Até onde pode a arte levar o artista? A exposição Para Lá dos Montes na cave do Banco das Artes Galeria (BAG) aproveita o efeito de isolamento provocado pela antiga caixa-forte – o edifício foi a agência do Banco de Portugal em Leiria – e João do Vale mostra uma centena de desenhos que, segundo a folha de sala, constituem “exercícios de fuga, de escape e de sobrevivência através da viagem mental e do escapismo”.
A tinta da china e o grafite oferecem no papel as possibilidades imaginadas, como se com o pincel e o lápis o artista pudesse escavar e evadir-se.
“Cada desenho representa uma intenção ou um desejo, uma vontade de liberdade (…) São caracterizados por forças, energias, cargas, intensidades que pretendem ir para além destas paredes”, diz João do Vale ao JORNAL DE LEIRIA. “Eu estou prisioneiro do meu próprio discurso sobre a prisão”.
O conjunto inaugurado na sexta-feira, 10 de Novembro, é o fruto da residência de uma semana em que João do Vale se obrigou, durante várias horas por dia, a trabalhar no silêncio frio e hermético, sem distracções, austero, da caixa-forte do BAG. “Literalmente, um lugar de clausura”, que “parece uma cela”.
O compartimento maior ao centro e o corredor a toda a volta – como um labirinto sem início ou fim – são ocupados de modo a que o público sinta a densidade do piso subterrâneo e tenha de o percorrer para descobrir a totalidade das obras. “Há uma espécie de instalação com os desenhos que traz uma certa performance, uma habitação do corpo no espaço e uma representação do corpo por zonas do espaço onde o desenho vai ser aplicado”.
Estreia em Leiria
Para Lá dos Montes é a primeira exposição individual de João do Vale em Leiria, cidade em que viveu desde criança. Actualmente, reside no concelho de Pombal. No texto disponível para os visitantes, o antigo aluno da Faculdade de Belas Artes do Porto, onde se doutorou, explica que os desenhos exibidos no BAG são “visões de sonho que só os marginais e os prisioneiros sabem gerar”. Projecção “mental, interior”, como “uma esperança”. Reflexo “de uma mente que aspira à liberdade”, mas, também, reflexo “de uma liberdade que nos oprime e nos isola cada vez mais nos nossos sonhos, desejos e aspirações (que não chegam a cumprir-se)”. O indivíduo subjugado e separado da sociedade, como um monge detido num claustro, as prisões que podem ser materiais, mentais ou emocionais.
Na conversa com o JORNAL DE LEIRIA, João do Vale chama-lhes “micronarrativas”. Sempre, não premeditadas. “Parto para o desenho com a folha em branco e com a cabeça em branco”, ou seja, há “uma representação automática de uma construção através da emoção”. E detalha: “Construo com as emoções, não construo com a figuração. E não tenho o desejo, propriamente, de ir ao encontro de facilidades de observação ou facilidades de percepção, prefiro que as pessoas percebam as emoções que andam por trás do desenho, ou à volta do desenho, ou dentro do desenho”. São “janelas possíveis”, com “carga dramática”.
Durante a residência artística, “os desenhos tornaram-se mais energéticos, mais desesperados, quase mais simples ou minimais”. Numa linguagem “à maneira do artista” ficam patentes “pequenos gritos para tentar chegar ao outro”, por vezes “denúncias” de situações impostas desde fora, outras vezes “apelos de ajuda” ou “idealizações de uma liberdade desejada”.
A exposição Para Lá dos Montes pode ser vista no BAG até Junho de 2024.