Sempre sozinho, umas vezes com tudo programado, outras ao ritmo do improviso, preferencialmente de comboio, mas usando também o autocarro e a bicicleta e, quando assim tem de ser, o avião e o carro. É este o perfil de viajante de Pedro Gil, natural e residente em Leiria, que já visitou 75 países, espalhados pelos cinco continentes. A estreia aconteceu em 2002, com um bilhete de interrail global, com a duração de um mês. “Parti para um vício que me alargou, preencheu e proporcionou histórias e emoções que a vida quotidiana jamais poderia oferecer.”
Seguiram-se, depois, mais três interrails, com o viajante a apontar o comboio como a “simbiose perfeita”, já que dá acesso a “quase todos os locais, de maneira ecológica, e proporciona vistas únicas”. Foi, aliás, desta forma que Pedro Gil percorreu muitos países, em viagens que deixaram histórias para mais tarde recordar, como aquela passada numa estação ferroviária e quando um indivíduo, “visivelmente transtornado”, o abordou, dizendo “ser ex-combatente na guerra da Jugoslávia, que andava fugido e que estava farto de viver”. Enquanto falava, tirou “um aparelho artesanal” da mochila. “Desatei a fugir e fui ter com um polícia, informando que havia alguém com uma bomba. Andei três dias a ver a cara do homem em todo o lado.”
Numa outra vez, em Israel, foi interrogado pelas autoridades, depois de lhe terem detectado um bilhete de autocarro em Árabe. “Pensaram que eu tinha estado na Palestina. Libertaram-me quando perceberam que o bilhete era da Jordânia”.
Em 2019, Pedro Gil partiu para uma volta ao mundo, que incluiu dois dos destinos que mais o marcaram, o Japão e Singapura, a juntar à Islândia, que considera “do outro mundo”. Foi a sua última grande viagem, com o projecto de percorrer de comboio o sul de África, entre a Tanzânia e a Cidade do Cabo, a ficar em lista de espera, assim como a ideia de fazer a América do Sul e de conhecer a Índia.
A “icónica viagem da fome”
A Índia está também entre os destinos que Luís Malhó, consultor de empresas de Porto de Mós, espera vir a conhecer. Para já, soma mais de 70 países visitados, desde a primeira viagem, que foi “icónica”. Ainda hoje, é conhecida entre a família e os amigos como “a viagem da fome”. Tinha 18 anos e, juntamente com um primo, quiseram ir de boleia até à Suíça.
A ideia era ficarem um mês a apanhar morangos e, com o dinheiro ganho, fazer depois um interrail. Só que nada correu como previsto. “Não houve boleias” e, quando chegaram a Genéve, também já não havia morangos para apanhar. Resultado, o dinheiro que levavam foi quase todo gasto nas deslocações. “Passámos mal. Os últimos dois/três dias não comemos praticamente nada”, recorda, referindo ainda as dificuldades de comunicação, que fizeram com que estivesse uma semana sem telefonar para casa. “Os nossos pais já pensavam que tínhamos morrido.”
Apesar das contrariedades, Luís Malhó terminou a aventura com a certeza de que querer voltar a sair, para “ganhar mundo”. E, para isso, “é preciso conhecer outras pessoas, contactar com outras realidades e viver para além do dia-a-dia”. “Esta dimensão da viagem permite-me fechar parênteses das minhas rotinas diárias. Atingir um momento de liberdade, por não estar condicionado às rotinas e obrigações do dia-a-dia”, reforça o consultor de empresas, que programa as suas próprias viagens. O processo chega a demorar meses – “é uma viagem dentro da viagem” -, mas permite-lhe economizar “bastante”. “O bem maior, que é viajar, sobrepõe-se ao conforto”.
Das muitas viagens que já fez, Luís Malhó destaca a visita de cariz humanitário à Guiné-Bissau, atravessando parte de África de carro, e a São Tomé e Príncipe e Tailândia pela beleza natural. No final do ano passado, esteve no Peru e na Bolívia, numa viagem que incluiu o caminho Inca até Machu Pichu. Foram 44 quilómetros, sempre a subir e a descer a pique, atingindo os 4000 metros de altitude. “Quando atingimos o pico, estava a chover e nublado. Não vimos quase nada. Mas valeu pelo caminho e pela superação.”
Partir só com bilhete de ida
Quando, aos 30 anos, começou a viajar, Carlos Sintra estabeleceu como meta chegar aos 50 anos com outros tantos países visitados. Não só atingiu o objectivo como o ultrapassou largamente. Aos 57 anos, este operador de seguros, residente em Leiria, já visitou 89 países e espera atingir uma centena no tempo que lhe falta para completar seis décadas de vida, mantendo “a ambição máxima de conhecer todos os países do mundo”. Fá-lo, diz, não pelo prazer de acrescentar bandeiras ao mapa que tem sala e onde vai assinalando os destinos já feitos, mas pelo desafio.
