Há poucos países com tanta tradição no corta-mato como Portugal. No entanto, os tempos já não são de glória, como há três décadas. Com o passar dos anos, quenianos e etíopes tomaram conta da disciplina, mas as medalhas e taças conquistadas por Carlos Lopes, Paulo Guerra, Albertina Dias ou Ana Dulce Félix continuam a fazer brilhar o palmarés do País.
No próximo domingo, em Samorín, Eslováquia, vai realizar-se a edição deste ano do Europeu de corta-mato. Entre os 25 atletas convocados para representar Portugal nos vários escalões etários está uma miúda júnior do Arneiro do Pisão, pequena localidade do concelho de Pombal entre Santiago de Litém e Vermoil.
Manuela Martins tem 19 anos e só quando ingressou no ensino superior em Lisboa, há pouco mais de um ano, é que começou a dedicar-se a sério ao atletismo. Antes, tinha sido sprinter e lançadora do Atlético Clube de Vermoil, mas a prioridade era o andebol no Colégio João de Barros, tendo chegado a representar durante uma temporada a equipa sénior na 1.ª Divisão.
“A minha mãe já não comia carne vermelha, mas agora é vegetariana. O meu pai ainda não, mas é totalmente apaixonado pela culinária vegetariana”
Quando rumou à capital, o clube fez um protocolo com a SIR 1.º de Maio e os treinos passaram a ser na Marinha Grande. “Fora de mão”, a carreira ficou-se por ali. Perdeu-se uma boa andebolista, ganhou- se uma grande atleta.
Começou por dar umas corridas diárias em Lisboa, mas o pai, ligado à modalidade, arranjou-lhe um treinador, Álvaro Costa, e um clube, o Maratona, “para estar orientada”. Sonhava com a presença no Europeu de corta-mato e foi para isso que se preparou nos últimos meses. No apuramento, em Torres Vedras, foi a terceira melhor júnior e garantiu um lugar na comitiva.
“Sempre foi um objectivo, mas se há dois meses me perguntassem se conseguia dizia que não. Estou a treinar para isso, treino tanto ou mais do que as outras, mas tendo um ano de atletismo não tenho a estaleca das outras.”
No entanto, não é o facto de ser uma atleta que vai somar a primeira internacionalização com tão pouco tempo dedicado ao meio-fundo que a torna especial. Na verdade, o percurso desportivo chama a atenção por se tratar de uma atleta… vegana.
“Comecei por cortar as carnes vermelhas há uns quatro anos e meio, mas na altura nem sabia o que era vegetarianismo ou veganismo. Mais tarde foram as carnes brancas, depois os derivados, como o leite ou os ovos, até que deixei de comer tudo”
Manuela decidiu assumir uma forma de vida que exclui todas as formas de exploração e de crueldade contra animais, seja para alimentação, para vestuário ou qualquer outra finalidade. Não é difícil calcular o curso que está a tirar em Lisboa, pois não?
Depois de um ano numa licenciatura de que “não gostava”, conseguiu entrar em Medicina Veterinária. “Sempre tive uma enorme paixão por animais e nunca consegui ver aquilo a que estavam sujeitos”, revela a atleta.
Ainda para mais, os avós faziam criação de vários animais e o dia da matança era sempre passado longe de casa, para evitar todo aquele frenesim. A mudança da alimentação foi “gradual”.
“Comecei por cortar as carnes vermelhas há uns quatro anos e meio, mas na altura nem sabia o que era vegetarianismo ou veganismo. Mais tarde foram as carnes brancas, depois os derivados, como o leite ou os ovos, até que deixei de comer tudo.” Manuela é vegana há três anos. A família aceitou sem problemas, sabendo que todo aquele processo lhe causava desconforto.
Entretanto, no quintal, os porcos de criação foram trocadas por duas porquinhas vietnamitas “de estimação”
“Reagiu muito bem” à mudança, diz. De tal forma que todos acabaram por alterar os comportamentos. “A minha mãe já não comia carne vermelha, mas agora é vegetariana. O meu pai ainda não, mas é totalmente apaixonado pela culinária vegetariana. E é curioso, porque os meus avós também comem e gostam.”
Entretanto, no quintal, os porcos de criação foram trocadas por duas porquinhas vietnamitas “de estimação”. As cabras e as ovelhas desapareceram e as galinhas e os coelhos viram o seu [LER_MAIS] número reduzido em grande medida. Por outro lado, a horta da avó está muito mais rica. “Tem toda uma plantação de legumes e frutas e acaba por ser muito porreiro para mim. Passou a plantar beringelas, batatadoce, várias qualidade de tomate”… Interferência?
