Texto de Pedro Miguel, para a Vice Portugal
O álbum Amai, de 1994, causou polémica no meio mais tradicional, pois misturava fado com samples, música pop e ainda metia lá pelo meio uma versão de Sorrow's Child, de Nick Cave. Portugal estranhou, mas David Byrne, dos Talking Heads, entranhou e deu-o a conhecer ao Mundo através do catálogo da sua editora, Luaka Bop.
Apresentou-se ao vivo no Festival Entremuralhas, em Leiria, e falámos com ele sobre o novo disco que está para vir, fadistas punks, a vida, a Lisboa que ninguém está a ver e o regresso à música depois de uma espécie de exílio espontâneo.
Tem um novo disco na calha, é verdade?
Sim. Convidei o Carlos Maria Trindade para trabalhar comigo. É uma aliança que vem desde 1990 e era mais do que natural. Esse disco está para ser acabado, será mais (detesto dar nomes as coisas)… será mais… limpo? É um processo que tem quatro anos, mas que quando começou foi sem deadlines no horizonte, sem pressão de editoras. Não havia ditaduras estéticas.
Mas, sempre ligado ao fado?
Sim, a matriz claro que é essa. Gosto muito de fazer outras coisas, mas, para mim, a questão do fado – e não sou eu que o digo – é que os próprios fadistas do princípio do século XX, finais do século XIX, eram uns punks, uns outsiders, que se queixavam, que cantavam à vida.
Em certa medida também um pouco na génese da música de intervenção?
Precisamente! Música de intervenção da época. Temos de tentar perceber como é que as coisas seriam nessa época. Adoraria saber exactamente como era, mas não temos ainda máquinas de voltar atrás ou à frente, porque se houvesse ia lá ver como é que era. E não seria só eu, haveria de ir muita gente. Mas sim, a matriz do fado está lá, mas o fado é cantar a própria vida. Para mim, um Leonard Cohen é um fadista.
Canta Nick Cave…
Ui, esse então… tem lá tudo.
Pegando nesse conceito, o fado é cantar à vida mas, se calhar, também à má vida, à sorte e à má sorte…
A vida inclui tudo isso, claro. Se bem que acho que a vida, de sorte não tem nada. É mais uma questão de castigo, de penitência. Mas será que tem de ser sempre assim? Não poderá haver nas suas músicas um lado alegre, de celebração? Há, mas não é uma questão de alegria. Não há alegria sem tristeza, nem tristeza sem alegria. São dois conceitos em que um não existe sem o outro. Repare na expressão: "morri a rir". Se formos analisar a raiz etimológica e se formos falar do que é "normal", para mim não há nada que seja normal, essa tristeza é mais normal do que a alegria. Não quer dizer que uma pessoa ande aí pelos cantos a chorar todo o dia, não é nesse sentido. É a busca da exacta permanência de onde estamos. É claro que há momentos melhores e outros piores, momentos maus e muitos bons, mas isso encerra tudo. Acho que se tivesse de definir a vida e só pudesse escolher entre a alegria e a tristeza, escolheria a tristeza! Ou então tínhamos de arranjar uma palavra que contemplasse as duas.
Sempre teve uma postura diferenciada. Estaria à frente do seu tempo e agora é que faz sentido?
Não faço ideia, porque nunca pensei nesses termos. Estou é preocupado com aquilo que tenho. Se vou para cima de um palco, tenho de gostar daquilo que estou a fazer, não pode ser de outra forma. Acho uma audácia ir buscar coisas que já estão feitas e muito bem feitas, de há 40 ou 50 anos – não estou a dizer que não se possa ir buscar -, mas ser sempre igual. No universo do fado isso acontece muito e à descarada, para não dizer outra coisa. E isso custa-me. Portanto, estando à frente ou não, não foi pensado. Foi como aconteceu, assim como a minha retirada, que também não foi pensada. Este regresso já foi uma decisão tomada e pensada, mais uma maneira de começar a perceber o que é que eu vou fazer da minha vida, se vou acabar aquilo que comecei, ou não, enfim… decidi… take a shot and we'll see.
Em 2017, dizia , canta sobre o quê?
Se ouvir a letra da música que ainda nem tem título definitivo – será Decreto ou Ultimato – diz: "daqui te peço Lisboa, não me fales do teu fado, nem rosários de amarguras, das tuas ruínas escangalhadas a rolar pelas colinas…". É um bocado a Lisboa que parece que toda a gente não está a ver. Há muitas colinas escangalhadas, os símbolos a rolar por ali a baixo, os corvos não existem, as naus também não e é outra Lisboa, de facto. De modo que tenho de ir à outra [Lisboa], porque esta ainda não me diz muito. Não sou contra o progresso em Lisboa, não é pecado ganhar dinheiro, mas é pecado ser soberbo. Se é que há aqui algum pecado. No entanto, pareceme que esta questão está a ser muito instrumentalizada e Lisboa corre o risco de vir a ser uma cidade sem alma! Como já é Veneza, por exemplo. Veneza às seis da tarde não tem ninguém. Durante o dia, são aos magotes, gente por todo o lado a tirar fotografias indiscriminadamente, mas já ninguém lá mora. Em certos bairros de Lisboa tens sítios onde as pessoas estão a ser despejadas para se construirem hostels. A Irlanda lida muito bem com isso. Durante o ano inteiro têm uma expressão incrível no Mundo, com prémios Nobel, música, actores, etc… mas lida com o turismo de uma maneira muito soft, não é a causa da sua existência, mas é mais uma entre outras maneiras de viver. Não pode ser o tudo em detrimento do nada.
Em Lisboa também faltam poetas?
Não sei por onde eles andam. Artistas há muitos, agora a arte… [risos]. Mas, volto ao que disse há pouco. Para mim estar em palco é a causa disto tudo. Preciso de ser o primeiro a gostar de estar em palco para o dar a alguém. Isso não tem nada a ver com vaidades. Seja na música ou noutra coisa qualquer. Estando num situação de que, se quiser não faço, então não faço mesmo. Foi também por isso que me fui embora, porque sabia que não poderia dar nada de jeito a ninguém.