Figuras como o segredo de justiça ou a presunção de inocência ainda têm lugar neste tempo actual de mediatismo?
Faço parte do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, pelo que as minhas respostas traduzem exclusivamente a minha opinião. Dito isto, a presunção de inocência é uma imposição legal porque ela não faz sentido para nós, enquanto seres humanos. É contra-intuitiva. Tendemos a desconfiar e é, por isso, que ela tem de estar na lei. Geralmente, as leis servem para nos guiar racionalmente, relativamente a muitas soluções que, para nós, são contra-intuitivas. Não é intuitivo dar a outra face ou não retaliar. Se alguém nos fizer algo, não vamos querer agir só em legítima defesa, no imediato. Instintivamente vamos querer vingar-nos à la longue. Para que o mundo funcione, precisamos de regras, para que as coisas se resolvam nos tribunais e sem acção directa. Não vamos, em retorção, bater numa pessoa que nos fez mal há 15 dias. Temos duas expressões muito populares que dizem “onde há fumo, há fogo” e “a culpa morreu solteira”. O que pressupõe a ideia, datada, de que ser solteira é mau e ser casada é bom e que a culpa é feminina. Era uma coisa má, uma mulher morrer solteira, no tempo em que este jargão foi vingando. “A culpa não pode morrer solteira.” Mas por quê? Às vezes, acontecem coisas más e a culpa não é de ninguém. Se cair aqui um meteorito, tenho de condenar o arquitecto e o engenheiro, porque, de repente, descobrimos que faltam regras que prevejam a protecção contra meteoritos? Se calhar não! Por muito que nos custe, acontecem coisas más e a culpa não é de ninguém. Reactivamente, precisamos de alguém que espie a culpa das coisas más que acontecem e, à míngua de um deus, precisamos de outras expiações que podem ser outras pessoas. Quando alguém é absolvida, ninguém quer saber o que se passou no tribunal. Vão dizer: “claro, pode ter uns advogados a quem pagou milhões, se calhar subornou um juiz!”. Vão presumir sempre o pior. Mas se for alguém da sua família ou os próprios, já dizem, “aquilo foi tão injusto”. Há uma certa ideia de que todos os outros 99% que foram a tribunal foram muito bem condenados e os que foram absolvidos deviam ter sido condenados. Os advogados estão sempre a falar da presunção de inocência porque é daquelas coisas que temos de repetir todos os dias. A presunção de inocência nunca vai estar na moda.
E o segredo de justiça?
O segredo de justiça é necessário porque, se andarmos a dizer quem é que está a ser escutado, estamos a matar as diligências… Do ponto de vista da investigação, ele é absolutamente necessário, não nego. Só que a partir do momento em que há detenções, vai-se esvaindo. Pela natureza humana, alguém põe as coisas cá fora. Nesse momento, se calhar, as autoridades judiciárias deveriam começar a assumir que não haveria segredo de justiça, porque já sabe que as coisas vão sair a conta-gotas. Se já não afectar a investigação, mais vale ser transparente ou pensar-se numa alteração ao código, onde há partes públicas e partes que não o são. Isto porque se cria um desequilíbrio contra os arguidos, primeiro, porque o Ministério Público e a Polícia Judiciária podem fazer os comunicados que quiserem. Decidem, fazem o comunicado, dizem que buscas estão a fazer, com quem estão a falar… Segundo, não controlamos a informação que sai ou como ela vai parar à comunicação social. Terceiro, os advogados têm a limitação do segredo de justiça, mas têm ainda a limitação de não poderem prestar declarações que se traduzam nalgum tipo de tentativa de influência sobre o processo. Mas, já existe influência pública do outro lado. Se um advogado prestar declarações que violem essa regra, deve ser disciplinarmente responsabilizado. Faz sentido mantermos esta regra? Não sei se faz. Porque ela tem vários problemas. Pressupõe que os juízes não têm autonomia da vontade e que se deixam influenciar pelas vozes públicas. Faz sentido esse paternalismo? Pressupõe-se que as pessoas, coitadinhas, não sabem pensar, incluindo os tribunais, pelo visto. Mais vale ser franco e assumir as coisas. Saber-se-ia que era a posição do advogado, que é, obviamente, parcial, porque está a defender o seu cliente e depois as pessoas filtravam. Os tribunais servem o povo e todos os órgãos de soberania têm de ter escrutínio popular e de ser transparentes. E a “transparência” é cada um assumir a sua posição e não andarmos nesta dança daquilo que se pode dizer e do que não se pode dizer. O segredo de justiça é muito útil para não frustrar as investigações, mas, a partir daí, não tenho problema algum com um debate aberto, onde cada um assuma ao que vem e as pessoas que façam o seu juízo.
O presidente da SEDES, Álvaro Beleza, diz que um dos problemas que impede o desenvolvimento do País é o facto de a justiça ainda funcionar no século XIX. Em traços largos, se fosse ministro da Justiça e tivesse poder para isso, o que alteraria na Justiça?
