Não fossem as placas toponímicas ainda erguidas ao longo da estrada que liga a sede de freguesia e Bidoeira, e o mais provável é que o que resta da antiga Colónia Agrícola dos Milagres passasse despercebido.
Muitos dos terrenos baldios que o Estado Novo tentou domesticar com searas (trigo, centeio e milho) estão hoje ocupados com floresta (pinheiro e eucalipto). Outros foram urbanizados ou encontram- se incultos. Aqui e ali, há ainda parcelas cultivadas.
Dos equipamentos colectivos (posto médico, forno comunitário, moagem e uma oficina tecnológica) nada resta. E todos antigos colonos já faleceram. Emília de Jesus, a última, morreu no início do ano, a caminho dos 92 anos.
Além das casas, muitas já alteradas, restam os descendentes desses colonos e as suas memórias de um projecto através do qual o Estado Novo procurou fixar pessoas à terra e combater o despovoamento de algumas regiões.
No total, foram sete as colónias criadas no País. A primeira, nasceu nos Milagres, em 1926, funcionando, durante algum tempo, como teste e ensaio às que lhe sucederam.
Docente e investigadora da Escola Superior de Educação e Ciências Sociais (ESESC) de Leiria, que fez a sua tese de mestrado precisamente sobre a Colónia Agrícola dos Milagres, Sara Mónico admite que a escolha da povoação para arrancar com este programa de colonização está relacionada com “uma forte pressão” nesse sentido do então director do Serviço de Baldios e Incultos, engenheiro Mário Pais da Cunha Fortes, e do pároco local, o padre José Ferreira Lacerda. É, diz, pelo menos isso que se percebe de um relatório do Ministério da Agricultura de 1935.
Por essa altura, habitavam na colónia cerca de 40 pessoas, número que cresceu para 84 em 1960. Os pais de Albertina Quitério foram dos primeiros colonos a chegar. Fixaram- se pouco depois da inauguração, vindos de uma aldeia vizinha, Mata dos Milagres.
Chegaram por intermédio do padre Lacerda, que, conhecendo as dificuldades da família – “não tínhamos casa nem terras” – propôs a sua instalação à Junta de Colonização. À sua espera tinham 18,5 hectares de terreno e uma casa modesta – “mais parecia um barracão em madeira” -, que mais tarde seria melhorada, com currais, equipados “com cisterna para os dejectos”, “três [LER_MAIS] juntas de gado” e alfaias agrícolas. “Tínhamos tudo o que era preciso para trabalhar”, conta Albertina Quitério, que nasceu na colónia, em 1929, e aí viveu toda a vida.
Foi também aí que conheceu o marido, Augusto Ferreira Remígio, que começou a trabalhar no local aos 14 anos, como guardador de gado. “Davam- -me algum [dinheiro] e a sopa”, recorda.
Nesses tempos, na segunda metade de década de 40, todas aquelas terras eram cultivadas. Semeava- se, essencialmente, “milho, centeio, aveia e batata”. Nas zonas mais áridas – e eram “muitas”, como frisa Augusto Remígio – os colonos tentavam tirar alguma rentabilidade através da floresta, plantando pinheiros e eucaliptos.
A fraca qualidade dos solos foi, aliás, um dos factores que contribuiu para o fracasso do projecto, não só nos Milagres, mas nos outros pontos do País onde avançou, quase sempre em lugares “isolados e inóspitos”. “A colonização foi realizada em terrenos pobres, dominados por floresta, que não permitiram, ao longo do tempo, grandes produções”, refere Sara Mónico, que aponta ainda como causas do fracasso a “falta de investimento e apoio técnico” e “a falta de aptidão de alguns colonos para o trabalho agrícola”. “Passaram por aqui muitos [colonos]. Ficavam quatro ou cinco anos e depois iam embora”, atesta Albertina Quitério.
A investigadora da ESECS explica que, nos primeiros anos, os colonos “tinham de evidenciar as suas qualidades de trabalho e dar provas de boa conduta”, caso contrário “eram expulsos”.
Além disso, e para conseguirem o título de fruição definitiva, “tinham de entregar um sexto da sua produção agrícola e pagar uma renda anual ao Estado”, o chamado 'casal'. Augusto Ferreira Remígio conta que, quando o sogro faleceu, os herdeiros tiveram de pagar “700 escudos” de rendas, recebendo um certificado que atestou que a propriedade era da família.
Posto médico ao serviço
A colónia era formada pela propriedade individual, os designados casais agrícolas, e por equipamentos colectivos, como moagem, que, segundo Sara Mónico, seria depois transformada num posto médico- -social, havendo também “memória de um forno comunitário e de uma oficina tecnológica”. “O médico vinha duas vezes por semana e havia uma enfermeira”, conta Albertina Quitério. A seu lado, o filho Augusto Manuel Remígio recorda- se, por exemplo, de ali ter feito rastreios à tuberculose.
A par dos serviços médicos, os colonos contavam ainda com o apoio de engenheiros agrários e do regente agrícola. “Conheci os engenheiros Poço e Figueiredo. Colaboravam com o pessoal, com ensinamentos mais técnicos”, diz Henrique Abreu, filho de um casal de colonos que se fixaram no local em 1955. A família era natural de Aldeia Nova, concelho de Ourém, uma das terras de origem daqueles povoadores, que chegaram também de localidades distantes como Trancoso ou Montalegre. “Havia legislação que definia o perfil do colono, perfil que foi mudando ao longo dos anos perante os sucessivos fracassos desta colonização. Pretenderam- se, sobretudo, 'chefes de família', com escassos recursos económicos e sem propriedade”, explica Sara Mónico.
“Muitos não tinham nada e acabaram por ficar bem, mas à custa de muito trabalho”, reconhece Albertina Quitério. Trabalho, muito trabalho, é também o que destaca Henrique Abreu das poucas memórias que diz ter da antiga colónia, onde os seus pais “compram ao Estado 22 hectares”. “Serviu para desgastar o corpo a trabalhar. Era tudo manual. A ceifa, por exemplo, fazia-se só com a força braçal.”
Após o 25 de Abril, o Estado, que desde o final da década de 60 já “pouco intervinha” através da figura dos regentes agrícolas, deixou de controlar a colónia. No entanto, houve ainda um período de sobressalto, a seguir à revolução. Augusto Manuel Remígio tinha então 12 anos, mas lembra-se do receio que houve de, “com a reforma agrária”, os antigos colonos serem expulsos. “O meu pai e os meus tios andavam assustados. Tinham medo que os mandassem daqui para fora.” Mas isso não aconteceu.
As famílias que ali viviam já eram donas da propriedade, pelo que “não houve desalojamentos”, nota Sara Mónico, que considera que, apesar das “adversidades” que o projecto sofreu, “ter conseguido manter-se em funcionamento de 1926 até ao início dos anos 70, do século XX, representa uma grande vitória”.