As notícias chegaram às primeiras horas da manhã daquele dia 25 de Novembro de 1975. Nessa madrugada, grupos de pára-quedistas ocuparam as bases aéreas de Monte Real, Montijo, Tancos e Monsanto, o Estado Maior da Força Aérea e a sede da Primeira Região Aérea. Estava em marcha uma revolta, com os militares em causa a insurgirem-se contra a nomeação de Vasco Lourenço, do chamado Grupo dos 9, os moderados, para comandante da Região Militar de Lisboa, substituindo Otelo Saraiva de Carvalho.
“Em Monte Real, o comandante da base, coronel Fernando Seabra, era detido pela manhã pelos revoltosos que, entre os pára-quedistas ocupantes, ‘cerca de 25’, e os militares e civis que se juntaram à luta dentro da Base Aérea nº 5 (BA5), não chegavam a 50 pessoas”, relata Tiago Gomes, num trabalho académico sobre a importância desta base no desenrolar dos acontecimentos do 25 de Novembro.
Nesse artigo, publicado em 2011, é citado Jubelino Colaço, ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Vidreira, que refere a manifestação de apoio à luta dos pára-quedistas, desencadeada pela estrutura sindical e pelo PCP da Marinha Grande, com “cerca 500 pessoas”.
A meio da manhã, Tomás Oliveira Dias, dirigente do PSD, falecido em Junho último, recebe um telefonema da mulher do comandante “a pedir-lhe uma manifestação contra aqueles que tinham tomado a base”, recorda António Zúquete, que pertencia à distrital social-democrata e que viria a ser o único civil que, nesse dia, entrou na BA5. Do lado do PS, Mário Matias conta que a informação chegou através de “um civil”. Seguiu-se uma reunião na sede do PS em Leiria, com representantes dos dois partidos, que decidem desencadear “uma acção conjunta” para mobilizar a população para Monte Real.
Ouvia-se “todos a Monte Real”
“Pus uma aparelhagem sonora no carro e fui percorrer as freguesias, a apelar às pessoas para se encaminharem para lá”, lembra Mário Matias. O PSD fez uma acção idêntica, com o carro de serviço do partido, ao qual “foi retirada toda a identificação de cariz partidário”, a percorrer as ruas da cidade e as freguesias à volta, incentivando o fecho do comércio e a mobilização das pessoas.
“Ouvia-se ‘Todos para Monte Real’” recorda João Cunha, então, com 13 anos, que fez parte de um grupo incumbido de tocar o sino da Sé a rebate, furando a oposição do sacristão. “Entrámos na Torre Sineira a partir do telhado do edifício da direcção de Estradas. Subimos até ao torreão e, cada um, puxava a corda de dois sinos. Voávamos agarrados às cordas”.
Nesse dia, “Leiria parecia o faroeste. Houve lojas a fechar e um corropio de pessoas e de camionetas, numa grande mobilização popular, que acorreu a Monte Real”, relata, por seu lado, António Zúquete, que destaca o papel das freguesias. Aliás, os primeiros manifestantes de apoio aos sitiados da base chegaram da Bajouca, numa camioneta fretada por José Soares, então presidente da Comissão Administrativa da freguesia, que liderou a Junta durante 25 anos, eleito pelo PSD.
O antigo autarca hoje com 79 anos, conta que, após o almoço, recebeu um telefonema na carpintaria onde trabalhava. Do outro lado da linha, ouviu Tomás Oliveira Dias, que lhe pediu para tocar os sinos e “ir para Monte Real o mais depressa possível, porque a base tinha sido tomada de assalto”. “Não demorou dez minutos até encher uma camioneta com pessoas. A primeira ‘carga’ chegou antes das três [horas] da tarde”, relata, contando que, ao chegarem, depararam-se com um grupo de apoio aos revoltosos, “vindo da Marinha Grande”, e um batalhão de pára-quedistas armado, formado em frente à porta de armas. “Percebemos que era mesmo a sério.”
