A tradição diz que este é o tempo dos arraiais, festas e romarias, o Verão que rima com ranchos folclóricos, bandas filarmónicas, organistas e agrupamentos musicais. Mas um pouco por todo o distrito de Leiria há uma voz – como a da publicidade – a dizer-nos que a tradição já não é o que era.
Ou melhor: este continua a ser o tempo das rusgas e dos viras valseados, dos medleys ou teatros de paróquia em jeito de comédia para o povo, mas sopram outros ventos nas aldeias e vilas desta região.
Há antigas escolas primárias transformadas em centros culturais, e, nas aldeias, ouve-se música clássica ou barroca, há associações que abrem espaço às artes e que ligam bem o mundo rural com um registo urbano e cosmopolita, como se quisessem dizer aos outros que é possível o melhor de dois mundos – viver no campo e levar até lá os circuitos musicais que, noutro tempo, só paravam nas cidades.
Quando chegar a sábado, a aldeia da Maiorga, a quatro quilómetros de Alcobaça, estará pronta para experimentar outra vez essa aventura que é o Indie, o festival/ mostra de música alternativa que arranca em terceira edição.
Há três anos, António Manzarra foi desafiado pela direcção do Centro de Bem-Estar Social da Maiorga para organizar “qualquer coisa diferente”. Naquela freguesia sabia-se da experiência do músico no mundo “alternativo” da música, e não custava tentar: se ele já organizara mostras de bandas de garagem noutros tempos e à sombra do lar dos monges cistercienses, por que não levar essa música até à Maiorga?
“A verdade é que correu muito bem, superou todas as expectativas”, conta ao JORNAL DE LEIRIA o organizador, a poucos dias do evento. Num tempo onde o clima parece virado do avesso, a organização respira de alívio. Afinal, o palco está montado há muito, no salão que foi de baile(s), ao tempo em que o CBES da Maiorga não estava tão absorvido pelo serviço social que hoje desempenha na freguesia.
No sábado, Manzarra promete “bom ambiente, boa música, e grandes bandas”, tudo ao preço simbólico de três euros por entrada. Também ele se impressiona com a fidelização de público que o Indie começa a ganhar, num ano em que o cabeça de cartaz é Fast Eddie Nelson, em formato quarteto, com elementos dos Peste & Sida e Quartet of Woah.
Depois há os The Brooms – que fazem a apresentação do álbum Here They Come, em formato vinil – uma banda que conta com elementos dos Lulu Blind, Act-Ups e Gasoleene. “Quem anda nestes circuitos rock conhece-os a todos”, sublinha o programador, enquanto anuncia os Conjunto!Evite, a banda com influências do rock progressivo.
Não é para menos, afinal: dois dos elementos da banda são filhos de Tim, dos Xutos & Pontapés. Sebastião e Vicente Santos tocam bateria e teclados na banda que editou este ano o seu primeiro trabalho.
Em Maiorga vai certamente ouvir-se Fauno, o primeiro single do grupo. Manzarra, um professor de filosofia que sempre se dedicou à música nas horas vagas, costuma ironizar, quando fala do cartaz: “como não temos verba para trazer as bandas da primeira divisão, trazemos as da segunda. Por exemplo, à falta de conseguirmos os Xutos, trazemos os filhos deles…”
Escolas que agora ensinam cultura
Por toda a parte há escolas primárias desactivadas, edifícios tantas vezes em bom estado que fazem as Câmaras Municipais respirar de alívio quando são entregues a uma qualquer colectividade.
É o caso da Filho Sarilho, coqueluche do associativo de Alcobaça, que nasceu na antiga pré-primária de Pisões, freguesia de Pataias, apenas há um ano. Mas, na aldeia, há um rebuliço bem maior do que no tempo em que aquele espaço era apenas um jardim de infância. Julho inteiro é dedicado ao Femme Fête – um ciclo de quatro eventos com um denominador comum: enaltecer o papel da Mulher no mundo das Artes.
Serão concertos em três semanas seguidas, sempre no feminino, sendo que o primeiro acontece já esta quinta-feira, 5 de Julho – é a colombiana Lucrecia Dalt e a sua poesia electrónica. Mas há todo um programa de topo que leva ao lugar de Pisões nomes de que, lá na terra, a maioria das gentes jamais ouviu falar.
E que vão colocá-la no mapa cultural do País, e lá fora também. “Não é só trazer concertos de mulheres. É abanar as consciências. Porque, normalmente, este tipo de iniciativas só se faz nos grandes centros, nunca nestes pontos do País”, sublinha Raquel Bem, um dos nove elementos da Filho Sarilho.
Aos 24 anos, divide com o presidente, Jonas Gonçalves, não só a idade como o desejo de levar até àquele canto de Pataias outros sons e toda a arte. Jonas é agente e promotor de espectáculos, o que explica muita coisa quando o público arregala os olhos de espanto perante o cartaz. Os habitantes da vila são apenas uma pequena parte do público, que chega de Leiria, Batalha, Alcobaça, Nazaré ou Caldas da Rainha.
