A pandemia da Covid-19 apanhou todos desprevenidos. Como foi gerir a equipa de enfermeiros na urgência?
Ajudou bastante sermos uma unidade acreditada, que já tem algumas políticas de segurança. Já tínhamos tido previamente a questão do ébola. Portanto, o Serviço de Urgência já estava de alguma forma dotado de alguns circuitos e de equipamentos de protecção individual (EPI). No entanto, é sempre difícil prever o que aí vem. O Serviço de Urgência é um serviço de portas abertas ao exterior e estávamos, como ainda estamos, receosos daquilo que nos podia entrar em termos de tipologia e quantidade, acompanhado ainda de toda a resposta que tínhamos de dar aos doentes não Covid. A primeira fase, em Março, não foi fácil, mas foi mais fácil do que estas fases que temos vindo a ultrapassar, com maior número de doentes. Dimensionámos o serviço para um número de doentes e as coisas correram efectivamente bem.
Como foi responder nesta última fase?
Com o início do Outono, os doentes começaram a surgir. A grande dificuldade surgiu em Janeiro, como se verificou em grande parte do mundo. Não sei se tem uma causa directa com o termos confinado ou não. Tenho a noção de que se as pessoas ficarem em casa e se houver menos circulação, existe menos contágio. No entanto, existirão outros factores que têm uma tradução importante na razão de Janeiro ter sido tão difícil. Estávamos no Inverno, temos outros contextos respiratórios associados, tivemos duas épocas de comemoração familiar e temos, acima de tudo, estirpes novas com carácter mais contagioso, segundo a descrição científica. Tudo isso junto terá feito com que o mês de Janeiro tenha sido difícil.
Qual tem sido o papel dos enfermeiros nesta pandemia?
Os enfermeiros deveriam ter um reconhecimento social maior. Não quero dizer que sejamos a peça mais importante. Seguindo a filosofia dos países nórdicos, somos todos importantes: desde o assistente operacional, às senhoras da limpeza, ao enfermeiro, ao médico menos diferenciado ou mais diferenciado. Todos têm o seu lugar, mas se pensarmos no papel do enfermeiro nas 24 horas do dia, somos a profissão que mais tempo passa junto dos doentes e que, por vezes, acaba por vivenciar também com eles problemas que outros profissionais, que façam só uma observação clínica, não sentem. Não estou com isto a dizer que em termos emocionais são os enfermeiros que mais sofrem este impacto, mas quanto mais tempo passamos com estes doentes é óbvio que, em termos psicológicos e até de saúde mental, sairemos mais afectados. Os enfermeiros portugueses estão bem preparados, a profissão evoluiu muito nestes últimos 30 anos. Os enfermeiros adquiriram nas instituições de saúde portuguesas um papel importante quer na gestão do processo quer no acompanhamento dos doentes e na sua vigilância. Conseguimos despistar situações de maior ou menor gravidade, com uma parceria interdisiciplinar com a equipa médica e com as assistentes operacionais. Isso traz-nos uma responsabilidade acrescida em não falhar. Conseguimos fazer um diagnóstico e um prognóstico, nunca descurando a questão das relações familiares. Esse é talvez um dos maiores problemas desta pandemia. A questão dos doentes terem de ficar isolados, o não acompanhamento pelos familiares, os receios que têm, o termos de estar disponíveis (com o afluxo de doentes), que não deixa de ser tão importante como a patologia que traz o doente, e depois o morrer sozinho. Aquilo que mais me custa é as pessoas morrerem sozinhas, desprovidas do contexto familiar, e serem enterradas sozinhas.
Os enfermeiros têm então um papel relevante na pandemia pelo tempo que passam com os pacientes.
