O que é um carro? Leiria parece uma cidade apaixonada por automóveis (nada contra, mas o foco de atenção prende-se mais com o produto, criação de valor, do que com o lado cénico, que no grande esquema das coisas, pode ser menos importante). Um carro hoje, mesmo com motor de combustão, contém quilómetros de fios elétricos, milhares de chips semicondutores e milhões de linhas de código que controlam tudo, desde as fechaduras, aos travões, passando pelo sistema de entretenimento.
Um carro é uma peça de eletrónica/IT e cada vez menos um engenho mecânico. Esta verdade é ainda mais premente no caso dos veículos elétricos (VE). Nestes, a bateria e outros componentes eletrónicos representam mais de metade do valor dos componentes, em comparação com um décimo nos motores dos carros de combustão. Sendo assim, é natural que uma empresa conhecida por fabricar por subcontratação iPhones e outros gadgets (a Foxconn) deseje ser para os fabricantes de automóveis o que já é para a Apple e outras marcas de produtos eletrónicos de consumo: a fabricante contratada de escolha.
Esta nova realidade deve preocupar a indústria local e alertar os fabricantes europeus (que continuam entretidos a solicitar tarifas e o adiamento da proibição de produção de motores de combustão, em vez de inovar e pensar estrategicamente). No dia 8 de outubro, a empresa revelou dois novos modelos de VE, que se juntam a uma linha de seis designs anteriores, para que as marcas escolham e customizem ao seu gosto. Se um VE é um smartphone sobre rodas, por que não construí-lo como um smartphone? Para a Foxconn, o mercado automóvel é muito apetecível, dado o seu valor de mais de 4 “triliões” de dólares.
Na verdade, já existem alguns modelos da BMW, Jaguar e Toyota (de baixo volume e elevada margem), que são montados por empresas como a Magna Steyr. Mas existem dois problemas com a comparação com a Apple. Primeiro, o desafio de replicar este negócio é dantesco e envolve uma capacidade de logística tremenda (provavelmente alguns fabricantes chineses seguirão este caminho).
Segundo, a Apple domina a propriedade intelectual da cadeia de valor, investindo fortemente em I&D e Marketing – o que lhe permite preservar a vantagem competitiva – coisa que os fabricantes de automóveis europeus se esqueceram de fazer (note-se que BYD, a campeã chinesa de VE, gastou 27% das suas receitas em I&D no ano passado).
Seja como for, este é um novo sinal de alerta sobre o que é um carro, qual a sua cadeia de valor e quais os recursos que fornecem a vantagem competitiva – uma lição que empresas como a Kodak (boa a fazer filme, sem competências para câmaras) ou a Nokia (boa na eletrónica, sem competências de software) não foram a tempo de aprender.
Texto escrito segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico de 1990