Há uma boa dose de loucura e os acontecimentos desenrolam-se visceralmente ao ritmo da paixão, da traição, do desgosto e da vingança. Medeia mata os próprios filhos, Julieta (essa mesmo) e Antígona suicidam-se e a Castro (Inês) morre degolada. No meio da escuridão e da tragédia, eleva-se a escrita luminosa de Eduarda Dionísio, numa produção que O Nariz apresenta em estreia absoluta no próximo domingo, com encenação de Francisca Passos Vella e música original de Diogo S. Pereira.
Antes que a Noite Venha data de 1992 no Teatro da Cornucópia, numa encenação de Adriano Luz, com as actrizes Luísa Cruz, Rita Blanco, Maria João Luís e Márcia Breia.
Na obra de Eduarda Dionísio que resgata personagens desde a antiguidade clássica, o afecto produz a morte com requintes de malvadez, como quem condena amores proibidos ou não convencionais, o que não impede o elenco reunido em Leiria de lhe reconhecer a poesia, a beleza e até um lado contemporâneo.
A peça (nesta versão com o título Noite) junta pela primeira vez as actrizes Francisca Passo Vella (Castro), Ana Moderno (Antígona), Lisa Teles (uma estreia no teatro, faz de Julieta) e Vânia Jordão (Medeia), que adaptaram o texto em conjunto e procuraram respeitar o apelo da autora: “Encarem-nas como as mulheres que são e vivam-nas como as mulheres que são”.
Noite vai a palco no Recreio dos Artistas – Espaço O Nariz (23 de Outubro, 21:30 horas) e faz parte da programação do festival Acaso, que, precisamente há um ano, recebeu uma antevisão do espectáculo.
“Sempre quis muito fazer esta peça”, comenta Francisca Passos Vella. “É a primeira vez que estas personagens são escritas por uma mulher”, realça, o que “altera a perspectiva que o público possa ter”. Não se espere, no entanto, um panfleto feminista ou um auto de comiseração. “Nós, mulheres, não podemos ser sempre as vítimas, também somos carrascos”.
O espírito está bem presente na interpretação de Lisa Teles, que ao contrário da Julieta tradicional, entrega uma Julieta que “não é inocente” nem “ingénua”. É a determinação da Castro – numa “espera constante” do “juízo final” – e de Antígona – que “desenterra o irmão” porque “procura justiça” e “um fim digno” – que lhes dita o destino. Já Medeia é alguém que “deu toda a grandeza a um homem” e não aceita ter sido “traída, humilhada e maltratada”.
“O que as liga é o amor”, resume Vânia Jordão. Outro tópico que atravessa o espectáculo é a morte, “um mundo sombrio e escuro”, a própria noite.
Só o branco dos figurinos e do cenário, e a luz projectada por pequenas lanternas, contrariam a negritude em palco, que a música composta por Diogo S. Pereira (antigo guitarrista dos Iodine) acentua, “como se fosse um filme”, com “uma identidade musical” para cada um dos monólogos.
As quatro mulheres “têm um mau fim”, reconhece Francisca Passos Vella, mas a nova produção d’O Nariz escapa ao tom trágico e procura outros sublinhados. Numa pesquisa que atravessou a pandemia, o processo conduzido pela encenadora baseou-se em sucessivas imersões ao longo dos ensaios que permitiram individualizar o trabalho e explorar o sentido e a fisicalidade de cada personagem. Descobrir, até, leituras que se interligam com a actualidade. Para confirmar no próximo domingo, enquanto não chega a versão 2.0 em registo de comédia, hipótese de que já se fala nos bastidores.