As unidades hospitalares deveriam ter, ou têm em número reduzido, serviços de psicologia, psiquiatria e social. Todos têm feito um esforço no sentido de dar a melhor resposta. Temos um doente que atingiu o seu grau de cura, mas depois há o receio da integração no meio social. Muitas vezes, acabamos por ficar com estes doentes em permanência porque não pomos as pessoas na rua. Quem está lá fora e diz que os serviços de saúde não prestam, era importante irem a outros países e perceberem o contexto e o valor que nós produzimos. Não produzimos carros, bicicletas ou motas, mas produzimos cuidados de saúde que têm um valor que as pessoas não têm noção. Se as pessoas que vêm a estes serviços altamente diferenciados saíssem com a factura correspondente aos cuidados de saúde que receberam iriam perceber que usufruíram de um bem que, por vezes, é impagável, não só pela condição humana, mas pela condição material. Tenho muita satisfação em ser profissional e em viver num País que promove um sistema nacional de saúde que é gratuito ou tendencialmente gratuito.
Agora só se fala na pandemia, mas e os outros doentes?
Preocupam-me os doentes que não são portadores de SARS-CoV-2 e que têm de ficar em espera para verem as suas necessidades em saúde satisfeitas. Se quisermos fazer um paralelismo e pensarmos: só estamos a tratar Covid, então o que é que os profissionais de saúde [LER_MAIS]faziam antes da Covid? Fazíamos muitas coisas. Temos feito de forma diferente, tentando seleccionar as questões prioritárias, mas não deixa de ser uma situação em que o acesso de pessoas com outras patologias fica de alguma forma limitada. Não sei se os doentes oncológicos serão os que possam ter tido menor acesso, até porque tem sido uma prioridade das instituições dar resposta a esse tipo de doentes. Existirá outro tipo de doenças crónicas que, não sendo tão urgentes, podem ter de ser mais agilizadas quando os hospitais ficarem mais livres.
Está a referir-se a que tipo de patologias?
Diabetes, doenças cardíacas, autoimunes, do foro neurológico, as doenças respiratórias não Covid e essencialmente a realização de exames complementares de diagnóstico. Até a questão da saúde mental. Os medos, os receios, os isolamentos, a redução dos afectos são promotoras do desequilíbrio do doente mental e até para uma pessoa com saúde mental começa a ser cansativo. Não podemos sair, estar na esplanada, estar com os amigos, viajar… Todas essas coisas hãode reflectir-se e esperamos que o Serviço Nacional de Saúde tenha a capacidade de dar resposta àquilo que ficou um bocadinho para trás neste contexto difícil.
A pressão tem sido muita?
Nota-se uma diminuição, mas os doentes que vêm chegam com patologia infecciosa grave. Diminuiu aquela quantidade de doentes que não tinha sintomas, mas vinha porque contactou com A, B ou C. Nesse contexto a sociedade também não nos tem facilitado a vida. As pessoas recorrem aos serviços de urgência por problemas, que para eles são importantes, mas que não são para ser tratados em Serviço de Urgência.
Esse tem sido um dos problemas do serviço: as falsas urgências?
Não sei se posso falar de falsas urgências, porque o que leva alguém a um serviço de urgência é entender que é urgente. São doentes que precisam efectivamente de uma resposta, mas que não tem de ser dada pelo serviço de urgência. As pessoas hoje estão numa perspectiva do melhor conforto possível. Se conseguirem chegar a um serviço onde conseguem fazer todos os exames no mesmo sítio, num dia e terem uma resposta atempada, recorrem ao serviço de urgência. O que é um uso abusivo, porque os cuidados de saúde primários continuam disponíveis. Os serviços de urgência são uma porta aberta. Enquanto o País não fizer como outros países da Europa, onde os serviços de urgência barram o acesso e a pessoa é encaminhada para os cuidados primários… Quando se fala de serviço de urgência é para situações de urgência e emergência. Muitos países nórdicos e escandinavos têm feito essa selecção. A pessoa chega, não é atendida e é encaminhada para o seu médico de família. O Ministério da Saúde tem de entender que esta é uma medida importante. Mas, claro, não é fechar a porta e não abrir outras alternativas. As alternativas na comunidade têm de existir para se poder dizer à pessoa que quando chega ao serviço de urgência e não tem uma situação urgente deve-se dirigir ao seu médico ou enfermeiro de família. Isso seria uma mais-valia para todas as instituições de saúde e também para a população, porque complica a vida àqueles que são efectivamente urgentes e leva a grandes tempos de espera e insatisfação.