“Poder escolher onde dormir umas horas antes ou decidir, onde estou, o que fazer no dia seguinte, é como fazer parte de um qualquer elenco de um filme, rodado no local. É uma forma de me desafiar. É adrenalina saudável, pura e dura”, afirma Carlos Sintra, que, normalmente, parte só com um bilhete de ida. Uma opção que já lhe custou dissabores, como aconteceu na partida para Moscovo, numa viagem que fez em 2014.
No check-in “apresentei o passaporte com o visto de uma semana na Rússia. Não me queriam deixar embarcar porque tinha de ter a viagem de regresso ou apresentar uma morada em Moscovo”, conta, explicando que precisava apenas de chegar à capital russa, para apanhar o comboio em direcção a San Petersburgo e, depois, a Helsínquia”, seguindo de barco até Talin e de avião até Copenhaga. Aí, apanharia o voo de regresso a Portugal, onde queria chegar impreterivelmente a 10 de Março para assistir ao concerto Scorpions. “Depois de alguma insistência, a funcionária sugeriu-me que fosse a uma das agências viagens no aeroporto pedir uma simulação de um voo de regresso de Moscovo para Lisboa. Só assim me deixou embarcar para a Rússia.”
Safos por Portugal e pelo Benfica
Em quase 40 anos de viagens, Carlos Sinta acumulou muitas “histórias para contar aos netos”, várias partilhadas com Luís Malhó, com quem tem feito algumas viagens, como aquela que iniciaram, com mais dois amigos, em 2017, com o objectivo de percorrer o Leste da Europa num carro velho comprado para o efeito. “Num ano percorremos alguns países e deixámos o carro no final da viagem. No ano seguinte, voámos até essa cidade e continuámos a viagem”, explica Carlos Sintra.
Uma das primeiras peripécias aconteceu na capital do Montenegro, quando pararam para “beber uma cerveja” e descansar um pouco. Foram “breves minutos”, mas os suficientes para a polícia lhes rebocar o carro, que estacionaram na zona das embaixadas onde era proibido. Depois de “horas de espera” na esquadra, quando o comandante, que pensava que eram polacos, descobriu que vinham de Portugal e começou a falar do Benfica e do estádio da Luz. “Mudou completamente a sua atitude. Tudo ficou facilitado e, em pouco tempo, estávamos despachados apenas com uma ou duas multas das várias a que estávamos sujeitos”, relata Luís Malhó.
Expulsos do comboio de madrugada
Noutra etapa da viagem, em que tinham de ir buscar o carro à Ucrânia, a casa de familiares de imigrantes ucranianos a viver no Juncal, Porto de Mós, uma nova complicação com as autoridades. Tinham voado até Minsk (Bielorrússia), onde apanharam o comboio com destino a Kiev. A meio da viagem, na fronteira entre os dois países, após a revista e controlo de passaportes, o grupo foi expulso por não ter visto para viajar por via terrestre.
“Havia uma competição desportiva internacional que isentava de visto quem entrasse de avião. Mas essa prerrogativa não era válida para outros meios de transporte”, especifica Luís Malhó. Às quatro da manhã, o grupo foi a pé, através dos carris, até à estação mais próxima para apanhar outro comboio de regresso a Minsk, seguindo depois de avião para a Ucrânia.
“Quando se viaja desta forma, há sempre lugar ao imprevisto. Mas isso também faz parte da experiência”, alega Carlos Sintra, que aponta o Botswana, com o delta do Okavango, as grandes savanas e o parque natural de Chovi, como um dos países que mais o marcaram, a par da Namíbia e do Irão, pela beleza das paisagens. Já a nível cultural e histórico, foram marcantes as visitas ao Egipto, Nepal, Índia e Vietname.
A caminho do rio Amazonas
“Não existe o melhor ou o pior sítio. Existem locais onde tive experiências absolutamente excepcionais e que me marcaram por isso”, assume José Luís Jorge, fotógrafo de Leiria, que se confessa um apaixonado por viagens. “Não tenho uma explicação racional. Talvez porque seja curioso desde que tenho consciência de mim como pessoa. E para ser viajante, é preciso ser curioso.”
Não tem contabilizados os países que já visitou – “seguramente mais de 50” -, alguns dos quais, mais do que uma vez, como a Roménia, onde chegou a viver um curto período de tempo, suficiente para estabelecer amizades que se mantêm até hoje. Tem também uma predilecção por rios e já fez várias viagem seguindo grandes cursos de água.
Uma das “mais interessantes” levou-o ao longo do Danúbio, desde a nascente, na Floresta Negra (Alemanha), até ao Mar Negro, onde desagua. Também já percorreu o rio Mekong, que atravessa vários países asiáticos e está agora a preparar uma viagem entre as proximidades da nascente do Amazonas – “nasce num sítio muito inacessível a mais de 5000 metros de atitude” – até à foz. Partirá em Outubro e prevê regressar em Dezembro, percorrendo territórios do Peru, Colômbia e Brasil.
