O que é o Sound Particles e como surgiu a ideia para o criar?
Há vários anos que existe software que permite aos estúdios de cinema criar digitalmente 200 monstros ou mil guerreiros virtuais para uma cena, mas não existia algo que simulasse o som produzido por eles. O que fizemos foi criar um software que trata essa parte. Quando se trabalha na sonoplastia de uma batalha, a abordagem tradicional é agarrar num editor de áudio e começar a juntar um tiro aqui e outro acolá, uma metralhadora, uma explosão e, talvez, ao fim de um dia de trabalho, haverá 50 sons inseridos. Com o Sound Particles, em 15 minutos, pode-se dizer ao programa que queremos dez mil sons espalhados por uma área de um quilómetro quadrado e importar 400 sons de guerra. Em minutos, terei dez mil sons a tocar, em vez de demorar um dia para ter 50. Isso traz vantagens de produtividade, de escala e na qualidade do som, que é muito mais natural e realista. Como foi que isto começou? Tenho uma paixão pelo cinema e, há cerca de 15 anos, apercebi-me que os efeitos visuais mais interessantes usavam sistemas de partículas, uma técnica de computação gráfica onde se cria milhares de pequenos pontos para simular fumo, tempestades de areia, fogo ou pó de fada…. Pareceu-me interessante usar a mesma técnica no áudio e criar milhares de pequenos sons que, juntos, comporiam uma sonoridade fantástica. Mas foi só uma ideia, como tantas outras que temos ao longo da vida.
Como deu o salto para Hollywood?
Em 2012, após ter terminado o doutoramento noutra área e como ainda ninguém utilizava sistemas de partículas para o som, resolvi criar o meu próprio simulador 3D com partículas, nos meus tempos livres. Passados dois anos, como ia a Los Angeles a uma conferência, aproveitei e enviei alguns emails, para cinco ou seis pessoas da área, a explicar que estava a trabalhar neste projecto, que entendia que seria interessante para grandes produções e que iria estar na vizinhança, se estivessem interessados. O primeiro a responder foi o Skywalker Sound, o estúdio de som para cinema criado por George Lucas, aquando da Guerra das Estrelas, e que é, actualmente, o maior e mais conceituado. Convidaram-me a ir ao Skywalker Ranch fazer uma apresentação à equipa de sound design. Fui lá e, em seis meses, dei palestras na Warner Bros., Universal, Paramount, Sony, Fox, Disney/Pixar…
Não receou que lhe roubassem a ideia?
Estes estúdios não querem criar software. Querem ter produtos para utilizar. Não têm equipas de desenvolvimento para criar um software que faz isto e aquilo. Além disso, as pessoas acham que é importante ter uma boa ideia, mas, cada vez mais, sinto que o que é importante é a implementação. Houve várias pessoas a ter a ideia de criar redes sociais. O Facebook, que nem sequer foi a primeira a existir, é que se destacou, pela implementação realizada. Quando fui aos estúdios, ainda só tinha um protótipo, no entanto, perguntaram-me logo quando é que poderiam começar a “brincar” com aquilo. Pedi-lhes um mês ou dois para limar algumas arestas. Passados dois meses, enviei uma versão beta para começarem a testar. O primeiro estúdio a fazê-lo foi o Skywalker, mas o primeiro filme a usá-lo foi o remake do Poltergeist, para criar o som dos fantasmas. Após lançar uma versão pública do software, criei a empresa Sound Particles no final de 2016. Entretanto, houve investidores que apostaram em nós, o que nos permitiu acelerar e alargar a equipa. Somos 30 pessoas neste momento, quase todas em Leiria. Temos mais uma pessoa em Londres e outra em Los Angeles.
O que se segue? Bollywood?
Já fizemos os primeiros contactos com a Índia. Há um ano, começámos a trabalhar com a Ásia e com distribuidores no Japão, Coreia do Sul e na China. Agora, avançámos para a Índia. Começámos por Hollywood porque sempre gostei da abordagem do “top down”. Ou seja, começar pelo topo e depois vir descendo, pois é mais fácil do que a luta constante de subir um degrau de cada vez. Por vezes, o topo não é assim tão mais difícil de convencer, em comparação com um cliente cá em baixo. E a vantagem, quando temos alguém de topo, é que podemos utilizar esse trunfo para convencer toda a gente abaixo.
O Sound Particles ter sido utilizado em quase todos os sucessos dos últimos anos, como Dune, Cars, Guerra das Estrelas, Game of Thrones, Stranger Things, corrobora isso?