Um ano depois de Covid-19, como estão os enfermeiros ao nível de desgaste físico e psicológico?
Tenho a noção que se continuarmos neste ritmo de pressão as pessoas terão muitas dificuldades em aguentar, mesmo que lhes aumentem os ordenados três ou quatro vezes. As pessoas têm ideia que os profissionais de saúde, e os enfermeiros em particular, ganham rios de dinheiro. Se vissem os nossos extractos de remuneração mensal ficariam surpreendidas. Não somos em número suficiente comparativamente com outros países da OCDE. O rácio de enfermeiros por 100 mil habitantes é sumariamente menor. Mesmo reconhecendo que temos profissionais muito bons e bem formados, consigo aceitar que as pessoas se vão embora, porque há a lacuna naquilo que é o nosso reconhecimento remuneratório, de horários de trabalho, períodos nocturnos e de carreira. Não é meritório para aquilo que fazemos. Isso também nos destrói. Se um colega adoece ou falta não saímos do turno e em vez de 8 horas fazemos 16, com todas as implicações que possa ter. Fazemo-lo por um espírito voluntarista. Portugal corre sérios riscos de perder enfermeiros. Tenho quase 50 anos e existem ainda para a minha faixa etária propostas aliciantes e termos de contexto internacional. O meu percurso profissional em termos de progressão foi pelo meu esforço académico, nunca por contagem do tempo de serviço. Isso não é gratificante para os profissionais. Os enfermeiros não podem viver só com palmadinhas nas costas. É bom ouvir obrigada, teve um excelente ano de avaliação, mas só isso não chega.
Nesta pandemia fala-se de medicina de combate. Não é mais ou menos o que se vive numa urgência?
Apesar de muitas vezes as pessoas terem a ideia de que as urgências são um caos, diria que são um caos organizado. O recurso a determinadas metodologias de selecção de doentes em termos de critério de gravidade, como a Triagem de Manchester que é feita por enfermeiros, é uma ferramenta importante. Se estamos numa terminologia de guerra ou a chamada triagem start, que é a que se faz em catástrofe onde só escolhemos os válidos, não usámos essa metodologia. Estivemos perto de pensar que não conseguiríamos dar resposta a todos os que entraram, mas a instituição foi-se adaptando, aumentando o número de camas para doentes Covid, reforçando o número de horas, contratualizando o máximo de profissionais possível, pedindo aos enfermeiros mais horas, mais colaboração. Quando passarmos isto iremos olhar para trás como tendo sido uma questão difícil, mas que também nos vai trazer respostas e, se calhar, formas de pensar diferentes para aquilo que eram os nossos piores dias.
Qual a principal dificuldade com que os enfermeiros se deparam no serviço de urgência?
Os serviços de urgência não teriam grandes problemas na resposta se a rede de apoio social, e estou a falar de instituições geriátricas, e os cuidados de saúde primários dessem resposta ou conseguissem cativar os seus doentes, com outro horário e tempos de resposta. É um estudo pertinente que o Ministério da Saúde deveria fazer para se perceber por que é que as pessoas recorrem ao serviço de urgência e não aos cuidados de saúde primários. Em contexto de trabalho, para o enfermeiro é um serviço desafiante, porque o enfermeiro de urgência tem de dominar de alguma forma o doente crítico e não só. Recebemos doentes de politrauma, doentes respiratórios, neurológicos… A porta de entrada acaba por ser muito diversificada em termos daquilo que é a patologia que traz um individuo ao serviço de urgência. Portanto, requer por parte destes profissionais uma formação constante, persistente e certificada. Não quero dizer que o serviço de urgência é o mais importante de todo o hospital, mas somos uma porta aberta e, quando atingimos um determinado número de doentes, não podemos dizer: vamos fechar a porta porque o rácio de profissionais que tenho só dá para tratar x. A maior dificuldade é gerir os fluxos e os hábitos sociais. Outra situação que nos dificulta o serviço urgência é a faixa etária dos nossos doentes. Temos uma rede geriátrica muito vasta. O nosso distrito é enormíssimo e temos ainda Fátima, Ourém. Passámos de 250 mil habitantes para 400 mil habitantes.
