Este fim-de-semana, a Auriol Dongmo, que é treinada por si, bateu o recorde nacional do lançamento do peso pela sexta vez e passou a liderar a lista de melhores mundiais do ano na disciplina. Vamos começar com um suponhamos. Se os Jogos Olímpicos não tivessem sido adiados estaríamos a festejar a primeira medalha olímpica para Leiria?
Tinha essa esperança e mantenho-a para 2021. O sonho da minha carreira de treinador é ter um dia um atleta a ganhar uma medalha olímpica. Não era um sonho quando comecei, porque nem fazia ideia que chegaria a este patamar, mas a partir do momento em que consegui ter atletas ao mais alto nível passou a ser uma grande ambição. Tendo em conta que é a primeira do ranking mundial, à partida a Auriol estaria bem posicionada, mas é importante perceber como vai reagir nas próximas provas do mais elevado nível. Há poucos dias confidenciou-me que bateu o recorde pessoal sempre que competiu em Campeonatos de África, Campeonatos do Mundo ou Jogos Olímpicos. Se mantiver o nível e com capacidade de superação nas provas importantes, é uma atleta a ter em conta na luta pelas medalhas.
Quão grande é o privilégio de treinar uma das melhores do Mundo desde 2016, quando ela foi morar para Leiria?
Tem sido uma lição de vida. O que mais me surpreende é a capacidade de superação num simples treino. Já percebi com funciona e faço muito trabalho por objectivos: ‘se atingires determinado valor o treino acaba aí’ ou ‘se lançares determinada marca vamos ao KFC’, que ela gosta muito. É fascinante conviver com tamanhas fé, convicção e dedicação. É um privilégio e veio na altura certa para mim, porque precisava de um desafio destes. Não sou uma pessoa muito religiosa. O meu pai é, até é catequista, e fui educado na fé cristã. Se fosse muito devoto acreditava que alguém tinha posto a Auriol no meu caminho. E, de certa forma, até acredito. Não pode ter sido uma coincidência.
Ter crescido nos Camarões moldou a personalidade da atleta?
Acredito que sim. Os atletas em Leiria têm quase tudo e mesmo assim queixam-se. Em algumas alturas percebi que a Auriol estava em dificuldades e senti-me incomodado. Dizia-me que eu podia achar que ela estava em dificuldade, mas que nunca na vida tinha estado num contexto tão favorável. O que para outros é uma dificuldade, para ela é quase uma bênção. Tenho uma história engraçada. Depois de bater o recorde nacional com 19,27 metros, em Junho, teve uma lesão no ombro direito, uma dor no isquiotibial da perna direita, outra no joelho direito e, para ajudar à festa, a lançar bateu com o tornozelo na antepara do círculo e lesionou-se. Depois disto tudo, ela disse-me: ‘coach, alguma coisa de muito boa deve estar para acontecer’. Foi então que percebi que era uma cabeça completamente diferente daquelas com que habitualmente convivo, que no meio da adversidade lamenta-se. Ela pensa ao contrário.
A Auriol naturalizou-se portuguesa no final do ano passado, uma prática que tem alguns detractores.
Percebi que, para ter uma vida melhor, estava muito condicionada se continuasse a representar os Camarões. Tinha direito a uma bolsa de solidariedade olímpica, mas chegava-lhe muito raramente e nunca na totalidade. Vi as dificuldades com que estava, ainda por cima a ter de criar um filho, e eu sabia que se naturalizasse muitos dos problemas seriam ultrapassados. A determinada altura disse-lhe que ser portuguesa podia ser uma solução, invocando interesse nacional, mas não queria ser eu a decidir por ela. Ponderou, falou com a família, com o padrinho e decidiu. Disse-lhe que ia haver muita gente que a ia incentivar, mas nas redes sociais iam criticar, dizer que qualquer um podia ser português. Alicerça-se muito na competitividade entre o Sporting e o Benfica e com esta clubite exacerbada. O Pedro Pichardo naturalizou-se para competir contra o Nelson Évora e os sportinguistas insurgiram-se. Agora, os benfiquistas reclamam também.