José Soares voltou à Bajouca, para ir buscar mais pessoas e, ao regressar a Monte Real, constatou que aqueles manifestantes já se tinham afastado. Segundo Mário Matias, “foram embora de forma ordeira e rápida”. “Deu a sensação que receberam ordem para desmobilizar”, diz o antigo vereador do PS, admitindo que essa “debandada” contribuiu para a rendição dos pára-quedistas.
Bajouca montou barricadas
Enquanto os apoiantes dos revoltosos abandonavam o local, crescia a mancha de pessoas que se concentrava em frente à base, em solidariedade com o comandante e os militares detidos. “Eram aos milhares”, assinala José Soares, que não sabe precisar quantas viagens fez entre a Bajouca e Monte Real. “Foi transportar pessoal de empreitada”.
Numa dessas deslocações deparou-se com uma das barricadas, entretanto, montadas em diversos pontos da freguesia, para controlar “todas as entradas e saídas”, enquanto a pequena capela da aldeia estava “cheia de gente” em oração. Rezava-se para que a revolta “acabasse bem” e pela pacificação do País.
A mesma prece era feita por alguns dos oradores que iam falando ao megafone, em frente à base aérea. “Havia apelos à calma, para que a manifestação permanecesse pacífica. E foi isso que aconteceu. Só queríamos demonstrar que estávamos contra aquela invasão”, alega Mário Matias, confessando que, só mais tarde, teve a noção de que “estivemos à beira de uma desgraça”, quando soube que, em alguns pontos do País, “houve distribuição de armas a civis”. Em Monte Real, assegura, não viu ninguém com “qualquer tipo de arma”, a não ser a dos pára-quedistas, que segundo José Soares, “estavam com a culatra puxada atrás”.
“Tiveram ordens para disparar, mas nós não arredamos pé”, recorda o antigo autarca da Bajouca, convicto que a “pressão do povo” foi determinante para o desfecho da revolta, com a rendição dos pára-quedistas. O mesmo diz António Zúquete. “A acção popular revelou-se preponderante para esvaziar o golpe”, afirma o antigo dirigente do PSD, o único civil a entrar na base durante a ocupação. Conta que o fez a pedido do segundo comandante da BA5, que era seu amigo, e que esteve lá dentro “cerca de duas horas”. Conversou com o comandante, que lhe transmitiu que “a situação “estava mais ou menos controlada” e que tentou interceder para que os revoltosos saíssem com as armas.
“Disse-lhe que não podia tomar essa decisão, mas que ia falar com os representantes da população”, recorda António Zúquete. Antes de sair, informaram-no que o chefe de Estado da Força Aérea queria falar-lhe, mas, quando se dirigia ao posto de transmissões, foi impedido pelo líder dos revoltosos, o capitão Marçalo. “Com um ar furioso, disse-me que um dia íamos a ajustar contas, ao que lhe respondi para olhar bem para a minha cara, para que não se enganasse.”
Com o avançar da noite, os manifestantes acederam a que os pára-quedistas saíssem com as armas após a rendição. “Saíram por uma porta connosco a cantar A portuguesa [hino nacional], com a sensação de que estávamos a fazer história”, partilha António Zúquete.
Tiros e confrontos em Leiria
“Como disse Mário Soares, o 25 de Novembro permitiu o regresso à pureza do 25 de Abril. Entrou-se depois num processo de normalização da democracia”, assinala o socialista Acácio de Sousa. O historiador sublinha que, “em qualquer revolução há sempre períodos de turbulência”, como aqueles que se seguiram ao 25 de Abril, com saneamentos políticos, sequestros e ocupações de fábricas, acções associadas a sindicatos e a grupos de esquerda e da extrema esquerda, às quais a direita reagiu com assaltos a sedes de partidos e a locais de trabalho de dirigentes de esquerda.
Estas convulsões tiveram o seu auge no designado Verão Quente de 1975, que deixou marcas em Leiria, com vários episódios de violência, como aqueles que ocorreram no final de Agosto (dias 24, 25 e 26), aquando do assalto à sede do PCP, localizada nas imediações do ‘Parque do Avião’, que envolveu troca de tiros e apedrejamento do edifício.