Sim. É muito mais fácil contactar um sound designer e ele pensar que “se isto é bom para o Star Wars, também é bom para mim” do que chegar a alguém do Star Wars e dizer que alguém de um filme independente usou o nosso software.
Pode dizer-se que a Sound Particles é uma das grandes empresas na área do cinema em Portugal?
Estamos a dar um pequeno contributo para a indústria do cinema. O que fazemos está particularmente vocacionado para grandes produções. Embora o software Sound Particles possa ser utlizado em qualquer tipo de produção para simular o som de um restaurante ou de uma rua, a mais-valia é usá-lo em grandes cenários, como batalhas épicas, porém, esse não é o tipo de cinema que se produz em Portugal, que é de autor e de tamanho limitado. Somos, quase, mais conhecidos lá fora, embora, há uns anos, tenhamos recebido o prémio técnico da Academia Portuguesa de Cinema. Interagimos mais com Los Angeles do que com o cinema em Portugal, tendo em conta o pequeno tamanho do mercado nacional.
Após este software áudio, o que se segue? O mercado dos sistemas de som está forte. Em 2014, a Apple gastou três mil milhões de dólares para comprar a Beats… é um mercado apetecível?
É! É um mercado que, nos próximos cinco anos, deverá passar de cinco mil milhões a 15 mil milhões, por ano. Toda a questão do 3D áudio, que vai dos auscultadores aos sistemas de cinema e de cinema em casa, está a ser muito explorada. O som 3D começou no cinema, com o Dolby Atmos, e a Netflix, uma das impulsionadoras do streaming, tem som 3D até em programas de culinária, com som a vir do tecto, de trás, de frente e de lado…. Na música, a Apple, ainda no ano passado, lançou o Apple Music com suporte para spatial audio, que permite ouvir música e ter essa sensação 3D. E há as áreas dos videojogos e realidade virtual, que também dependem disso tudo. Nós estamos a trabalhar no Sound Particles, o nosso produto principal que é uma aplicação de nicho para profissionais e grandes produções, para transformá-lo num produto de massas que possa ser usado por qualquer pessoa que necessite de um editor de áudio 3D. Ao mesmo tempo, estamos a desenvolver plugins, pequenos softwares usados para fins específicos, o que nos permitiu entrar no mercado da música, no ano passado. Temos clientes que vão de Peter Gabriel a Jean-Michel Jarre ou Hans Zimmer. Estamos ainda a trabalhar noutro desafio 3D. A maior parte das pessoas não tem 30 colunas para colocar na sala e usam cada vez mais auscultadores, seja para ver um filme no tablet, ouvir música ou jogar. Há soluções 3D para headphones, mas a qualidade não é boa, pois cada pessoa tem orelhas diferentes e o sistema precisa de se adaptar a elas. Estamos, por isso, a criar a nossa própria tecnologia de som 3D, com auscultadores. O problema é extremamente complexo e já mais de 100 doutoramentos foram feitos na área e ninguém conseguiu resolvê-lo satisfatoriamente. Nós, na nossa ingenuidade, acreditamos que conseguiremos. Sabemos que há uma grande probabilidade de falharmos, mas queremos experimentar. Se conseguirmos, será um passo gigantesco e poderemos licenciar a tecnologia a plataformas de streaming, a fabricantes de hardware e a companhias de videojogos. E o mercado é gigantesco.
São soluções que passam pelo emprego de Inteligência Artificial (IA)?
Precisamos da IA para a massificação. Para a simulação das orelhas e de todos os pormenores, precisamos de máquinas muito poderosas que precisam de um dia para processar tudo. Assim não é massificável. Não podemos abordar a Netflix assim. Imagine-se que se pretende chegar a 30 milhões de utilizadores deles, que são apenas uma pequena parte do total e necessitar de 30 milhões de dias ou 30 milhões de máquinas para processar tantas orelhas…. Não é escalável. É por isso que precisamos de IA. Em vez de estarmos a fazer todas estas simulações matemáticas e físicas, poder-se-ia, quase instantaneamente, chegar à solução certa. Este é um problema gigantesco, que vai da visão computacional à simulação acústica, física e matemática. Da Apple à Google e Dolby, toda a gente está a investir milhões na área.
Leiria é uma cidade na ponta mais ocidental da Europa onde várias empresas tecnológicas se instalaram, mas fará sentido falar de unicórnios – empresas que atingem uma valorização de mil milhões de dólares sem ter presença na bolsa -, no nosso País?
