPS – Grupo de Protecção e Sicó e que, profissionalmente, está ligado a um gabinete de projectos, é a “ausência de regulamentação que proteja os muros tradicionais”, em sede de regulamentos de urbanização e de edificação.
“Em alguns municípios, esta questão está omissa e, naqueles onde até há algumas regras, falta fiscalização”, lamenta o técnico, para quem os regulamentos deviam ser “mais específicos” na obrigatoriedade de as reconstruções respeitarem os muros tradicionais.
A título de exemplo, Sérgio Medeiros refere o Regulamento Municipal de Urbanizações e Edificações de Pombal, que, sobre os sistemas de vedação pré-existentes, determina que “deverão ser mantidos e recuperados” aqueles que tiverem construção tradicional e que se localizam dentro da Rede Natura.
[LER_MAIS] “No terreno, muitas vezes, essa recomendação não é cumprida e o que acontece é que os muros existentes são destruídos e substituídos por muros em betão ou de tijolo que, em alguns casos, são forrados com pedra”, diz. E não são só os privados a não seguir essa recomendação, denúncia João Forte, geógrafo, que aponta também responsabilidades às autarquias.
“Há muitos sítios onde os muros foram arrasados para fazer estradas ou alargar caminhos com a desculpa da prevenção de incêndios. Se se fizerem os caminhos mas se não se limpar à volta, fica tudo igual”, afirma o geógrafo, que é também bombeiro voluntário.
Maria Conceição Sá vai a caminho dos 70 anos, todos passados na Bemposta, uma aldeia do concelho de Ansião onde os tradicionais muros de pedra ainda vão resistindo, mas muitos já apresentam sinais de degradação.
“À volta das casas, os que caem ainda vão sendo recuperados, mas nos campos já ninguém volta a pôr as pedras no sítio e muitos estão escondidos pelos matos”, conta a idosa. Segundo diz, o betão também está a ganhar terreno, por ser “mais barato”.
“Um muro em pedra leva muitas horas de trabalho. Fica mais em conta pôr tijolos”, nota a mulher, admitindo, no entanto, que se houvesse apoios, “era natural que as pessoas recuperassem mais, porque fica mais bonito”.
Para a arqueóloga Catarina Mendes, será também importante que as autarquias invistam no estudo e caracterização deste património, que “é testemunho da história da vivência destas povoações”.
A também vice-presidente da Al-Baiäz recorda que estas construções tinham uma dupla funcionalidade: Serviam com “elemento delimitativo” e, nas zona mais altas, “onde os solos eram mais inóspitos”, ajudavam a suster as terras, permitindo alguma agricultura no seu interior. “Não podemos perder a memória”, afirma.
Faltam verbas para repor muros originais
Presidente da Junta de Freguesia de Alvorge, concelho de Ansião, José Barbosa concorda com a necessidade de preservar os muros tradicionais, mas alega que a falta de verbas é um entrave.
O autarca nota que, quando há alargamento de caminhos e as juntas conseguem que os privados cedam terreno para esse efeito, cabe depois às autarquias a reconstrução dos muros.
“Refazer em pedra encarece muito a obra. Fica mais caro do que o alargamento em si, porque exige muita mão-de-obra”, sublinha, reconhecendo, no entanto, que esta dificuldade está contribuir para a destruição de um património importante. “Por este andar, um dia só teremos muros de blocos e vedações em rede”, antevê.
Para evitar esse cenário, João Forte, geógrafo com trabalho na área do património, defende que, além de “mais sensibilização” para a preservação dos muros, que são “um traço identitário da região de Sicó”, o caminho pode passar por tentar candidaturas a fundos comunitários e pela criação de incentivos para os particulares destinados a apoiar a recuperação de muros.
“Se queremos imprimir dinâmicas de desenvolvimento destes territórios, temos de valorizar o que existe e manter os traços identitários”, afirma João Forte, para quem é também importante criar “regras que salvaguardem este tipo de património construído”.