Na edição de 30 de Agosto, o semanário Região de Leiria fala de “uma noite de pavor”, ocorrida na passagem do dia 25 para 26, com pedras atiradas para a sede do PCP e, “gasolina incendiada lançada para a ponte que separa o Marachão do largo” onde ficava o edifício, de onde “foram disparados tiros de caçadeira”. Dos confrontos, que envolveram também as Forças Amadas, resultaram “vários feridos” e a morte de um homem, “alheio à situação”, mas apanhado pelo tiroteio, que ficou marcado no edifício do posto de turismo, onde, durante anos, permaneceu o buraco de uma bala.
Durante estes dias, foram também assaltados os escritórios de Guarda Ribeiro e José Henrique Vareda, advogados de esquerda que se destacaram na oposição à ditadura, e das sedes dos partidos de extrema-esquerda, como o MES e o MDP/CDE. Neste último caso, “foi destruído o recheio, portas e janelas, em duas grandes fogueiras no largo da Sé”, descreve o Região de Leiria, que dá ainda conta de um carro incendiado na avenida Heróis de Angola, porque “se afirmava que haviam sido nele encontradas armas”.
Um morto nos Pousos
Ainda no rescaldo do 25 de Novembro, a região voltou a ser palco de incidentes, desta vez, na antiga fábrica de vidros dos Pousos, onde está agora instalado o Grupo Nova Gente, em Leiria, dos quais resultaram a morte de uma pessoa e vários feridos. O caso ocorreu a 26 de Novembro, no dia seguinte à intentona dos pára-quedistas, que ficou marcado por uma greve do sector vidreiro como protesto pela morte de um delegado do Sindicado de Trabalhadores da Indústria Vidreira assassinado no Porto. Na sequência desse incidente, realizou-se um plenário de trabalhadores naquela fábrica, tendo “a maioria” decidido por não aderir à paralisação. Houve, no entanto, operários que resolveram fazer grave, “tornando difícil a actividade fabril”, lê-se na edição de 6 de Dezembro de 1975 do Região de Leiria.
De acordo com esse semanário, “alertado por rebate de sinos, o povo da região, levando consigo paus e utensílios agrícolas, entrou na fábrica, dando apoio à maioria dos operários”. No exterior das instalações, foram montadas barricadas, para “evitar a chegada de reforços em apoio aos grevistas”. “Lá dentro houve grossa zaragata, tendo sido chamados os bombeiros que transportaram feridos para o hospital”, relata o jornal, que identifica, pelo menos, seis feridos. “Foi um corropio de pessoas para o hospital, em resultado dessas desavenças”, recorda Mário Matias, antigo dirigente do PS.
Rajada de G3
A morte aconteceu já na madrugada de dia 27, quando “um automóvel passou na estrada”, junto à fábrica de vidros dos Pousos, e “dele foi disparada uma rajada de G3 [arma metralhadora]”, que atingiu três pessoas, que nada tinham a ver com os acontecimentos na fábrica.
Segundo o relato feito pelo Região de Leiria, as vítimas eram três jovens, um residente nos Pousos e os outros dois nos Soutos da Caranguejeira, que, “levados pelo espírito da curiosidade”, foram ao local, num momento em que “tudo estava calmo”. Acabaram atingidos pelos disparos quando seguiam já em direcção aos Pousos. Um deles, de 22 anos, veio a morrer no hospital “pouco depois”, e os outros sofreram ferimentos, um “num braço” e o outro no “baixo ventre”, tendo recebido tratamento hospitalar, um deles em Coimbra.
Conferência em Ansião esta quinta-feira
O Golpe e os acontecimentos de 25 de Novembro de 1975 é o tema de uma conferência a realizar esta quinta-feira, dia 28, no Centro Cultural de Ansião, pelas 15:30 horas. Promovido pela Assembleia Municipal, o encontro decorre no âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril no concelho.
A sessão colocará à conversa José Pacheco Pereira, historiador e comentador político, com dois dos protagonistas do 25 de Novembro: o coronel Manuel Pedroso Marques, à época presidente da administração da RTP, que também foi ocupada pelos militares revoltosos, e o coronel Rodrigo Sousa e Castro, militar de Abril que era membro e porta-voz do Conselho da Revolução e elemento do designado “Grupo dos 9”.