Ora, esta opção, na opinião de Manuela Martins, em nada interfere no seu rendimento. “Controlo tudo para que nada falhe. Sei que tem de haver essa preocupação e que tenho de fazer análises constantes.
Há pouco tempo tive os valores de ferro ligeiramente baixos para a quantidade de treinos e esforço, que são muito grandes, e tive de tomar suplementos.” A solução passa por estar atenta.
“Consumo muitos frescos, mas também aqueles substitutos, como o tofu ou a soja, que as pessoas pensam que têm de estar presentes em todas as refeições. Não o faço todos os dias, mas são uma boa fonte de proteína. Tento é fazer junções, como leguminosas com cereais integrais, que proporcionam uma boa fonte de proteína vegetal. São coisas que vamos aprendendo, porque temos de ter atenção que há que ter cuidados, ainda para mais sendo atleta, para que não haja um défice.”
Leonor Santos Loureiro, nutricionista “Se houver um plano de alimentação adequado, não interfere no rendimento”
Só ocasionalmente o veganismo é associado à alta competição. Porquê?
Diria que hoje em dia já não é apenas ocasionalmente. Cada vez mais se vêem atletas de elite a adoptar por este tipo de dietas, mas sim, a maioria ainda opta por uma dieta omnívora. Porquê? Porque o 'normal' é serse omnívoro e ainda há quem acredite que uma dieta vegana não é saudável, completa e equilibrada ao nível de macro e micronutrientes.
Esta opção alimentar tem interferência no rendimento dos atletas?
Requer cuidados redobrados e acompanhamento por parte de um profissional especializado na área. Se o atleta tiver um plano de alimentação adequado às suas necessidades, não interfere no rendimento. O atleta deve fazer regularmente análises sanguíneas, para garantir que não existe nenhuma carência, e cumprir as recomendações dadas, quer a nível alimentar, quer de suplementação.
“Todos os alimentos são fundamentais, porque nenhum é exactamente igual ao outro. A regra básica é que a alimentação seja equilibrada, variada e completa”
De que forma é que um atleta vegano consegue aportar todos os nutrientes suficientes para responder às exigências da sua actividade física?
Ao nível dos macronutrientes, a principal preocupação será o aporte correcto de proteína e ómega 3. Para se conseguirem todos os aminoácidos necessários, a proteína deve ser obtida através do consumo de leguminosas juntamente com cereais. O consumo de frutos oleaginosos também é fundamental, porque ajuda a combater a falta de ómega 3, juntamente com outros alimentos, como a linhaça. No que toca a vitaminas e minerais, será necessário usar alguns suplementos ou alimentos fortalecidos. A vitamina B12, a vitamina D, o ferro e o iodo são os principais micronutrientes que normalmente estão em défice nestes atletas. As vitaminas B12 e D necessitam, pois, de uma suplementação. Relativamente ao iodo, é possível aumentar a sua ingestão com sal iodado. Quanto ao ferro, está presente em alimentos vegetais, No entanto, não é tão bem absorvido pelo nosso organismo. Uma forma de potenciar a sua absorção é juntar alimentos ricos em vitamina C ao alimentos ricos em ferro.
A suplementação é, então, fundamental para este tipo de desportistas?
Há suplementos que são fundamentais: a vitamina B12, a vitamina D e o ferro, principalmente se se tratar de uma mulher. A toma de ómega 3 também é importante, porque hoje em dia o rácio entre ómega 6 e ómega 3 está muito desequilibrado. Por outro lado, o consumo de ómega 3, que é extremamente importante para combater a inflamação derivada do exercício, é mais difícil nos veganos. Torna-se também muito vantajoso o uso de suplementos proteicos, pois ajuda a atingir as necessidade diárias muito mais facilmente. A creatina é um suplemento que também pode ser benéfico em algumas modalidades, já que as suas fontes derivam da carne.
Há alimentos fundamentais para os veganos?
Todos os alimentos são fundamentais, porque nenhum é exactamente igual ao outro. A regras básica é que a alimentação seja equilibrada, variada e completa.
Há algum tipo de modalidade que se adeque mais ao estilo de vida de um vegano?
Não. Todas as modalidades são adequadas para um vegano.