“É um projecto que tenho há algum tempo e que nasceu da grande paixão por rios”, partilha o fotógrafo, de 61 anos, que fez a sua primeira viagem aos 19 anos, a Espanha e a Marrocos, num tempo em que não havia GPS, internet ou telemóveis. Foi sozinho, já que a dias da partida o amigo com quem iria desistiu, apenas com o apoio de mapas e de informação recolhida em enciclopédias.
Assaltado e repatriado
Hoje, a prepararão é muito maior, funcionando como “uma viagem antes da viagem”, diz José Luís Jorge, frisando, no entanto, que “há sempre uma componente de improviso”. Improviso que, muitas vezes, resulta das contrariedades que surgem ao longo da viagem, como aconteceu nas três vezes em que foi assaltado. Uma das situações ocorreu em Málaga (Espanha), quando se viu “espoliado” dos documentos e de “todo o dinheiro, à excepção de uns trocos que guardava num bolso e que dariam para uma refeição ligeira”. Na sequência desse assalto, acabou repatriado.
Numa outra vez, em Luang Prabang (Laos), voltou a ficar sem documentos e algum dinheiro. Foi obrigado a dirigir-se à missão diplomática portuguesa mais próxima, em Banguecoque, para obter nova documentação. “Isso implicou passar duas fronteiras indocumentado”. O terceiro assalto, o menos grave, aconteceu na viagem que fez a pé pela fronteira entre Portugal e Espanha, durante a qual vivenciou um dos momentos de maior risco, quando foi cercado por quatro cães de grande porte num lugar ermo. “Podia ter corrido muito mal, mas eles acabaram por me deixar seguir caminho.” E seguir caminho é o que quer continuar a fazer, movido “pela curiosidade, pelas pessoas e pela vontade de conhecer pessoas e lugares”.
“Sou muito o resultado das viagens que fiz e das pessoas que conheci”
A bicicleta tem sido parceira de viagem de Joana Oliveira e do companheiro, Nuno Pedrosa, que já percorreram a América do Sul e o percurso entre Nova Zelândia e Portugal em duas rodas. Nesta fase, as viagens estão em stand by, assume Joana, natural de Leiria e formada em turismo, radicada nos arredores de Évora, onde é ceramista.
“Sou muito o resultado das viagens que fiz e das pessoas que conheci. São experiências que funcionam como uma tatuagem emocional que ganhamos para a vida. Talvez por isso me tenha lançado de cabeça neste novo projecto”, assume Joana Oliveira, de 46 anos, que, após concluir o curso de Turismo e Ambiente, se mudou para Londres. “Há 20 e poucos anos, Inglaterra era uma plataforma de lançamento para viajar e conhecer pessoas.”
A primeira aventura levou-a à América do Sul, onde, juntamente com Nuno Pedrosa, de Monte Redondo, fez o percurso de bicicleta entre o Equador e a Argentina. Aí, viveram situações “extremas”, levando “ao limite” o físico e a mente. Houve semanas em que pouco comiam, por não conseguirem alimentos, mas continuavam a puxar “bastante” pelo corpo. Também enfrentaram uma tempestade que os deixou sem tenda nem abrigo, numa época do ano em que as temperaturas baixavam os 10.º graus negativos. “Os carros passavam e não paravam, adensando a nossa incerteza de conseguirmos abrigo antes de cair da noite. Acabámos por ser salvos por um morador local, que nos deu boleia”, recorda Joana Oliveira.
Terminada a viagem, o casal regressou a Inglaterra para trabalhar e juntar dinheiro para a viagem seguinte. Desta vez, o objectivo era ligar a Nova Zelândia e Portugal de bicicleta. Fizeram-se ao caminho em Janeiro de 2012 e, durante quase três anos, pedalaram perto de 40 mil quilómetros, atravessando um sem número de países. Pelo meio, fizeram três meses de voluntariado em Timor. “Gostamos de ficar nos sítios para que estes se entranhem em nós e nos permitam deixar também uma marca”, aponta, confessando que, nessa viagem, foi “agradavelmente surpreendida” por algumas das antigas repúblicas soviéticas, como o Turquemenistão, Uzbequistão e Tajiquistão.
Comparando as duas aventuras, Joana Oliveira refere-se ao percurso americano como “uma viagem a cores”, enquanto a ligação entre a Nova Zelânida e Portugal foi “mais a preto e branco”. Na América Latina, por força da língua, “conseguimos entrar mais profundamente nas pessoas, perceber o que sentem, falar das suas expectativas e sonhos e trocar ideias”. Na outra viagem, a comunicação foi “mais em modo de sobrevivência, o saber onde há água ou supermercados ou onde pernoitar”, exemplifica a ceramista, que acalenta ainda o desejo de “fazer África”, eventualmente “uma viagem temática”, relacionada com a sua nova vida, ligada ao trabalho do barro.