“Nunca nos faltou a água, nem mesmo agora com a falta de chuva que vai por aí”. Maria Fernanda Narciso, 72 anos, fala-nos enquanto enche três garrafões no fontanário localizado bem no centro da Mendiga, uma das aldeias serranas do concelho de Porto de Mós, onde a água da chuva é aproveitada e transformada em potável.
Durante várias décadas do século passado, os Telhados de Água – assim se chama o sistema existente na Mendiga e em Serro Ventoso – foram, aliás, o único meio de abastecimento àquelas povoações.
E, mesmo depois da chegada da rede pública, os sistemas mantiveram-se a funcionar e ainda hoje são utilizados pelas populações locais e, no caso da Mendiga, por gente das povoações vizinhas.
“Há pessoas de fora que aqui vêm encher. Dizem que a nossa água é das melhores”, conta Maria Fernanda, que era ainda uma criança quando o sistema da Mendiga foi criado, por iniciativa de Manuel Baptista Amado, regedor da freguesia, com a ajuda de “toda a aldeia”. “Fizeram-se cortejos. Cada um dava o que podia”.
A inauguração aconteceu em 1954, em ambiente de festa. “Foi uma riqueza muito grande para a terra”, recorda a septuagenária, habituada, desde sempre, a aproveitar a água da chuva. Uma tradição que se perpetuou ao longo dos tempos nas Serras de Aire e Candeeiros, que nas suas entranhas guardam uma das maiores reservas de água doce do País, mas que o calcário do maciço aprisiona, só deixando vir à superfície o excedente, através da formação de nascentes cárcicas.
[LER_MAIS] A dificuldade aguça o engenho. E foi isso que, ao longos dos séculos, fizeram as gentes das aldeias serranas de Porto de Mós, para tentar reter, o máximo possível, a água da chuva, seja através de pias, da canalização da água dos beirados para cisternas, de poços que ainda hoje povoam aquelas zonas, ou dos designados Telhados de Água de Serro Ventoso ou da Mendiga.
Aqui, a água é recolhida através de uma lajedo natural (encosta em pedra) para depósitos, depois de passar por várias fases de filtragem. No caso da Mendiga, após ser recolhida na formação rochosa, a água segue para um canal onde existe um primeiro filtro, “cuja base está numa cota superior em relação ao fundo da vala colectora, em alvenaria de tijolo”.
Nesse filtro, ficam retidos os lixos sólidos, enquanto no fundo da vala se acumulam os resíduos de maior densidade. A água percorre depois “um vasto” filtro de areia, pedra e carbono activado e, graviticamente, cai num grande depósito que drena, por outro filtro, para reservatórios mais pequeno que comunicam entre si pelo normal sistema de vasos comunicantes”, pode ler-se no folheto informativo disponível no siteda Junta de Freguesia de Mendiga e Arrimal.
No último depósito, é feito o controlo da qualidade da água que, “por vezes, necessita de normais aditivos minerais”. Daí, a água é canalizada, por queda, para o fontanário existente no centro da povoação, “própria para consumo”.
Qualidade da água controlada
O controlo da qualidade da água dos sistemas é assegurado pelos serviços municipais, através de “análises regulares”, explica Eduardo Amaral, que recentemente assumiu o cargo de vereador do Ambiente na Câmara de Porto de Mós e que conhece bem as estratégias das gentes serranas para contornar a dificuldade de captar água, “agarrando” a que vem do céu.
“Nessas zonas, a água sempre foi um bem escasso. Pelo que, as pessoas foram obrigadas a encontrar formas de a reter”, nota o autarca, enquanto nos guia por algumas dessas aldeias, onde nas casas mais antigas estão ainda bem presentes as memórias desses tempos, com a existência de cisternas, pias – que muitas vezes são simples pedras cavadas – e de poços que serviam para guardar a água da chuvas.
Não raras vezes, criavam-se “sistemas de poços interligados permitindo que, quando um enchesse, passasse para o seguinte”, explica Eduardo Amaral, adiantando que, nalguns casos, as próprias eiras, que no Verão serviam para secar os cereais, no Inverno eram aproveitadas para recolher água, encaminhada depois para poços.
“Antes, quando se faziam uma casa, construía-se quase sempre uma cisterna ao lado”, recorda Maria Fernanda Narciso. No seu caso, veio um pouco mais tarde – porque “o dinheiro não chegou” -, mas ainda hoje é utilizada, apesar de a habitação já estar ligada à rede pública.
“Serve para regar e fazer lavagens”, refere a mulher, que reside a poucos quilómetros do fontenário da Mendiga. Actualmente, nas zonas serranas do concelho onde já chegou a rede de saneamento, há nova “versão” de cisternas, com “o aproveitamento das fossas para fazer a acumulação da água da chuva para regas”, conta o vereador do Ambiente.
Segundo o autarca, a Câmara tem procurado sensibilizar os munícipes para importância de se ligarem à rede pública de água, mas, nota, isso não invalida que se continuem a usar os outros sistemas para utilizações que não o consumo humano.
“Porto de Mós tem de pensar seriamente em fixar água”, afirma Eduardo Amaral, revelando que, além das medidas de poupança já implementadas (ver caixa), o município está também a fazer, com o apoio do Núcleo de Espeleologia de Leiria, um estudo de georeferenciação de “grandes espaços de contenção subterrânea de água” na zona do maciço calcário.
O objectivo, explica o vereador, é identificar pontos onde, “numa situação extrema, se possa captar água”. Isso implica que, além da georeferênciação, sejam feitas análises para saber que “tipo de água existe e qual a sua qualidade”.
“A actual situação de seca está a fazer-nos olhar para um problema que as freguesias serranas de Porto de Mós sempre tiveram e que aprenderam a contornar. É fundamental que este saber passe para as gerações futuras”, conclui o vereador.