“Esperemos que a candidatura a Cidade Europeia do Desporto mude um pouco a mentalidade”
Há limites para as naturalizações?
A Eliana (Bandeira) e a Auriol naturalizaram-se e acredito que no caso delas não se ultrapassaram os limites. Vivem e treinam em Leiria, têm um treinador português, representam um clube português, querem ficar a viver no País. A Auriol foi mãe aqui. No meu critério, e admito que haja pessoas com opiniões diferentes, aceita-se. Já não aceito, por exemplo, como faz a Turquia, que tem atletas que nem sequer lá vão, ou o Qatar, que teve uma selecção de andebol que só tinha um qatari. Nesses casos é uma questão financeira, como se fosse um clube. Se formos ver os atletas que normalmente representam a selecção nacional de atletismo, se calhar temos 50%s com outra origem. O Tsanko Arnaudov nasceu na Bulgária, o próprio Nelson Évora não é propriamente filho de um português e de uma portuguesa, mas ninguém olha para ele como naturalizado. Compreendo que o Pichardo ou a Auriol sejam vistos de forma diferente, já se naturalizaram acima dos 20 anos, mas quando olho para a equipa nacional vejo-os todos portugueses.
As pessoas não fazem a mínima ideia do que é preciso para se ser um atleta deste nível.
Porque quando se vê atletismo na televisão estes atletas fazem tudo parecer fácil, mas é difícil. Precisam de ter uma eficácia técnica muito grande, o que demora anos a conseguir e a sorte de ter uma boa iniciação. Em termos condicionais têm de ser fortes, rápidos, flexíveis e explosivos e ter a resiliência para treinar muitos anos com capacidade para ultrapassar as adversidades. Ainda é preciso capacidade para se superarem nos momentos principais, porque podem ter tudo o resto, mas se não conseguirem gerir-se emocionalmente, nada feito. É difícil, porque basta que uma destas peças falhe e já não dá. Às vezes, basta não ter as medidas certas. Além disso, é imperativo ter condições de treino e uma equipa técnica que o oriente, porque hoje já ninguém lá vai só com um treinador. Tem de ter nutricionista, biomecânico, fisioterapeuta, médico e em alguns casos psicólogo. Reunir toda esta entourage não é fácil, sobretudo em meios mais pequenos, como Leiria. Para chegar ao alto rendimento não basta ser profissional, é preciso ter paixão e entregar-se de corpo e e alma sem estar preocupado com recompensas económicas.
É uma carreira onde as alegrias estão sempre intercaladas com tristezas.
Emocionalmente, é difícil gerir esse processo. Já passei por muita coisa e hoje percebo que mesmo que as coisas estejam a correrem bem não vale a pena achar que sou o melhor do mundo, porque entretanto vai alguma coisa correr mal. E mesmo que esteja a correr mal também não vale a pena deprimir, porque entretanto a coisa muda. Houve uma altura em que não tinha esta experiência e tinha dificuldade em gerir desta forma. Já chorei, senti que estava tudo contra mim e contra os meus, e não merecia aquela sorte. Acredito que não conseguimos ajudar os atletas se não tivermos uma carapaça. Temos de gerir estas felicidades e estes dramas sozinhos e em casa.
É difícil ouvir-se falar em cortes nas modalidades quando continua a contratar-se futebolistas por milhões?
É difícil, sim, sobretudo porque muitas das vezes esses cortes são cegos. São 30 ou 40% para todos e não há uma avaliação. Nalguns casos justifica-se até ir mais além, noutros se calhar já não. Até compreendo e aceito que nos tempos que se avizinham vamos ter dificuldades. À partida não vão ser só dos clubes, mas também o Estado, e que percamos algumas das coisas que estamos habituados a ter por garantidas. No Sporting e no Benfica, percebo que perante os dirigentes é muito maior a pressão do resultado do futebol do que do atleta fazer bons resultados. A maioria dos sócios não está muito preocupada em ter uma Patrícia Mamona ou um Nelson Évora. A crise vai ser um grande obstáculo à evolução do atletismo nos próximos anos, porque atletas que poderiam fazer atletismo profissional vão deixar de o poder fazer. A partir do momento que vão ter de conciliar o trabalho com o treino, o rendimento vai baixar e isso vai reflectir-se no Campeonato da Europa de Equipas e no Campeonato da Europa, porque continuo a acreditar que os que vão aos Jogos Olímpicos vão continuar a poder ser profissionais.
