Talvez a melhor maneira de dar a conhecer a fluidez de Mari Fonseca seja falar do que Mari não é. Por exemplo, não é género masculino ou feminino, está “entre o meio e a mulher”, num lugar que descarta a perspectiva binária. Não é heterossexual nem homossexual e não se interessa sexual e romanticamente por um único modo de ser, mas por vários. Não pratica a exclusividade no amor e vive actualmente duas relações, ambas poliamorosas, ou seja, cada uma liga mais do que duas partes. Mari Fonseca não é o nome de baptismo, mas o nome social com que escolhe apresentar-se. Claro, não definir também é definir e as gavetas que a sociedade preserva confirmam a armadilha: lésbicas, gays, bissexuais, trans, intersexo, queer, em questionamento. “O género vai deixar de existir, mas, até lá, vamos ter de criar um género para cada pessoa, até as pessoas entenderem que o género não deve ser a primeira linha de diferenciação”, diz ao JORNAL DE LEIRIA. “No meu meio conheço géneros que nem eu sei o que são. E não preciso de saber”.
Depois de “todas as vezes que quis sair do armário e não aconteceu”, agora, aos 27 anos, é-lhe possível recordar a felicidade do “primeiro beijo lésbico” na primeira vez em que se declarou a uma mulher com a frase “estou apaixonada por ti”. Para “desafiar o padrão” a partir de uma pequena aldeia nos arredores de Leiria, o “ponto de viragem” foi o acidente de automóvel que quase lhe custou a vida, e, depois, a descoberta durante os anos da universidade, em Coimbra, com o pensamento a percorrer bibliografia que significa “validação e representatividade” e os afectos a explorarem uma comunidade tolerante. E “onde há mais tolerância as pessoas desenvolvem-se mais felizes”. É o que motiva Mari a dinamizar um grupo no Facebook, a publicar notas activistas em redes sociais como o Instagram e a promover aleatoriamente conversas de educação sexual. Para que mais possam estar onde está hoje.
O relevo acidentado da identidade de género, orientação sexual, expressão de género e características sexuais está entre os temas do espectáculo Tabu ensaiado por estudantes do secundário que vai a palco em Leiria na próxima semana e que sobrevoa os territórios onde a adolescência arde. A encenadora, Francisca Passos Vella, trabalha em escolas públicas com alunos entre os 10 e os 19 anos de idade. “Uns 60%”, segundo a professora de teatro e expressão dramática, manifestam, “pelo menos, curiosidade” sobre o alfabeto LGBTI. Estão despertos para a diversidade da linguagem do corpo e do coração e mostram “vontade de se compreenderem”.
Nos últimos anos, “o ambiente nas escolas mudou drasticamente”, diz Francisca Passos Vella. Através da internet e das redes sociais que trazem na palma da mão, com o mundo no ecrã do telemóvel, os adolescentes “têm muito mais exemplos de vidas diferentes”, alguns até mediáticos, que “fazem com que não tenham tanta vergonha e medo de se exporem”. Interessa-lhes, “primeiramente, a identidade, mais do que a sexualidade”. Quem sou? Como quero que os outros me vejam? E no movimento de “cada um ter a liberdade de ser” também ajuda a “maior abertura” dos pais, em comparação com os avós. Os estabelecimentos de ensino “aceitam”, mas “há estranheza”. O que não impede o inevitável. “A mudança é necessária porque os tempos estão a mudar e temos de os acompanhar”, realça a actriz, encenadora e professora de teatro. “As pessoas têm de parar de fazer aquilo que os outros acham que é socialmente aceitável e fazer mais aquilo que lhes é verdadeiro”.
Empoderados e desempoeirados
No dia em que Pedro Santos regressou à Corredoura, em Porto de Mós, “farto de andar no faz de conta”, o pai já tinha morrido. A vida independente em Lisboa e a relação estável com um homem deram-lhe, aos 20 anos, a força para chamar a mãe, as irmãs, o irmão, os amigos e proferir as palavras antes proibidas: “Anda cá, preciso de dizer-te uma coisa. Sou gay”. A memória do coming out é a memória do momento em que se encontra com a verdade que conhecia desde os “quatro ou cinco anos”, apesar da namorada na primeira juventude. O momento em que finalmente se sente “aliviado” e corta com o período de “bastante sofrimento” em que “achava que estava errado, que “tinha um problema, uma doença”. Aos 35 anos, com um casamento homossexual e um divórcio para contar, acredita que os mais jovens são “mais empoderados, mais desempoeirados”, opinião que confirma nas marchas do orgulho. “Em Lisboa, de ano para ano, há mais malta nova. E muito nova: 13, 14, 15 anos. É muito bonito de ver”.
Para Pedro Santos, é relevante “o acesso a meios como a Netflix, as séries que têm personagens trans, personagens andrógenas, personagens que não têm de se definir seja do ponto de vista da identidade de género seja do ponto de vista da orientação sexual”. Ao mesmo tempo, “na literatura, nas telenovelas, no cinema, nas peças de teatro, nas diferentes manifestações culturais”, a inclusão e a diversidade foram “começando a aparecer” e “a ter mais visibilidade”. O jornalista do Fumaça sublinha, no entanto, que o que acontece agora vem “a reboque da reivindicação” que os colectivos e activismos dinamizam desde há décadas. “A luta pelo casamento, a luta pela adopção, foram marcos fundamentais”, salienta. “Quase um referendo à existência da homossexualidade” e “aceitação da homossexualidade e dos homossexuais como pessoas de pleno direito no espaço público e na sociedade”. O casamento “foi a queda do muro de Berlim no que respeita à diversidade de identidades e de sexualidades na sociedade portuguesa” e a adopção “outra barreira que se quebrou”.
