União, liderança e planeamento do futuro são premissas do seu mandato. De que forma pretende concretizá-las?
Este é um mandato de continuidade e dentro desta tríade queremos alicerçar a promoção da união da classe médica. A defesa das carreiras médicas, ou seja, o reabilitar e valorizar a qualidade da formação são aspectos absolutamente essenciais. Temos de valorizar a carreira e de qualificar a formação. É necessário recuperarmos a liderança dos médicos. Não significa que se queira ter uma liderança no sentido de ser avassaladora ou dominante na tomada de decisão. Nos vários aspectos da planificação e da gestão da saúde em Portugal podemos assumir um papel de liderança naquilo que é a gestão clínica, na possibilidade de liderarmos os serviços e termos também autonomia.
Os médicos não são ouvidos nas decisões da saúde?
Temos tido uma maior receptividade, mas na última década, provavelmente perdemos alguma dessa voz e queremos recuperá-la. Só existe medicina porque existem doentes, mas só existe medicina depois dos doentes porque há médicos. Todos os outros profissionais de saúde são muito importantes, mas o acto médico em si é ainda assim dominante. Tem a ver com a relevância no produto final, que é o tratar ou prevenir a doença.
A Ordem dos Médicos (OM) é muitas vezes acusada de não abrir vagas suficientes para as especialidades. Há falta de preparação dos cuidados de saúde para uma boa formação?
É preferível promovermos a qualidade e menos a quantidade, o que não significa que não se tenha que fazer ajustes nalgumas áreas. Obviamente que tenho a percepção que existem algumas áreas que poderão necessitar de quantidade. A formação é muito exigente, onerosa e requer condições para que se possa realizar e daí resultarem técnicos especialistas, diferenciados e com qualidade. A exigência é um aspecto importante, mas também a uniformização da mesma. A OM tem tido esforços crescentes para uniformizar a formação. Outro aspecto importante é a remuneração de quem faz formação. Existem assimetrias da forma como é remunerada, que variam de situações em que não há qualquer remuneração para quem forma, para situações em que são remunerados. Há outra coisa essencial que é a chamada educação médica contínua. A OM tem andado preocupada em poder dar alguma valorização à necessidade da formação médica contínua, que precisa de apoio. Durante a última década, houve um conjunto de restrições legislativas que impossibilitam o apoio da indústria farmacêutica à formação. A actualização de conhecimentos de um especialista é onerosa e totalmente suportada pelo próprio. Por exemplo, uma formação de três dias fora do País pode custar entre quatro a cinco mil euros. É preciso definir um plano de formação para a actualização e formação médica contínua, para poder aplicar as melhores práticas.
O hospital de Leiria tem capacidade formativa?
A percepção que tenho é que é um hospital que forma bem. Naturalmente que alguns problemas podem interferir com a formação, mas no geral tem um corpo formativo e condições tecnológicas com um potencial elevado para a actividade formativa. Obviamente que poderá ser melhorada, pois os problemas relacionados com questões estruturais e processuais do hospital podem interferir com a formação de uma forma positiva.
Porque é que tem sido difícil captar especialistas?
Temos uma carga e um volume assistencial significativos e o serviço de urgência é só um. O défice de profissionais de saúde é um problema. Segundo os dados da Pordata, de 2020, Leiria tem 2125 habitantes por médico, enfermeiro, auxiliar ou técnico de diagnóstico. Em Coimbra, são 595. Leiria tem 579 camas e Coimbra tem 2159. Temos aqui uma relação de desproporção. O número de camas comparativamente com Coimbra, é significativamente menor, o que faz com que tenhamos mais dificuldade em ter camas e temos menos médicos para tratar de mais pessoas. Podíamos dizer que tratamos menos doentes, mas não. No número de urgências nos hospitais, temos Leiria com 151 mil e Coimbra com 296 mil. Quase duplica o valor, mas em termos de recursos quase quadruplica para Coimbra. Em termos de pessoal médico ao serviço dos hospitais, Leiria tem 2068 profissionais e Coimbra tem 10796.
Mas Coimbra é um hospital central.
É certo, mas quando aferimos o número de habitantes para médico ou para profissional de saúde eles têm 595 habitantes para um profissional de saúde e nós 2125. Na panorâmica nacional, o número de camas de internamento da região Centro por 1000 habitantes é a mais baixa. São cerca de três, ao passo que em Lisboa e Vale do Tejo, Norte e Algarve temos valores acima do valor médio, que é de 3,5. Isso justifica o argumento de termos uma carga assistencial gigantesca.
Esse volume de trabalho afasta os médicos?
Esta assimetria na distribuição dos recursos traduz-se numa assimetria de carga assistencial e, obviamente, é algo que deve ser corrigido e repensado pela tutela. A grande responsabilidade desta assimetria é da ARS [Administração Regional da Saúde]. Somos pouco atractivos porque temos uma carga assistencial significativa e uma assimetria de recursos, que estão intrincadas com o ambiente académico. A investigação pode ficar comprometida perante esta carga assistencial. Curiosamente, Leiria, ainda assim, consegue criar um centro de investigação e tentar estimular a investigação, mas o esforço é maior comparando com os outros. O facto de podermos vir a dar doutoramentos na Universidade Politécnica de Leiria poderá ser um factor de maior atractividade. Depois, devemos continuar o investimento tecnológico. Existe ainda a necessidade de uma política de gestão e pessoas mais adequada. Nesse capítulo, as diferentes instituições da região devem reflectir sobre a actual política de gestão e pessoas e torná-la mais adequada. Falo daquilo que é o reporte isolado de profissionais.