[LER_MAIS]Como em tudo, a classe média é quem mais sofre.
É isso.
Senhor lançamentos
No sábado, Auriol Dongmo bateu pela sexta vez o recorde nacional do lançamento do peso (19,53 metros) desde que, em finais do ano passado, adquiriu a nacionalidade portuguesa. Chegou a Leiria após os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, para se preparar com Paulo Reis. Um momento afortunado após a experiência no Brasil, que “deixou muitas marcas” no treinador. Nessa competição, viu a atleta Irina Rodrigues lesionar-se gravemente nas vésperas de competir. O processo foi doloroso e os dois acabaram por trilhar caminhos separados. Era a quarta participação olímpica do técnico nacional de lançamentos, após 2004 e 2008, com Vânia Silva, e 2012, também com Irina Rodrigues. Grande impulsionador do atletismo no concelho, foi o fundador da Juventude Vidigalense, em 1986, com dois amigos. Tinha 14 anos quando saiu do Vidigal, uma aldeia dos arredores da cidade onde residia, para participar numa prova de estrada em Leiria. Quando lhe perguntaram o clube que representavam saiu-se com essa. Jamais pensaria que o emblema se tornaria numa das grandes referências nacionais do atletismo, que à cidade levou eventos tão marcantes como a Taça da Europa de Lançamentos, que estará de volta em 2021, 2022 e 2023, ou a Taça dos Clubes Campeões Europeus de Juniores, em atletismo. O pai queria que seguisse Contabilidade, mas a paixão pelo Desporto fê-lo licenciar-se em Educação Física. Estudioso, meticuloso e organizado, em casa respira-se atletismo e as conversas tendem a versar sempre o mesmo assunto. Não admira, pois é casado com Cátia Ferreira, uma treinadora de saltos horizontais que, como ele, está a caminho dos Jogos Olímpicos de Tóquio enquanto treinadora de Evelise Veiga.
As coisas mudaram muito desde 2004, quando se estreou em Jogos Olímpicos com a Vânia Silva?
Muitíssimo. A grande capacidade de autocrítica é uma das maiores virtudes que tenho. Às vezes digo à Vânia que se tivesse treinado na Alemanha ou em Cuba a carreira dela poderia ter sido diferente. Fui sempre aprendendo e quando a Irina (Rodrigues) chegou já a preparei de uma forma melhor. Era mais competente e já tínhamos acesso a biomecânico, fisioterapeuta e mais contacto internacional. Na qualidade do meu trabalho, o ciclo onde consegui evoluir mais foi do Rio de Janeiro até agora.
Um treinador de atletas deste nível não pode parar de aprender.
A maioria dos treinadores foi atleta e tiveram emoções e sensações que eu nunca tive, que era um atleta fraquíssimo. Enquanto treinador não estava disponível para perder tempo com um atleta com o meu potencial. Há coisas que para mim são mais difíceis de entender. Não quer dizer que seja sempre uma desvantagem, porque há treinadores que fizeram de determinada maneira e por ter resultado uma vez pensam que tem de ser a vida toda assim, o que está errado. Aprendo muito, até em contexto que nunca esperava. Mesmo os treinadores que nunca tiveram grandes resultados não podemos deixar de os levar a sério. Tenho a felicidade de ter muitos contactos internacionais e tento sempre trocar opiniões com os melhores. Quando tenho de tomar uma decisão difícil sob o ponto de vista técnico recorro peço sempre opinião a alguém.
Como entende a candidatura de Leiria a Cidade Europeia do Desporto em 2022?
