Como surgiu o convite para ser técnico de atletismo do Sporting?
O meu trabalho começou a ser conhecido quando comecei a treinar atletas de nível internacional e a ter cargos organizativos. Além disso treino atletas do Sporting e os responsáveis do clube já conheciam o meu trabalho, por isso quando decidiram mudar a estratégia da secção de atletismo fizeram a abordagem e, claro, ponderei e decidi aceitar.
Quais são as funções no novo cargo?
Coordeno o atletismo do Sporting desde as escolas de formação até ao alto rendimento e, portanto, as minhas funções são muito alargadas. No alto rendimento acompanho preparação e a prestação competitiva dos atletas e dos treinadores. Nos campeonatos de clubes vou constituir as equipas, tento também perceber que atletas e treinadores podem eventualmente reforçar o clube ou que deixam de cumprir os propósitos e pretendo fazer com que a Academia do Sporting seja mais organizada, produza melhores atletas e forme melhores treinadores. A equipa que chefio tem várias pessoas diariamente em Lisboa e estamos sempre em contacto e a tomar decisões porque, para já, o meu trabalho vai manter-se sobretudo em Leiria.
Vai continuar a treinar os seus atletas?
Sim. Independentemente de tudo, a minha principal ambição no atletismo continua a ser ter atletas a ganharem medalhas a nível internacional e o meu foco está nos Jogos Olímpicos de Paris, em 2024. Estando mais ocupado, com mais responsabilidades e com mais volume de trabalho é normal que tendencialmente isto tenha alguma influência negativa no processo de treino mas eu estou a fazer tudo por tudo para que tal não aconteça. Neste momento tenho sete ou oito atletas com quem assumi um compromisso e não vou abandoná-los a meio do processo.
O clube vai continuar a reforçar-se aqui?
Sim, já havia essa procura e agora fica mais fácil porque ao nível da formação eu conheço os atletas e os treinadores de Leiria e sei que têm feito um trabalho meritório. Vou estar sempre a observar esses jovens e é provável que no futuro haja mais atletas de Leiria e ingressar no Sporting.
Como fica a ligação com o clube que fundou, a Juventude Vidigalense?
Eu já não fazia parte dos corpos sociais, apenas colaborava com a equipa técnica mas neste novo contexto são coisas incompatíveis. Fui fundador e coordenador técnico do clube até sentir que, por mais que tentasse rumar contra a maré, não havia envolvimento local e não nos eram proporcionadas condições para chegarmos um bocadinho mais longe. Isso criou em mim um certo desânimo e uma mágoa que fez com que eu decidisse passar a pasta. Estive uma época completamente afastado e depois passei a ajudar sobretudo ao nível da tomada de decisão. Agora volto a sair. É difícil, mas desta segunda vez é menos complicado. Olho e olharei sempre com muito carinho para a JV e esse elo nunca se vai quebrar, mas agora tenho de olhar para outras cores e para outra camisola.
O que faltou para o clube crescer?
Foi um pouco de tudo. Em Leiria toda a gente percebe um pouco de actividade física e de desporto de médio rendimento, mas no que respeita ao alto rendimento não temos cultura, tradição nem estratégia. Na minha carreira de treinador de alto rendimento não me recordo de alguma pessoa com poder político ou de decisão em Leiria chegar ao pé de mim para me perguntar o que poderiam fazer para ajudar. [LER_MAIS]Aliás, sempre que pedi alguma coisa parecia um pedinte a estender a mão para uma esmola. Refiro-me ao poder político mas não só, também a todas as entidades e pessoas que efectivamente podiam dar um contributo. Nós queremos ter equipas na primeira divisão e os melhores do mundo mas temos dificuldade em dar esse passo. O desporto de alto rendimento não tem nada a ver com a corridinha à beira-rio. As pessoas às vezes confundem os conceitos e não fazem a mínima ideia do que é estarmos em Leiria a saber que em todo o mundo há gente a treinar e que não pode haver alguém que faça melhor que nós. Quem procura o rendimento desportivo, no atletismo e nas outras modalidades, merecia outro olhar, incentivo e proximidade.
Ter o Centro Nacional de Lançamentos em Leiria é suficiente?
É como perguntarem a alguém se quer ser guarda-redes e darem-lhe apenas uma baliza e uma bola. É suficiente para ser guarda-redes? Talvez. E para ser o melhor guarda-redes do mundo? Só quem não percebe nada do que é o desporto de alto rendimento é que imagina que isso é suficiente. Estamos a competir com os melhores do mundo e com as melhores condições do mundo. Obviamente que é uma obra fundamental para o atletismo, mas está preparada para um médio rendimento e isto não pode ser entendido como falta de gratidão ou de reconhecimento pela obra. Há uns anos levei o Gonçalo Lopes (na altura vereador do desporto e agora presidente do município) a Leon, em Espanha, para ver e perceber o que é realmente um centro de alto rendimento para os lançamentos. Se nunca sairmos daqui vamos sempre achar que temos as melhores condições do mundo.
O que falta?