O evento terá uma primeira parte, que abordará os acontecimentos da madrugada daquele 25 Novembro, nomeadamente, o contexto político-militar em que ocorreram e a sua importância para a consolidação da democracia. Segue-se um período de debate, alargado à participação do público.
O que aconteceu no 25 de Novembro de 1975?
Após a Revolução do 25 de Abril de 1974 e o fim de 48 anos de ditadura nem tudo foi pacífico em Portugal. As eleições livres para a Assembleia Constituinte a 25 de Abril de 1975 evidenciavam um País dividido entre a direita (a norte do Tejo) e a esquerda (mais a sul). Assistia-se a uma oposição entre aqueles que pretendiam prosseguir a revolução com o Movimento das Forças Armadas (MFA), incluindo o Governo de Vasco Gonçalves, e os que defendiam que o caminho deveria ser feito com os partidos políticos sufragados em eleições.
A liberdade ainda não estava implementada. No ano em que se realizaram as primeiras eleições livres, as extremas direita e esquerda tentaram um assalto ao poder através de golpes militares, que não se concretizou. O País estava em risco de uma guerra civil.
“O 25 de Novembro acontece num contexto de convulsão política. O País está ainda em processo revolucionário. É um período de grande entusiasmo, mas, muitas vezes, o entusiasmo é irracional”, explica ao JORNAL DE LEIRIA o historiador Acácio de Sousa.
Os saneamentos políticos, ocupações de fábricas, acções associadas aos sindicatos e à esquerda, nomeadamente ao Partido Comunista Português (PCP), eram evidentes. A direita reagia com assaltos e colocação de bombas a sedes de partidos de esquerda e extrema esquerda e a locais de trabalho de dirigentes de esquerda, como aconteceu em Leiria no Verão Quente de 1975.
“Foi um período de extremos, com situações muito violentas de um lado e do outro. Até certa altura, o PCP esteve na liderança do processo revolucionário, mas acabou por ser ultrapassado pelas forças extremistas de esquerda”, adianta Acácio de Sousa.
As estruturas repressivas do Estado Novo tinham sido desmanteladas, mas a liberdade política era ainda muito limitada. O chamado Grupo dos 9, um conjunto de militares moderados pertencentes ao Conselho da Revolução, que defendiam o socialismo pluralismo, discordaram da autoridade militar no poder.
Na madrugada do dia 25 de Novembro, a partir da base escola de Tancos, as forças paraquedistas ocuparam as diversas bases aéreas no País e o Estado Maior das Forças Armadas. “Quem deu a ordem? Não se sabe, ninguém apareceu a reivindicar. Sob o comando de Otelo Saraiva de Carvalho as tropas do COPCON (Comando Operacional do Continente) ocupam várias estruturas, entre as quais o Depósito Geral de Material de Guerra em Beirolas, a auto-estrada do Norte, o aeroporto, a emissora nacional e a RTP”, acrescenta o historiador Rui Ramos, num podcast do Observador.
A tentativa de golpe de Estado não se concretizou devido à intervenção dos militares que integravam o Grupo dos 9, apoiados por António Ramalho Eanes.
Os comunicados emitidos à população informavam da rendição das forças do COPCON, que é dissolvido. Já em Dezembro, enquanto novo Chefe do Estado-Maior do Exército, Ramalho Eanes suspende todas as assembleias e órgãos do MFA, que desaparece.
“Com o 25 de Novembro e com a intervenção da ala militar mais moderada, associada ao Grupo dos 9, a situação apaziguou-se na região e no País. Como disse Mário Soares, o 25 de Novembro fez regressar a pureza do 25 de Abril”, adianta Acácio de Sousa.
Para este historiador, “não é uma vitória da direita”, mas a “normalização da democracia”. “É uma data que deve ser evocada como se fosse a refundação do 25 de Abril. Mário Soares, com apoio de Sá Carneiro, Melo Antunes e Ramalho Eanes foram os grandes mentores dessa normalização”, diz Acácio de Sousa.
EC