Farmacêutico. Arqueólogo. Etnógrafo. Muitas foram as facetas de Manuel Vieira Natividade, ilustre cidadão de Alcobaça, que deixou um espólio rico e que continua desconhecido por muitos. Apesar de ter manifestado vontade de ver constituído um espaço que expusesse o resultado das suas pesquisas e trabalho de campo, e embora exista um edifício doado pela sua família, para que seja concretizada essa sua vontade, volvidos cem anos após a morte de Manuel Vieira Natividade, nenhum local foi constituído para que o público possa admirar condignamente o acervo do arqueólogo.
Surgiu, contudo, um movimento cívico, que tem erguido a voz pela defesa do património e pela criação da Casa-Museu. O movimento chama-se O Rebate e não deixa esmorecer a grandiosidade deste filho de Alcobaça.
Embora o prédio para constituição do espaço museológico tenha sido doado pela família Natividade ao Estado, e não ao Município, Paulo Inácio, presidente da Câmara de Alcobaça, adianta ao JORNAL DE LEIRIA que está a tratar do assunto, a analisá-lo com a Direcção-Geral do Património Cultural, esperando pela realização de um protocolo. Sendo que “a bola está agora com o Estado e não com a Câmara”, realça o autarca.
A mais notável figura de Alcobaça
Manuel Vieira Natividade (1860-1918) representa porventura a mais notável figura de Alcobaça. Nasceu em 1860 no Casal do Rei, freguesia de São Vicente de Aljubarrota, e era descendente de uma família de camponeses. Quanto às suas origens, não sendo pobres, não eram também muito abastadas. Contudo, porque os dotes de inteligência de Manuel Natividade não escaparam à observação da sua mãe, esta procurou afastá-lo da vida agrícola e orientá-lo para os estudos. E assim, em 1886, Manuel Vieira Natividade acabava por se diplomar em Farmácia pela Universidade de Coimbra. Ainda que formado em Coimbra, de modos cultos e educados, era um homem do Interior e que sempre esteve ligado à Estremadura.
Escritor, etnólogo e arqueólogo, Manuel Vieira Natividade realizou uma obra notável de índole regionalista, nomeadamente com trabalhos sobre a Pré-História e a História de Alcoba-ça e com a interpretação iconográfica dos túmulos de D. Pedro I e D. Inês de Castro. Na sua residência, Natividade organizou um vasto e interessante espólio arqueológico, reunindo colecções de objectos do período neolítico, da Idade do Bronze, do Ferro e do período Romano. Foi também o patriarca de uma família incontornável da história de Alcobaça do século XX, dando início a um conjunto de colecções, nomeadamente cerâmica e chitas de Alcobaça, que viria a ser continuada pelos seus descendentes.
Grutas d'Alcobaça: ciência e amor pela terra
Com o objectivo de assinalar o centenário da morte de Manuel Vieira Natividade e “honrar a memória deste ilustre alcobacense”, o movimento cívico O Rebate reeditou Grutas d'Alcobaça (1901), obra que considera ser “um dos seus estudos mais importantes sobre a arqueologia portuguesa”. “Poderia ter sido escolhido outro dos seus trabalhos para assinalar esta data, como por exemplo O Mosteiro de Alcobaça, a sua primeira publicação, com apenas 24 anos, já que O Povo da minha Terra foi reeditado por O Rebate em 2000, quando da realização em Alcobaça do debate Alcobaça que Museus?. A nossa escolha poderia também ter recaído sobre O Roteiro Arqueológico dos Coutos de Alcobaça, todavia optámos pelo livro Grutas d'Alcobaça, por não só se tratar de uma obra com notoriedade científica, mas também por nela transparecer o amor de Manuel Vieira Natividade à sua terra e às suas origens”, justificam os membros do movimento cívico.