À urgência pode-se aplicar a expressão “carne para canhão”?
Tendo a segregação de doentes por tipologia de gravidade não faz sentido essa analogia. Às vezes, custa-nos ter 20 doentes a quem poderíamos dar mais, mas temos de estar a resolver problemas de natureza social, a insatisfação de pessoas que deveriam ser atendidas prioritariamente, questões de alimentação – porque muitas pessoas recorrem ao serviço de urgência para se alimentarem -, ou para resolver questões de sem abrigo, que no Inverno, como o hospital está quente, querem ficar na nossa sala de espera. Se houvesse uma resposta social externa capaz a nível nacional os serviços de urgência garantidamente seriam melhores e trataríamos melhor os doentes. Os profissionais de saúde gostariam de poder fazer melhor. A rectaguarda em Portugal em termos sociais é um bocadinho difícil. É difícil colocar doentes na rede de cuidados paliativos. Existem questões muito particulares que todos os dias nos entram porta dentro e às quais temos de dedicar o nosso tempo. As instituições de saúde e os serviços de urgência dão resposta a contextos de maus-tratos, violação, abuso de estupefacientes e de álcool, já para não falar da pessoa que vem por emagrecimento e desidratação, que temos de alimentar, ou da pessoa que teve um desacato familiar. Entre doentes verdes e azuis, considerados não urgentes, os serviços de urgência atendem 50% da população. É uma das questões que o País terá de pensar para não se verem as ambulâncias paradas à entrada do hospital e as macas retidas.
Os enfermeiros foram a classe, a par dos professores, que mais greves fez antes da pandemia. Quais são realmente os problemas? É importante perceber a representatividade social da profissão. Depois é importante perceber o valor dos cuidados prestados pelos enfermeiros. Se existe valor, e eu acho que existe, os profissionais devem ser remunerados por esse valor que produzem. Há 20 anos que a enfermagem não evoluiu em termos remuneratórios. Não quer dizer que a greve seja o melhor método, mas também não têm sido deixadas outras alternativas negociais. Não é legítimo que eu, com 26 anos de profissão, com licenciatura, especialidade e mestrado, a gerir um serviço de 124 enfermeiros, hoje, em 2021, em proporção, receba menos do que recebia há 25 anos. A formação que fazemos é nas nossas horas de descanso e paga por nós. Estamos a acrescentar valor e experiência profissional às instituições e depois não somos reconhecidos financeiramente. Por exemplo, grande parte dos meus colegas que terminaram as suas especialidades continuam como enfermeiros de cuidados gerais. Se o Estado não reconhece valor aos cuidados prestados quer por enfermeiros de cuidados gerais quer por enfermeiros especialistas a única forma que temos é de nos manifestarmos. Se a greve em cuidados de saúde é uma questão justa? Posso entender que não será, mas menos justo é o Governo não arranjar outra alternativa negocial e que leve os profissionais à exaustão, até financeira. Sabemos que no dia da greve os enfermeiros que ficam têm de trabalhar a dobrar para que os doentes não morram e tenham os cuidados minimamente assegurados. É uma greve que acaba por ser má para o utente mas também é péssima para o profissional. Outra coisa que não consigo perceber é a disparidade financeira. Quando vamos para países evoluídos, as grelhas salariais aproximam-se, independentemente se estamos a falar de um assistente operacional, enfermeiro ou médico. Existe uma diferença, como é óbvio, mas não posso aceitar que uma assistente operacional receba 500 euros e alguns profissionais diferenciados recebam x vezes mais. Esta assimetria financeira não é promotora de um grau de satisfação dos profissionais de saúde, como os enfermeiros.
Paulo Lopes, 48 anos, é enfermeiro chefe do Serviço de Urgência Geral, desde 2016, e também da urgência da Área Dedicada a Doentes Respiratórios do Hospital de Santo André, unidade do Centro Hospitalar de Leiria, serviço aberto em Janeiro para dar resposta à Covid-19. Antes tinha chefiado o Serviço de Medicina do Hospital Distrital de Pombal.