Tudo na vida tem vantagens e desvantagens. Como temos um mercado muito pequeno, quando alguém quer trabalhar na área das startups tecnológicas, começa, de raiz a pensar no mercado global, em vez de iniciar com o nacional e só depois ir para o internacional. Provavelmente, é por essa razão que Portugal tem mais unicórnios do que seria expectável. Qual seria a probabilidade de uma empresa em Leiria produzir software para estúdios de Hollywood e grandes produções? Se formos realistas, são baixíssimas. Há momentos na vida onde temos de ser ingénuos e acreditarmos nas coisas. Para quem, como nós, trabalha com Hollywood, estar em Lisboa, Leiria ou Castanheira de Pera, é rigorosamente igual. Estarmos numa cidade pequena pode trazer vantagens. Se falarmos em recurso humanos, se estivéssemos em Silicon Valley e tivéssemos de pagar 150 mil euros por ano por programador seria muito mais difícil. Obviamente que, para qualquer região, é óptimo ter empresas e emprego pleno, mas uma coisa é ter emprego pleno com salários de 800 euros para empregados fabris e outra é apostar em determinadas áreas onde o salário médio é três ou quatro mil euros. A Suíça tem a qualidade de vida que tem, porque apostou em áreas, como a financeira e farmacêutica, que têm salários muito elevados. Se Leiria conseguir apostar na inovação e no empreendedorismo tecnológicos, haverá mais empresas e emprego, e, eventualmente, a mudança de salários médios de 800 euros para três mil. Em Portugal, não podemos ser concorrentes da China e ter mão-de-obra barata. Queremos é viver com bons salários e, para isso, precisamos de empresas que dêem a volta. Devemos apostar na inovação. E sim. Haverá muitas empresas a falhar. Muitas vezes, associa-se a isso à má gestão ou incompetência, mas não. Pode ser apenas uma questão de risco. Veja-se o nosso exemplo do som 3D com auscultadores. É altamente arriscado. A Dolby ou outra empresa pode ser mais rápida do que nós e conseguir a solução primeiro… e há riscos técnicos complexos. Mas haverá empresas que terão sucesso e essas permitirão à região melhorar e aumentar a sua riqueza.
O Governo já anunciou o interesse de alguns gigantes internacionais em instalarem-se em Portugal, mas ainda não se concretizou numa escala igual à da Irlanda. É por causa da língua?
A Irlanda tem a vantagem do inglês e das questões fiscais. Mas há uma questão que permitirá ou não dar o grande salto e é preciso saber se o Governo será capaz de lhe dar resposta, que são os recursos humanos. Há uma falta gigantesca de profissionais na área. Tenho um amigo que costuma dizer, meio a brincar, meio a sério, que, nas entrevistas de emprego para informáticos, só faz uma pergunta: “quando é que pode começar?”. Há empresas de Lisboa que começaram a criar delegações espalhadas pelo País, para conseguir arranjar informáticos.
Leiria também tem, neste momento, falta de programadores.
Com a pandemia, percebeu-se que o trabalho remoto, afinal, até dá para desenrascar, embora não seja perfeito e há várias empresas internacionais sem delegações em Portugal que contrataram pessoas locais. Mas não há mão-de-obra. Se formos à bolsa de emprego do Politécnico, provavelmente, metade das ofertas de emprego que lá estão são na área da Informática. Isto significa que precisamos de dar um grande “boost” na formação. Contudo, as vagas nestas instituições são definidas internamente. Não faz sentido que, em determinadas universidades e politécnicos, haja mais vagas em Engenharia Electrotécnica do que em Engenharia Informática. Não tenho nada contra a Electrotécnica, que até é a minha área de formação, mas precisamos de quatro ou cinco vezes mais licenciados em Informática do que nessa engenharia.
Falta diálogo entre empresas e instituições de ensino superior?
Percebo que, do ponto de vista das instituições é complicado chegar aos departamentos A, B e C e dizer-lhes “temos de triplicar as vagas de Informática e os outros departamentos têm de reduzir”. É um problema da organização, mas é o que a sociedade precisa. Não faz sentido que o número de engenheiros informáticos formados no Porto, com numerus clausus, seja talvez 250 por ano. Não dá para tapar o buraco da falta de informáticos! Mas, em contrapartida, formam-se 60 pessoas por ano em Filosofia…. As empresas já estão a contratar imigrantes para virem para cá trabalhar. Na Sound Particles, acabámos de contratar um programador italiano que veio do seu país, para Leiria! Se Portugal for inteligente e conseguirmos formar muitos mais informáticos, daqui a dez anos, os outros países não conseguirão arranjar profissionais e nós vamos tê-los em número suficiente e as empresas virão para cá.