Por um lado fico contente. Inclusive, sou um dos padrinhos da candidatura. Mas espero que Leiria aproveite esta candidatura para olhar com mais atenção para o desporto de rendimento. Até podemos estar bem em actividade física e no desporto de lazer, houve um grande investimento e muito bem. No desporto de rendimento, em termos de instalações desportivas, no caso do atletismo, temos o que precisamos. Nas outras já não sei. Em tudo o resto, é preciso haver investimento. Se olharmos para a história olímpica do concelho percebemos que há cidades aqui perto, muito mais pequenas, como Rio Maior, que têm um histórico muito maior.
O que falta?
Passarmos de actividade física para o desporto passamos, porque temos muitas modalidades e gente a trabalhar. Do desporto de formação para a competição já começamos a ter dificuldades, pois não temos uma única equipa de modalidades colectivas que esteja na 1.ª Divisão. Nas modalidades individuais temos a sorte de os atletas de alto nível terem mudado de clube mas permanecido a treinar nas instalações de Leiria, com técnicos de Leiria e continuam a ser referências próximas. Se, como nas modalidades colectivas, os clubes dissessem que tinham de ir para Lisboa e treinar com a malta de lá, perderíamos muitas das referências. Era importante que quem está na liderança percebesse que o desporto de rendimento é uma realidade diferente e e a urgência de criar incentivos e dinâmicas para Leiria afirmar-se ao mais alto nível. Como leiriense gostaria muito, porque tenho orgulho em tudo o que se vai fazendo na cidade. Se estou com um estrangeiro e dá um jogo de futebol na televisão digo logo que o guarda-redes é da minha cidade. Esperemos que a candidatura a Cidade Europeia do Desporto mude um pouco a mentalidade.
Também é importante que quem treina o faça a pensar no rendimento.
Há quem entre na formação desportiva com motivações económicas. O que interessa é a quantidade, mais praticantes e mais mensalidades. Quando queremos treinar a alto nível, até nos escalões de formação temos de ter uma abordagem diferente. Quando a Irina chegou, aos 12 anos, a última coisa que me preocupava era se a família tinha dinheiro para a mensalidade. Se fosse preciso ia buscá-la. É uma abordagem diferente, porque tinha uma motivação para o alto rendimento. Nunca vi um atleta que chegasse e tivesse tanto potencial como ela. Felizmente, não me enganei. Mas hoje temos uma grupo de apoio ao talento em quem confio e não me chegam atletas novos. Já tenho lenha para me queimar, ando a fazer um grande esforço para não ter mais atletas, a não ser um caso excepcional, a quem não fecharia as portas.
Não sei se será inédito, mas o mais certo é que nos próximos Jogos Olímpicos também a sua esposa, Cátia Ferreira, esteja presente, enquanto treinadora da Evelise Veiga. Em casa fala-se de atletismo?
Fala-se demais. Até às refeições, invariavelmente, a conversa vai ter ao atletismo. De tal forma que a nossa filha às vezes diz: ‘por favor, parem de falar de atletismo’. Já saturou, não vai ser atleta nem treinadora. Não é por mal, mas como vivemos com paixão, por mais que não queiramos, a conversa vai lá bater.
Além da medalha olímpica a que aspira, até quando se vê a treinar lançadores?
Na minha carreira já tive oportunidades para seguir para outros lados, inclusive para outras modalidades. Até já houve alturas em que pedi para nem me dizerem quanto é que me pagariam para poder continuar com a minha serenidade. Quero fazer o meu trabalho até ao fim. Sei que não vou ficar a vida toda como técnico de lançamentos e estou a preparar outras gerações de treinadores. Paris, em 2024, poderá ser uma referência porque, se tudo correr bem, espero ter lá pelo menos três atletas, a Auriol, a Eliana e o Ruben (Antunes), mas não fecho as portas a alguém que me procure, porque gosto de treinar os melhores. Depois, vou repensar a minha vida. Gostava de sair desta zona de conforto e aceitar desafios diferentes.