Noutra ponta do distrito, há outro antigo edifício escolar a espalhar a mesma magia, embora noutro registo. É o CCB (Centro Cultural da Borda), entre as freguesias de Vermoil e Santiago de Litém. Ali se instalou a Associação Artística Marquês de Pombal, que além de um quinteto de música barroca dá guarida também ao Projecto Jazz.
Neste Inverno, a população das aldeias vizinhas pôde assistir a uma temporada de concertos de música clássica e assistir à ressurreição do edifício onde muitos dos membros da associação aprenderam a ler. Ali, no lugar de São Francisco, apenas uns metros de ladrilho separam a associação, do salão da comissão de festas, que agora se habituou a apreciar a música de Bach nos mesmos ouvidos onde só vibrava o som dos sucessos de Quim Barreiros ou dos Minhotos Marotos.
É o que poderá acontecer também em Abiul, noutra antiga escola primária, onde a Fundação Dr. José Lourenço Júnior instalou uma Casa da Música, inaugurada no mês passado. Para já, é a escola de música que toma conta do espaço. Trazer o mundo à terra Por estes dias, já há uma instalação no Jardim do Cardal que faz parar quem atravessa a cidade de Pombal.
São dois cubos gigantes que anunciam o cartaz do Ti Milha, o festival de música da Ilha, na zona oeste do concelho que, entre 20 e 22 deste mês, cumpre a terceira edição. Termina amanhã o crowdfunding lançado pela organização – vale a pena espreitar o vídeo promocional, onde as avós da terra apelam ao contributo na iniciativa.
Quem teve a luminosa ideia de um festival foi Vítor Couto dos Santos, figura local que todos conhecem do restaurante O Caseiro, como forma de “homenagear uma certa cultura da Ilha”. “Na primeira edição, a imagem do Ti Milha foi uma personagem, que retratasse este bom ambiente que temos na terra”, conta ao JORNAL DE LEIRIA, David Gomes, presidente da Associação Recreativa, Cultural e de Promoção Social, que assume a organização do evento.
O nome? Tudo tem uma explicação. Qualquer idosa nas aldeias passa a ser a “ti qualquer coisa”, e as Emílias, que são muitos comuns na região, transformamse em “Emilha”, a quem todos tratam por “Ti ‘Milha”. A personagem encarna, por isso, uma mulher bem-disposta, como as artesãs que a partir da Ilha trabalham o bracejo, na cooperativa de cestinhos, as mesmas que dão a cara no vídeo que corre pela net.
E que se juntam também à festa. Essa é, de resto, uma faceta vincada do Ti Milha quando comparado com outra organizações. Se, em Pisões, na Filho Sarilho, Raquel Bem lamenta que, nem sempre, as pessoas da terra marquem presença nos eventos, na Ilha há um orgulho bairrista que leva a população a povoar o festival, logo no primeiro dia.
“As pessoas mais velhas vêm nem que seja só beber um copo, logo na sexta”, conta Wilson Capitão, outro dos organizadores. Depois, deixam o festival rolar mas regressam no domingo, dia que a organização dedica aos movimentos culturais da terra, com o sarau do Rancho ou a actuação do grupo de música popular Semibreves.
Há ali uma simbiose perfeita entre a terra e os forasteiros, a começar pela colaboração das outras colectividades, em especial a Filarmónica e o Grupo Desportivo Guiense. Wilson Capitão é um dos 20 jovens mais directamente envolvidos nesta organização.
Têm quase todos um traço comum: “todos nós fomos estudar para fora, mas todos gostamos muito da nossa terra. Alguns vivem cá outros regressam ao fim-de-semana. Quando voltamos, já trazemos outro mundo connosco, e é isso que queremos trazer para cá.
O exemplo de Valado de Frades
No princípio, era o Jazz O que está a acontecer nos últimos tempos por todo o distrito começou há cerca de 30 anos na vila de Valado de Frades (Nazaré), onde a Biblioteca de Instrução e [LER_MAIS] Recreio (BIR) foi responsável por abrir os horizontes da cultura à população. O festival de Jazz começou em 1999, 21 anos feitos no mês passado, mas, antes disso, já os sons do trompete, contra-baixo ou saxofone soavam na sala da BIR.
“Julgo que a primeira iniciativa remonta a 1986”, conta Adelino Mota, o director artístico do festival, orgulhoso dessa componente cultural que sempre existiu na sua terra. Foi ali que nasceu, afinal, a Big Band da Nazaré – hoje com cinco discos gravados e um mar de concertos no história. Mota não duvida de como o festival de jazz foi decisivo para mudar a vida de muitos jovens da freguesia.
“Hoje, qualquer aldeia do distrito está relativamente próxima de um dos seis pólos de conservatório que temos.” Mas, ainda assim, fica a nota: “a nossa foi sempre diferente das outras. Já nos anos 80 fazíamos aqui uma feira do livro. De resto, quem é que ousava falar de jazz nos anos 80, sem ser em Cascais? Valado de Frades, é claro!