A dedicação à sua terra e o gosto pela ciência são de resto forças motrizes do autor e que este deixa bem visíveis desde logo, nas primeiras páginas do livro: “No Carvalhal de Aljubarrota assentou uma riquissima povoação neolithica; e tão grande que numa facha de terreno de curtissima extensão foram exploradas vinte grutas, além de outras que estão por explorar, e, com certeza, muitas que estão por descobrir. Em provaveis relações se manteriam os habitantes das grutas que assentam numa facha do meu concelho, que deve medir cinco léguas de extensão, e porventura muito para além dos concelhos visinhos, em cujo estudo não entro.” […] Cabeço da Ministra, Pena da Velha, Rastinho foram as unicas grutas do Carvalhal que me deram instrumentos de metal, podendo affirmar-se para os das duas primeiras uma origem quasi seguramente romana. Rastinho e Ministra (baixas) dão instrumentos de cobre ligados a instrumentos de pedra. A gruta de Redondas, typicamente da edade do cobre, deu duas laminas de silex e dois machados de schisto com obliteração de gume, o que indica diversa adaptação, talvez a de polidores”.
Cinco cidadãos por uma só causa
Todos os seus livros e achados arqueológicos constituem “um património muito rico, que é desconhecido não só pelas pessoas de Alcobaça, como pelas pessoas da região em geral”, contextualiza João Lisboa, professor aposentado, que integra o grupo de cinco pessoas que têm pugnado pela instalação da Casa- Museu Manuel Vieira Natividade naquela cidade. Do lado de João Lisboa estão ainda o escultor José Aurélio, o advogado António Villa Nova, o professor Mário Costa e Ana Natividade Coelho, familiar de arqueólogo. João Lisboa sintetiza a história. Manuel Vieira da Natividade foi farmacêutico, mas dedicou grande parte da sua vida à arqueologia. Deixou, por exemplo, um espólio notável sobre as grutas de Alcobaça. E foi precisamente o livro Grutas d'Alcobaça, escrito pelo próprio Vieira Natividade, que o movimento O Rebate decidiu republicar no final do ano passado, por ocasião do centenário da morte do arqueólogo.
[LER_MAIS] Além do aspecto arqueológico, da imensa biblioteca, o acervo contempla ainda cerâmicas e tapeçarias, que chegam a Vieira Natividade por via do casamento com Irene Sá, explica João Lisboa. Todo este acervo está guardado pela Autarquia e pelo Mosteiro de Alcobaça, mas não tem visibilidade, lamenta o professor. As peças poderiam estar reunidas e expostas, tanto mais que a família já doou o prédio da futura Casa-museu. Contudo, o espaço merece obras de beneficiação, e talvez de ampliação, reconhece João Lisboa.
O movimento O Rebate recorda que a primeira referência que chama a atenção para a importância da criação de um Museu em Alcobaça data de Março de 1890, quando o próprio Manuel Vieira Natividade, no livro intitulado Roteiro Archeológico dos Coutos de Alcobaça, afirma: “Por elle [o Roteiro] se verá a riqueza arqueológica desta região, e poderá comprhenderse a vantagem na creação de um museu perfeitamente nosso, onde possam archivar-se os elementos mais preciosos para quem no futuro tenha que escrever a história completa deste concelho”.
E escreve ainda: “é necessário e indispensável que o governo coadjuve estes estudos creando ao menos em Alcobaça um Museu local, que concorra com uma verba para explorações que podem ser muito úteis ao paiz e à ciência.” Já em 1991, recorda o movimento O Rebate, com o objectivo de concretizar a instalação do Museu, Leocádia Natividade, filha de Manuel Vieira da Natividade, e que era à data detentora da maioria do acervo destinado à criação do Museu, doou ao então denominado Instituto Português do Património Arquitectónico todo o espólio, bem como a sua casa, para nela ficar albergada a Casa – Museu Manuel Vieira Natividade. Volvidos tantos anos, e “não existindo dúvidas sobre a qualidade e o interesse público” desta iniciativa, por que razão continua o ilustre cidadão de Alcobaça sem a Casa-Museu que faça jus ao seu percurso?
Entre outros motivos, O Rebate identifica de imediato “a falta de vontade política”, que “tem sido uma constante nas diversas tentativas para a criação do Museu”. O movimento cívico entende que “as formas legais para a sua institucionalização e definição dos aspectos operacionais, a falta de empenhamento por parte não só das autoridades locais mas também dos órgãos centrais vocacionados para este efeito, explicam parcialmente as dificuldades para a sua criação”. E tem sido de resto este historial que O Rebate não tem deixado de rebater junto de diversas personalidades, entre as quais vários deputados da Assembleia da República, salienta João Lisboa.