Segundo Paulo José Costa, que exerce no Centro Hospitalar de Leiria e em consultório particular, entre os adolescentes e pré-adolescentes “é cada vez mais frequente, não só, a questão da dúvida ou do questionamento sobre o que é que pode estar a acontecer” como a “sensação de não estarem clarificadas as convicções ou a identificação de géneros”. Sobretudo a partir dos 14 anos, “é muito frequente” aproveitarem o consultório para “questionar ou afirmar que são bissexuais ou homossexuais”, o que o psicólogo atribui ao facto de assumirem uma atitude “despreocupada e sem tabus” e de serem “muito mais abertos” no dia a dia. “A questão é muito mais debatida” e “muitas vezes assunto de consultas até dos próprios pais como preocupação, quando antes não era”. Em termos clínicos, “o trabalho é de suporte e aconselhamento”, em especial para “prevenir circunstâncias de exposição à crítica ou até de bullying” e afirmar “um relacionamento com valores, com factores de protecção que não exponham o adolescente a algo que venha a ser traumático”, até porque “há situações que são transitórias” e “sexualidade que é difusa”.
Denunciar o preconceito
João Cartaxo, porta-voz do movimento LGBTI Leiria, acredita que “começa a existir abertura para as pessoas mais jovens fazerem uma auto-descoberta mais saudável”. No balanço de mais um Dia Internacional e Nacional de Luta contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia, assinalado a 17 de Maio, o instante em que, pela primeira vez, a bandeira arco-íris foi hasteada pelo município da Marinha Grande é “um sinal positivo”. No entanto, não só na região como no País, “ainda há bastante discriminação” e “continuam a chegar relatos de homofobia e até barramento ao trabalho”, um reflexo de “desinformação” e “falta de informação”.
Segundo João Cartaxo, “os médicos de família não estão inteiramente preparados para falar de homossexualidade ou identidade de género” e algumas farmácias em Leiria recusam ou desconhecem a comercialização de injectáveis para pessoas trans (terapias hormonais). “Precisamos de formação para os profissionais de saúde”, conclui. “Na educação, é preciso que a disciplina de cidadania seja efectivamente dada como está no programa”, porque “há escolas que ignoram toda a parte da identidade de género e orientação sexual”.
Tão ou mais grave, salienta o porta-voz do movimento LGBTI Leiria, as chamadas terapias de reconversão são praticadas em Portugal. E a legislação que enquadra o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à protecção das características sexuais continua a falhar na aplicabilidade. Desde logo nos serviços públicos, onde “muitas pessoas são tratadas pelo género com que não se identificam ou pelo nome antigo”.
“Não estamos 100% prontos”, admite Francisca Passo Vella. “É preciso muito trabalho” para “guiar, educar e dar apoio”. Pedro Santos reivindica “uma educação séria nas escolas para os afectos e para a sexualidade”. Mari Fonseca alerta para a violência verbal nos estabelecimentos de ensino e para o aumento da polarização e da intolerância. O preconceito, “subtil”, ainda “está em todo o lado”.
Um estudo realizado em Portugal, encomendado pela Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), evidencia que persiste a discriminação em função da orientação sexual, identidade e expressão de género e características sexuais. Os contextos de discriminação mais assinalados são os contextos de saúde, escolares, laborais, de segurança e protecção social. Do documento divulgado a 17 de Maio decorre que as escolas continuam a não ser ambientes seguros e acolhedores para as crianças e jovens LGBTI e que os conteúdos e práticas educativas continuam resistentes à abordagem da orientação sexual, identidade e expressão de género e características sexuais. Em 2021, Portugal desceu quatro lugares no índice europeu da Ilga Europa que anualmente analisa e classifica no Mapa Arco-Íris a situação jurídica, social e política das pessoas LGBTI, estando agora em nono lugar entre 49 países.
Concertos e exposição
Os artistas de um novo tempo no palco da Porta
Com videoclipes no Youtube visualizados por milhões de seguidores, é considerada internacionalmente uma referência na luta pelos direitos das pessoas LGBTI. A cantora, compositora, dançarina e activista trans Teca Miguel Garcia, conhecida pelo nome artístico Titica, tem concerto agendado no próximo festival A Porta, no mês de Junho, em Leiria. Odete, a dupla de dj’s Trigo e Moço e o colectivo Surto são outros artistas que se inscrevem no universo LGBTI e que em 2022 vão estar no festival A Porta, que, na continuidade de edições anteriores, volta a amplificar a voz e o som de um novo tempo. A programadora Mariana Lois, da equipa que organiza A Porta, lembra que, além da qualidade, importa ao festival abrir espaço para a diversidade e para a inclusão, porque tem como premissa ser um evento de todos e para todos. Em parceria com o movimento LGBTI local, está prevista, ainda, uma performance drag e uma exposição de cartazes utilizados na primeira marcha do orgulho realizada em Leiria.