A vida de Orlando Saraiva já deu vários livros escritos pelo próprio, onde recorda memórias de “uma vida atribulada” que o levou aos quatro cantos do mundo e a todos os teatros da guerra colonial portuguesa. Sempre como telegrafista, ou “menina da rádio”, como eram apelidados estes operacionais pelos restantes companheiros.
Fora da Marinha, foi vereador na Câmara da Batalha, fundador dos Bombeiros Voluntários da vila e figurante no filme Non ou a Vã Glória de Mandar, de Manoel de Oliveira.
A 'viagem' de Orlando Saraiva começou há 90 anos ao lado do Mosteiro da Batalha. Nasceu num “berço de ouro”, mas, segundo conta, as “extravagâncias do pai”, acabariam por deitar a perder parte desse património.
A infância e adolescência foram tempos de rebeldia. Com o objectivo de “mudar a página” e porque “não queria ficar a vida toda a remendar bicicletas” na oficina do tio, seguiu a carreira militar.
Chegou à Marinha com 19 anos e apenas a terceira classe (seria já envergando a farda de marinheiro que completaria a instrução primária). A recruta foi feita em Vila Franca de Xira e a primeira viagem embarcado aconteceu numa lancha “velhinha” que não chegaria a Paço de Arcos. “Era para 27 homens e levava 300. Ficou parada no Tejo”, recorda.
Na Marinha, tirou o curso de telegrafista. “No trabalho que fazia era dos melhores, mas estragava tudo com o feitio que tinha”, conta a esposa, revelando que o almirante Leonel Cardoso – que foi chefe de Estado Maior do Comando Naval de Angola – lhe chegou a passar o serviço do marido. “Dizia-me: ‘ele é tão indisciplinado que ainda me fala mal e depois tenho de o castigar e preciso que seja ele a fazer o trabalho'”, conta Dona Tina.
[LER_MAIS] Angola seria apenas um dos palcos da guerra colonial por onde passou Orlando Saraiva, que fez “todas as campanhas de África”. São “milhares” de histórias. Diz que muitas “não se podem contar” em páginas de jornais, mas aceita partilhar algumas, como a “noite negra” passada quando a sua companhia de fuzileiros se encontrava em Pedra Feitiço, a Norte de Angola, no meio da selva.
Noite dentro, um grupo partiu, num bote de borracha, para uma clandestina caça aos jacarés. A determinado momento, encontraram um exemplar, com a sua enorme boca aberta. “O cabo que ia a manobrar atrapalhou-se. Disparei e o jacaré fechou a boca. Acabámos com a parte da frente do bote na sua boca. O sangue do animal chamou outros. Do bote, sobrou apenas a quilha. Passámos horas a boiar. Remámos com as mãos e conseguimos chegar às margens”, recorda.
Apanhados por 'rabo de tufão'
Numa outra ocasião, quando seguia a bordo do navio de guerra Afonso de Albuquerque, apanhou outro susto. “Íamos em direcção de Singapura, para reparar o navio, mas havia uma greve e tivemos de seguir para Hong Kong. Apanhámos um 'rabo de tufão', que rebentou com o mastro.”
Passado o susto, seguiramse quase quatro meses – o tempo que o navio esteve ancorado para ser reparado – em “grande”. “Hong Kong foi dos sítios onde mais gostei de estar. É uma cultura fascinante e aqueles milhões de luzes multicolores à volta da baía dão-lhe um encanto fora de série”, recorda Orlando Saraiva, revelando que, durante esse tempo, pôde ainda desfrutar de uma das suas grandes paixões: a ópera.
“Maravilhosos” foram também os dias em que esteveatracado na doca de Londres, por ocasião da viagem presidencial de Craveiro Lopes a Inglaterra. Certa noite, conta, quando os telegrafistas do navio se preparavam para jantar, apareceu-lhes na cabine de transmissão “um tipo todo sujo com óleo”.
Como falava inglês, Orlando perguntou-lhe se era servido. Partilharam o bacalhau com batatas e grão e, no no final, ele entregou- lhe um cartão com os contactos. “Era engenheiro e chefe da doca de Londres. Nos dias seguintes, levou- -nos a conhecer a cidade. Fomos à ópera, ao teatro, aos pubs. Foram cindo dias maravilhosos.”
Do álbum de recordações “publicáveis” de Orlando Saraiva faz também parte o trabalho de escuta ao qual foi chamado aquando do assalto ao Santa Maria, em 1961, quando o paquete navegava no mar das Caraíbas e foi desviado com o objectivo de provocar um golpe político-militar em Portugal. “Eu estava na estação [radionaval] de Apúlia. Foram buscar-me para fazer escutas ao Santa Maria. Nunca senti queo assalto desse para o torto”.
Depois de deixar a Marinha, em 1976, após uma passagem pelo comando da Nato em Oeiras, Orlando Saraiva fixou-se na Batalha. Chegou a ser vereador na Câmara, durante um dos mandatos de Francisco Coutinho, e a sua personalidade “rebelde” deixaria marcas, tendo, inclusive, existido um abaixo-assinado a pedir a sua saída.
“Não pactuava com certos esquemas”, alega, contando que, nesses tempos (finais dos anos 70 do século passado), as reuniões de Câmara era muito animadas. “Em certos dias, formavam-se filas” para assistir aos debates acalorados protagonizados por ele e que, às vezes, chegavam quase a vias de facto.
Não voltou à política, mas não se desligou da vida concelhia. Esteve na fundação dos Bombeiros Voluntários e do Rotary Clube da Batalha. Hoje, aos 90 anos, dedica parte dos dias a alimentar cães e gatos abandonados e pombos. “Gostava muito de ler e de estar ao computador, mas a vista traiu-me”.