Mais espaço para montar uma estrutura de apoio porque uma equipa de alto rendimento tem de ter médico, fisioterapeuta, nutricionista, biomecânica e outras valências concentradas no mesmo local. O ginásio do CNL tem uma dimensão pequeníssima, não temos sequer altura para poder bater uma bola contra a parede e colocá-la num ângulo ideal para lançar. E não há um centro de alto rendimento que não tenha um espaço coberto para lançar, e nós não temos. Mas sei que é muito difícil que o CNL possa ser ampliado, por isso provavelmente vamos ter de nos resignar. Mas nunca, nem por mim nem por um atleta, as condições foram apontadas como desculpa quando as coisas correm mal. Tal como também não temos problemas em reconhecer as instalações que temos quando as coisas correm bem.
Como é treinar a este nível?
Estamos a falar de desporto profissional de alto nível que tem várias valências que têm de estar o mais apuradas possível para que o atleta renda. Eu sou o treinador e o rosto mais visível do trabalho da Auriol, mas atrás está uma equipa enorme desde médicos a empresário (…) Isto é um trabalho de sete dias. Além disso temos as dinâmicas de provas em que os atletas têm de conseguir deslocar-se para os principais palcos e as melhores provas, e o contexto de treino também conta porque os melhores desenvolvem-se a treinar com os melhores e isso exige que nos desloquemos para estágios e competições internacionais. E, parecendo que é o mais fácil, mas é o mais difícil, todas essas pessoas e valências têm de estar em sintonia.
E esse trabalho tem apoios?
A partir de um determinado nível passa a ter apoios, sobretudo do Comité Olímpico. Mas quando falamos em apoios não têm nada a ver com os apoios de outras modalidades onde se fala de milhões e aqui é quase tostões.
Leiria é uma boa ‘máquina’ de fazer atletas?
Eu diria que sim. Temos aqui a treinar atletas olímpicos como a Vânia Silva, a Irina Rodrigues, a Auriol Dongmo, o Tsanko Arnaudov e a Evelise Veiga. Depois temos atletas nas esperanças olímpicas e vários de alto rendimento sobretudo nas provas mais técnicas como lançamentos, saltos e um pouco na velocidade. Em média, temos mais praticantes, melhores condições de treino e melhores treinadores que nas outras cidades do País. Quando se juntam dois ou três clubes que incentivam a modalidade, jovens com talento, treinadores competentes e dirigentes empenhados há uma ‘máquina’ que vai sempre produzir alguma coisa. E ter referências também é importante porque quando os miúdos vão treinar ao CNL ou ao estádio olham para o lado e vêm atletas que ganham medalhas internacionais e também acreditam que podem lá chegar. Ao nível dos lançamentos, se Portugal tivesse em cada capital de distrito a dinâmica que tem Leiria nós éramos uma potência mundial.
O que espera para o futuro?
Quando cheguei ao atletismo tinha como grande referência o Moniz Pereira, um grande treinador e coordenador técnico do atletismo do Sporting que acabou por ser denominado dentro da modalidade como o ‘senhor atletismo’. O que eu espero é conseguir dar um pouco de sequência áquilo que foi o trabalho e o legado que ele deixou na modalidade. Obviamente não ambiciono, porque sei que não é possível, chegar ao nível de resultados e de envolvimento que ele teve, mas também gostaria de deixar a minha marca e transformar o Sporting num clube cada vez melhor no atletismo, mais competente e organizado, onde os atletas se sintam melhor e consigam obter melhores resultados, conquistar medalhas e títulos. Sabendo que, tal como aconteceu quando fui para a Federação Portuguesa de Atletismo (FPA), isto é um ciclo da minha vida profissional e um dia também vai chegar a hora de sair e abraçar outro projecto porque eu não gosto de criar raízes e tenho muita dificuldade em trabalhar diariamente para fazer pior do que já fiz. Ainda tenho coisas na minha carreira que quero fazer, como ter uma experiência no estrangeiro. Em termos federativos também sinto que um dia vou regressar à FPA, uma casa que me acolheu muito bem durante 14 anos de trabalho. Os lançamentos eram o parente pobre do atletismo nacional, ficávamos quase sempre em último, éramos os mais fraquinhos, e a realidade é que agora são dos sectores mais fortes do atletismo português.
Perfil
Impulsionador do atletismo em Leiria
Paulo Reis tem 49 anos e é natural do Vidigal, Leiria. Fundou a Juventude Vidigalense com dois amigos em 1986 e começou por ser treinador de várias disciplinas do atletismo. Os atletas com potencial que cruzaram o seu caminho, como a Vânia Silva, e a construção do novo estádio Dr. Magalhães Pessoa, que atirou temporariamente a maioria das disciplinas para fora do concelho, fizeram com que se focasse apenas nos lançamentos.
Hoje é o treinador da melhor lançadora de peso do mundo e no currículo conta com 14 anos enquanto técnico nacional de lançamentos. Já foi responsável por algumas das mais importantes provas internacionais. No início de Abril passou a ser o coordenador técnico de atletismo do Sporting.