Do que é que se queixam?
Uma melhor relação e uma melhor proximidade. Se as pessoas se sentirem bem tratadas e acarinhadas, de certeza que estarão mais motivadas. Muitas vezes é imputado ao médico o carácter economicista, mas preferimos ser bem tratados do que nos darem uma compensação económica suplementar ao final do mês. Se nos sentirmos bem tratados nas instituições, com uma relação próxima com os gabinetes de recursos humanos e se não existir sempre aquele ar de desconfiança, as pessoas sentem-se mais confortáveis e andam mais motivadas. E isso é uma medida que não compete à tutela. É uma política interna.
Os privados estão a contratar mais. Quem não tem dinheiro sai prejudicado.
Há a questão da equidade e do acesso ao tratamento. Mas os privados estão a usar as leis de mercado, como faz qualquer outra área. Eles apostam nos profissionais maior valor, ou seja, procuram os mais diferenciados. A única assimetria é que, por exemplo, o CHL não pode contratar de forma diferenciada, os privados podem diferenciar aquilo que é remuneração e dizer este cria mais valor em saúde. O valor em saúde não é pecuniário, mas tem a ver com os resultados. O futuro da saúde e dos doentes depende também de um planeamento cuidadoso e sensato, mais centrado num sistema nacional de saúde, que vá integrar de forma adaptada a cada região de acordo com as necessidades e regulada para que haja ordem naquilo que é a execução. É regular a medicina de cariz público, o Serviço Nacional de Saúde, e a prática clínica privada, que é, como sabemos, cada vez mais significativa e relevante no panorama nacional. Só assim será possível continuar a promover a qualidade dos cuidados. Juntar um espírito colaborativo e valorizar o sistema nacional de saúde, agregando esforços, numa estratégia colaborativa: sector público, sector privado e sector social. Isto não é demagogia. É preciso passar à prática.
Há que mudar a organização no sistema nacional de saúde?
Em algumas áreas devemos promover a revolução mais do que a evolução. A evolução é importantíssima, mas geralmente existe uma continuidade. Mas estamos a precisar de uma mudança organizativa, que obriga a uma quebra. É uma revolução no bom sentido, ou seja, mudar a nossa estratégia com alguma cisão com os diferentes sectores. Para isso, é preciso uma mentalidade que o permita.
Será integrar os privados na resposta aos doentes?
Claro que sim, mas é integrar de forma justa, regulada e adaptada em termos daquilo que são os valores a pagar e daquilo que são os resultados. Quem de direito tem de pensar numa mudança e pender para um sistema nacional de saúde. Não falamos em serviço propriamente público. Falamos de um sistema que integre o serviço público, o serviço privado e o sector social, e outras áreas que serão importantes no futuro, nomeadamente a nível da prevenção.
A Unidade Local de Saúde será a solução para as urgências? Há um conjunto de médicos que se opôs e lamenta não ter sido escutado.
A criação de uma Unidade Local de Saúde [ULS] não deve ser entendida como uma solução para todos os problemas. Tudo aquilo que falei até agora tem um denominador comum: a integração, a colaboração, a interdisciplinaridade e a parceria. Não sei se a ULS vai funcionar, mas o princípio é bom. Quando falamos que esta ULS é para ser uma unidade estruturada ao longo de um processo assistencial integrado, o conceito não pode parecer mal. Isto é um processo que deve constituir uma mudança consentida, uma revolução em que haja integração, mais autonomia e em que se centrem os processos, sobretudo no doente. Com algum bom senso e com uma integração dos vários cuidados de saúde e especialidades poderemos ter bons resultados, não só ao nível das urgências, mas nos indicadores de saúde em geral.
Na sua especialidade, qual a doença que mais vos preocupa?
O cancro colorrectal. Em Portugal morrem diariamente, em média, cerca de 11 pessoas por cancro colorrectal e a taxa de sobrevivência aos cinco anos andará na ordem de 50%. São dados alarmantes. Uma das áreas que tem de ser necessariamente repensada são os programas de rastreio, sejam eles de pesquisa de sangue oculto, sejam de rastreio endoscópico.
Como é que está a região no panorama nacional?
A nossa região sempre teve uma taxa significativa. Não foge muito aquilo que é a média nacional. Operamos aproximadamente entre 230 a 250 cancros colorrectais por ano no hospital. É muito significativo. Temos um centro de referência que concentra seis especialistas. Continuamos a ser cirurgiões e a fazer as outras actividades, mas trabalhamos sobretudo no cancro colorrectal, com uma média semanal de três a quatro doentes operados. Estamos entre as regiões com maior incidência. É o segundo cancro mais frequente em Portugal e actualmente estão diagnosticados cerca de 7000 novos casos por ano.
É o resultado de maus hábitos alimentares?
Tem a ver com vários factores. Há factores alimentares, genéticos e imunológicos associados. É o cancro de início mais precoce. Habitualmente era uma doença que surgia dos 50 anos para a frente e hoje há um aumento da incidência. Em 2010/2011, os novos casos andavam na ordem dos 5% abaixo dos 50 anos e uma década depois andará na ordem dos 10%. Isso vai ter implicações no futuro, a idade de início do rastreio provavelmente vai recuar por volta dos 45 anos.
Especialista em cirurgia colorrectal