“Com mais esta ideia de facilitar a reconstrução nos centros históricos, está-se mesmo a ver o que vem por aí”, avisa um dos responsáveis pelo catálogo O Saque da Cidade de Leiria, da exposição realizada há 46 anos. José Marques da Cruz admite que “é altura novamente de acordar a consciência” e travar “o que está a acontecer” hoje, em 2023. “Você não consegue tirar uma fotografia sem apanhar duas ou três gruas”, comenta. “Não consegue ver um edifício antigo que não tenha uma mansarda ou um andarzinho a mais”.
Em Maio de 1977, sob a coordenação de Jorge Estrela, e com o envolvimento de José Marques da Cruz, Rui Ribeiro e outros leirienses, a exposição O Saque da Cidade de Leiria, no átrio do Teatro José Lúcio da Silva, quis “rememorar a maior parte do património urbano já perdido” e, principalmente, impedir quem “desordenadamente, promovia a substituição da cidade” de anteriores gerações “por uma outra de aparência mais moderna, mas também mais incaracterística, pobre e fria”, lê-se, na introdução do catálogo.
A ideia “era apelar à consciência dos habitantes” e mostrar-lhes “o caminho caótico que o urbanismo, em Leiria, vinha traçando”, em nome “de uma arcaica ideia de progresso e desenvolvimento, amparado no lucro fácil e na livre especulação imobiliária”, que esmagava “vestígios históricos” e criava um “vazio deixado pela destruição”.
No livro, editado pela primeira vez já este ano, e apresentado no dia 7 de Maio, os promotores da iniciativa escrevem que “a ameaça do camartelo ergue-se novamente sobre Leiria” e promete “devorar rapidamente tudo o que resta”.
“Quando a exposição foi pensada, estávamos em 75, acabadinhos de sair do 25 de Abril e com todos os proprietários com as garras afiadas”, a mobilizar o “ataque que se estava a fazer a tudo o que era antiguidade”, explica José Marques da Cruz. Neste momento, “está-se a assistir a uma época muito semelhante”, acredita. “Não é já a destruição, há um certo cuidado” e “uma outra abordagem”, mas é “literalmente, aquilo que se pode chamar obras de fachada”, aponta. “Mantém-se a fachada, destrói-se o miolo e faz-se uma coisa parecida para enganar o povo”.
Volvidos 46 anos, o contexto é outro. “Em 77, a ideia que se tinha do património não era a mesma que é hoje”, reconhece Rui Ribeiro. “As pessoas só consideravam património os edifícios classificados, tudo o resto era para demolir”. Nos dias que correm, “estão muito mais esclarecidas sobre o assunto e as qualidades patrimoniais são variadas e múltiplas”. Por outro lado, a definição de progresso “não é a mesma” e aceita-se que “o património não é só a questão da antiguidade, também tem a ver com qualidades estéticas, arquitectónicas ou até qualidades históricas”. Falta, agora, “repensar” e “perceber o que era a cidade histórica e perceber que ela tinha qualidades, que têm de voltar a existir nas novas construções”, salienta Rui Ribeiro. “E um dos grandes problemas, falando dos tempos actuais, são os espaços públicos, curiosamente, nas zonas novas das cidades, não só Leiria, que não têm qualidade”, porque, “a partir dos anos 60, a cidade passa a ser definida pelos especuladores fundiários e especuladores imobiliários, não pelas autarquias” e “hoje isso ainda acontece, de certa forma”, em urbanizações e loteamentos que “estão em muito mau estado” e “quase que se transformaram só em dormitórios”.
“É a diferença entre a rua e a estrada. A rua é uma coisa com vida”, resume Rui Ribeiro. Conceitos de urbanismo que “foram abandonados, têm de voltar a ser recuperados”, conclui, porque os espaços públicos “são as veias por onde circula o sangue da cidade”.
“Eu tenho uma opinião mais radical: acho que deve ser preservado tudo, porque tudo faz parte da memória”, diz José Marques da Cruz. “O que é que se ganha em destruir?”
Em Leiria, vê dois “bons exemplos”: o Mercado de Sant’Ana e, mais recentemente, o Palácio dos Ataídes. E um “caso grave”: o antigo Paço Episcopal, actual edifício Loja do Cidadão.
Ao longo de séculos, Leiria “destruiu muito”, mais do que outras cidades. O palácio dos Vila Real, o convento de Sant’Ana e o teatro D. Maria Pia, desapareceram. A transformação está documentada no catálogo agora disponível, iniciativa de José Marques da Cruz, Rui Ribeiro e Carlota Simões (companheira de Jorge Estrela) que reabilita o espírito da exposição de 1977, alimentada com 120 painéis a partir de postais ilustrados e 2 mil fotografias, com as imagens de 1977 captadas no mesmo ângulo que as imagens mais antigas.
A edição, através da Hora de Ler, acontece a propósito de outra exposição, que o Museu de Leiria dedicou, recentemente, a Jorge Estrela.