Agrada-lhe a ideia de criação de um pólo tecnológico no topo norte do estádio de Leiria?
Queremos um pólo forte de tecnologias em Leiria. Não temos de ser o Silicon Valley português, mas podemos ser o “Lis Valley!” O que puder ser feito na área, deve ser feito. Se nós, os empresários, o Politécnico de Leiria e outras instituições pudermos trabalhar em conjunto, tanto melhor. Antigamente, o sector da informática era regional. Era constituído por empresas que davam apoio às firmas da região. É um cenário altamente concorrencial, porque os vizinhos são também concorrentes. Hoje, começámos a olhar lá para fora e constatámos que os nossos concorrentes não são os vizinhos, mas os indianos, os alemães, os ingleses…. E tornou-se mais fácil colaborar com os vizinhos, porque não estamos a competir pelos mesmos clientes. O topo norte é uma boa ideia, além de ajudar, do ponto de vista imobiliário, com a falta de escritórios em Leiria. Os governantes locais têm, neste momento, sensibilidade para o assunto. O que é óptimo, pois, noutros sítios, não há sequer essa sensibilidade. Falta saber se conseguimos converter a sensibilidade para o problema e dar o salto e dinamizar o sector. Por exemplo, o Fundão, uma pequena cidade no interior do País, conseguiu dar a volta e marcar posição.
Aí, a solução foi potenciada pela proximidade da Universidade da Beira Interior. Em Leiria, luta-se há muito pela transformação do politécnico em universidade.
Não faz sentido esta dicotomia universidade/politécnico. Há alguns anos fazia. Economia na universidade, secretariado no politécnico. Hoje, é tudo a mesma coisa, à excepção da medicina. Engenharias Informáticas? Há em todo o lado. Até no plano curricular, quase não há diferenças. Não faz sentido que cada capital de distrito não possa ter a sua universidade. Actualmente, os politécnicos e universidades fazem a mesma coisa! Mesmo que se diga que a “universidade técnica” tem um lado mais prático e mais ligado às empresas, da mesma forma que os politécnicos se aproximaram das universidades, estas aproximaram-se dos politécnicos. Também fazem parcerias com empresas. Já não são pessoas fechadas nos seus gabinetes e laboratórios que não interagem com o tecido empresarial. As licenciaturas das universidades são tão práticas quanto as dos politécnicos. Há pessoas que dizem que não é preciso mudar nada porque os “politécnicos são iguais às universidades”, “perfeitamente válidos” e “importantes”, mas quando os filhos vão para o ensino superior, dizem “não, não! Não vais para o politécnico, vais para a universidade!”
Como região, perdemos?
Perdemos porque os melhores alunos do secundário saem para as universidades, noutras regiões e a maioria não regressa. Obviamente, haverá sempre alunos a preferirem universidades mais conceituadas e não estou a dizer que o ensino é igual em todos os estabelecimentos. Mas perdemos muita gente para as outras regiões, porque não temos uma universidade. Se cá tivéssemos uma universidade, teríamos muitas mais pessoas de topo a estudar em Leiria e a fixarem-se. No empreendedorismo tecnológico, se os melhores alunos vão para fora, quando eles têm uma ideia para uma startup, vão criá-la no sítio onde tiraram os cursos, seja no Tagus Park, no Técnico, na FEUP e no Pedro Nunes. Atenção, não estou a dizer que as pessoas que vêm para o Politécnico de Leiria são inferiores. Longe disso! Há casos fantásticos de pessoas que estudaram e criaram aqui empresas. Até nós nascemos em Leiria. Não foi no Tagus Park ou no Técnico! Isto é uma questão política e orçamental. Se os politécnicos passarem a ser universidades, ter-se-á de pagar mais aos docentes. Obviamente, os Governos querem evitá-lo. Do ponto de vista prático, há politécnicos que são melhores do que universidades e que têm professores melhores, com mais publicações e mais patentes. O Técnico foi criado inicialmente como politécnico. É o “Instituto Superior Técnico” e é provavelmente a melhor escola de engenharia do País, não é uma “faculdade de engenharia”.
Nasceu em 1975 e é natural de Marrazes, Leiria. Licenciou-se em Engenharia Electrotécnica, no Instituto Superior Técnico a que se seguiu o mestrado em Engenharia Informática, em Coimbra, e depois um doutoramento no Porto, no qual abordou o tema de Computer Audio.