Há 700 anos, em Leiria, o canto e a poesia já iluminavam convívios entre as elites. As mais remotas cantigas profanas de origem portuguesa são atribuídas a D. Dinis e a estreia moderna ao vivo também aconteceu em Leiria, no Castelo, em 1995, pelo colectivo Vozes Alfonsinas, recorda o musicólogo (e membro do grupo) Manuel Pedro Ferreira. É justamente no Castelo que começa no próximo sábado, 6 de Janeiro, o Ciclo de Música Medieval de Leiria, com obras de D. Dinis em destaque lá mais para a frente, a 22 de Junho. São cantigas dos séculos XIII e XIV em que o monarca “compôs tanto a letra como a música”, explica o investigador. “Muito ornamentadas”, todas têm “muita qualidade”. Mostram que o trovador e sexto rei de Portugal (1261-1325) “é um grande poeta”.
Mais: as cantigas de D. Dinis “são a única janela para a composição de cantigas de amor”, afirma o autor do livro Cantus Coronatus, um estudo sobre o fragmento de pergaminho identificado na Torre do Tombo, em 1990, pelo norte-americano Harvey L. Sharrer, com texto e notações musicais de sete cantigas de D. Dinis. “É o documento mais antigo” em Portugal relacionado com a música profana. “Dá-nos uma visão bastante diferente daquela que se imaginava antes da descoberta”, com melodias “muito mais sofisticadas” do que os investigadores esperavam.
O Ciclo de Música Medieval de Leiria vai revelar a música (de vários autores) que se ouvia no Castelo na Idade Média. D. Dinis, com forte ligação a Leiria cimentada pelos períodos vividos na região, “cantava” e segundo Manuel Pedro Ferreira “compunha e explicava [o conteúdo instrumental] ao jogral”. O repertório era geralmente tocado de ouvido e conservado através da experiência e da oralidade. “Os nobres não era suposto saberem tocar e também não era suposto saberem escrever música”. Tinham ao serviço “músicos profissionais”.
Reis artistas
O historiador Saul António Gomes nota que “o ambiente cultural” e os “padrões de educação da alta nobreza” contribuíram para o surgimento de monarcas que são também artistas. “Eram criados assim”. Com natureza religiosa nas igrejas e profana nos salões ou mercados, a música obteve “muita importância” na Idade Média, incluindo nas “actividades cortesãs”, comenta. “Era muito frequente as refeições, particularmente a refeição tomada por volta das 11 da manhã, serem acompanhadas de música, danças e espectáculos”, o que sucedia, igualmente, durante “o chamado serão”, ao final da tarde. “No palácio do rei actuavam os artistas que o rei tinha por sua conta como podiam actuar artistas amigos que apareciam e que vinham por vezes do estrangeiro”.
O património de cantigas de amor, amigo, escárnio e mal dizer, no idioma galego-português, expõe influências mediterrânicas, judaicas, cristãs, muçulmanas, celtas e do Norte da Europa. “Leiria aparece nalgumas cantigas de escárnio”, assinala Saul António Gomes, como no caso do alcaide Martim Fernandes de Urgeses, que é visado pela presumível traição a D. Sancho II e entrega do Castelo a D. Afonso, conde de Bolonha.
Janela para o passado
Até 21 de Dezembro, no Castelo de Leiria, seis concertos e workshops pela mão do TWB Ensemble (The Wandering Bard) com direcção artística de Ricardo Alves Pereira e Esin Yardimli Alves Pereira e produção da Corda Sonora, numa organização do Município de Leiria, abrem a porta para os ritmos e histórias da Idade Média, com melodias e poemas retirados directamente dos cancioneiros que chegaram aos dias de hoje e espectáculos suportados em instrumentos da época como o alaúde, a vielle e as percussões tradicionais.
Uma oportunidade, também, para aprender: as apresentações que antecedem os concertos vão ajudar a desvendar o ambiente social, académico ou religioso, destaca Ricardo Alves Pereira, que dá o exemplo das cantigas de D. Alfonso X, o Sábio, avô de D. Dinis, que sob o pretexto da “adoração a Santa Maria” permitem conhecer decisões políticas e económicas, entre outros aspectos, que “vão muito além da devoção religiosa”. Há, por outro lado, a ambição de revelar “repertório muito pouco interpretado” e “muito pouco gravado”, com que o público pode “surpreender-se” e “desfrutar”.
Na mais importante base de dados de cantigas medievais galego-portuguesas, da responsabilidade da Universidade Nova de Lisboa, estão identificadas 1.680 cantigas profanas ou de corte que chegaram aos dias de hoje, recolhidas em três grandes cancioneiros (o Cancioneiro da Ajuda, o Cancioneiro da Biblioteca Nacional e o Cancioneiro da Biblioteca Vaticana) e da autoria de 187 trovadores e jograis, além de 420 cantigas religiosas, as Cantigas de Santa Maria, atribuíveis a Alfonso X.