“O xadrez é a vida”, diz muitas vezes, “tem a abertura, o meio jogo e o final”. Mas a vida, neste caso, também tem uma mala cheia de histórias coleccionadas pelo mundo, carregada pela paixão arrebatadora por um jogo de tabuleiro e blindada com um amor repleto de companheirismo.
Carlos Oliveira Dias, de 62 anos, nasceu e cresceu em Moçambique. Tinha apenas oito anos quando percebeu que ficava “fascinado” a ver o pai e o tio, campeão nacional, a jogarem xadrez aos domingos de manhã.
“Enquanto arrancava cabelos brancos ao meu tio, para receber 20 escudos para ir à matiné e comprar um Kit Kat, eles diziam que ficava com um brilho nos olhos a vê-los jogar e ficava encantado com o cavalo”, recorda, a sorrir, com um tabuleiro à frente.
Estudou, praticou muito e chegou a conquistar títulos como campeão de Cabo Verde ou campeão nacional de xadrez por correspondência e também de equipas da 2.ª divisão.
Podia ter chegado longe como jogador, talvez fosse mestre, mas um dia optou por trocar de posição na competição, numa altura em que também se mudou para Leiria.
“A arbitragem começou de uma forma engraçada: um colega pediu-me para tomar conta de uma final da Taça de Portugal durante meia hora e eu fiquei a olhar para eles com medo que acontecesse alguma coisa. Sabia as regras, mas não era árbitro. Acabou por demorar mais tempo e, quando regressou, disse-lhe: gostei disto, vou para árbitro e não te prometo que vou chegar ao topo, mas dou-te a palavra de honra que me vou esforçar”, recorda, como se fosse ontem.
Mas a verdade é que passaram décadas. Alcançou o escalão de elite nacional e internacional, fez parte da lista de 10 melhores árbitros mundiais, arbitrou 42 campeões do mundo nas maiores provas de 27 países e tornou-se num dos poucos que pode formar árbitros.
Foram anos a coleccionar amizades, recordações e histórias, como quando o futebolista Xavi foi convidado para fazer o primeiro lance de um torneio e cometeu a gafe de saltar com o rei, ou quando teve de emprestar roupa a um jogador da selecção nacional que levou tudo para um torneio de 13 dias, menos as calças.
“É extremamente interessante arbitrar partidas com os melhores jogadores do mundo porque passamos várias vezes pela mesa e, das duas uma, ou não percebemos nada do que está a acontecer porque estão a um nível estratosférico, ou até percebemos e achamos que está a fazer um plano e depois faz diferente”, explica.
Numa modalidade que “requer muito estudo, cálculo, trabalho e preparação das partidas”, também já deu aulas a crianças, trabalhou em secções de diferentes clubes e fez parte das federações nacional e internacional. Dono de uma das maiores colecções nacionais da modalidade, tem “jogos de todo o mundo, gravatas, relógios antigos, cuecas, meias e coisas com valor inestimável, como um jogo de xadrez feito à mão ao longo de 10 dias, com um canivete e madeira, em Moçambique”, na viagem que marcou o regresso à terra natal ao fim de 35 anos, ‘à boleia’ de um convite para arbitrar um torneio.
Sem esconder “o sacrifício para chegar ao topo, porque é preciso abdicar de muita coisa e andar muitos anos a arbitrar de borla para se ganhar calo”, garante que “o balanço é muito positivo e gratificante”.
Quarenta anos depois, escolheu despedir-se das competições oficiais nos campeonatos nacionais realizados nos últimos dias na cidade do Lis.“É a minha cidade, carreguei Leiria pelos quatro cantos do mundo”, justifica.
A decisão está tomada desde o ano passado, e também se prendia com a vontade de se dedicar mais à família, mas infelizmente a esposa faleceu recentemente. Por isso, e apesar de admitir ser difícil, acredita que “é tempo de deixar o ‘stress’ das viagens entre competições para descansar, aproveitar para continuar a ensinar novos árbitros, fazer algumas provas não oficiais e passar mais tempo a jogar rápidas com malta amiga no Atlético Clube Sismaria”.
“Como diz um amigo: perdemos um árbitro, mas recuperamos o amigo do tabuleiro que tem sempre com histórias para contar”, conclui.