Não mexeria muito nas leis, mas há aspectos onde gostaria de o fazer. Um é procedimental e o outro é logístico. O logístico tem que ver com os tribunais administrativos e fiscais que encravam o País. Temos muitas relações com a administração, para licenciamentos, matérias ambientais e urbanísticas e toda a ordem de coisas, que o Estado tem de regular e tem de aprovar. Quando há litígios, o País não avança, nem do lado da administração, nem do lado do particular, enquanto o tribunal não decidir – e isso pode demorar anos. Quando há litígios fiscais com a administração, também pode demorar anos e matar a liquidez de uma empresa. O que interessa a uma empresa, ao fim de dez anos, saber que, afinal, tem direito àqueles dois milhões de reembolso? Se calhar já faliu! Para o investimento estrangeiro, saber que há este entrave, é muito desincentivador. Ninguém quer lidar com um Estado que não dá garantias de que as decisões são rápidas e os investimentos resultam. Eu tentaria criar condições para que os tribunais administrativos e fiscais tivessem mais meios e decidissem mais depressa. E isso não tem tanto que ver com leis, mas com meios tecnológicos e, sobretudo, humanos, que permitam fazer uma certa limpeza de processos. Os tribunais administrativos e fiscais são um verdadeiro cancro na Justiça. São um entrave à economia e, obviamente, à paz de espírito das pessoas. Relativamente à matéria penal, há muitas pequenas coisas que se poderiam mudar. No Código do Processo Penal, mexeria na instrução. Não vejo grande utilidade nessa fase, tal como a temos hoje. Por outro lado, faz sentido robustecer a fase de saneamento do processo antes do julgamento, onde se apreciam as nulidades e outras questões. Além disso, a instrução também cria um problema na gestão dos juízes, que levou a alterações sucessivas, contraditórias, nos últimos dois anos, relativamente às competências. O saneamento das nulidades do processo pode ser feito pelo juiz de julgamento numa fase prévia ao agendamento das audiências.
E as questões logísticas?
Fiz parte de uma comissão de reforma do sistema prisional que era presidida pelo professor Freitas do Amaral. Penso que se chamava Comissão de Estudo e Reforma do Sistema Prisional. As coisas não evoluíram espectacularmente nessa matéria. Houve evoluções, mas fico um bocadinho preocupado, porque também é o tipo de matérias que não tem adesão popular. Quem quer saber dos presos? As pessoas esquecem-se que querem que o primo ou o irmão se reabilitem se forem para a cadeia. Querem que reorganizem a vida e que voltem para a comunidade. Ora se, na cadeia, houver apenas castigo e agressividade, não estaremos a dar as melhores condições para que as pessoas se reabilitem. Estaremos a criar condições para a revolta, para que as pessoas se desculpem a si próprias relativamente à continuação da actividade criminosa. O meio prisional deveria ser, por excelência, de reinserção. Se não houver condições logísticas, físicas adequadas e se as pessoas não tiverem ritmos de vida lá dentro que sejam pedagogicamente estimulantes, não estamos a facilitar a reinserção social. Não estou a falar em condições de luxo – aquilo não é um hotel –, mas de coisas como promover a higiene, o gosto por si próprio e manter-se de cabeça erguida, porque também somos feitos disso. Parece que isto obriga a pensar demasiado e não é compatível com o Instagram.
Há correntes de pensamento que acham que o melhor é condenar e que a pena seja crua e dura, para que “aprendam a lição”.
As pessoas não aprendem lição alguma com penas cruas e duras. Estar na cadeia, em qualquer circunstância, jamais será agradável. Quem quer ser rebelde, será sempre rebelde. Quem quer cometer crimes, cometê-los-á! As prisões não servem para resolver o mal intrínseco. Há pessoas que não têm remédio e essas temos de assumir, mas não são a maioria. As prisões servem para resolver o resto. Cabe-nos a nós, em sociedade, garantir que essa maioria se reintegre. Só que, como sociedade, isto está distante. O público pensa nisto e pergunta: “por que vou estar a investir nas cadeias, quando não tenho médico de família?” O tema das cadeias, apesar de tudo, é egoísta, se pensarmos a longo prazo. Gostamos de sair à noite e de não estar a olhar para o lado. Não nos importamos de pagar para que, alguém que roubou ou esfaqueou há dez anos, não faça o mesmo connosco. Eu prefiro pagar para que essa pessoa seja reintegrada, tenha uma família, eduque os filhos, mas a maioria das outras pessoas não pensa assim. Só pensa na vingança imediata. Temos de construir uma sociedade onde melhoramos a nossa vida, melhorando a vida dos outros. Só que isto não é fácil de interiorizar.
A morosidade da Justiça, nalguns casos mediáticos, pode ser uma benesse?
Depende da perspectiva. A partir de 2013, houve alterações relevantes no Código Penal. Em casos envolvendo o Banco de Portugal ou a CMVM, foram feitos ajustes, para a evitar. Há vários motivos para a prescrição. Uma delas pode ser o uso de expedientes por parte de advogados. Verdade. Mas há outras razões. Já tive alguns processos onde o regulador, ou mesmo o Ministério Público, estiveram cinco, seis e sete anos a investigar. Tinham as suas razões: era a cooperação internacional, era a matéria complexa, era a ausência de meios… Fazem a acusação ou a autoridade administrativa aplica a sanção administrativa e nós impugnamos. A seguir gritam “aqui d’el-rei que está a prescrever!” e o processo tem de ser rápido. Os advogados não podem isto e aquilo, mas eles estiveram anos e anos com o processo e eu, na minha defesa, tenho de despachar tudo num ano. Não faz sentido! Isto, nem sempre, é uma benesse. Alguns casos que estamos a assistir, sobretudo nos que correm em Santarém, que tem os processos da Autoridade da Concorrência e de outros reguladores, vêm com anos de lastro das autoridades administrativas e, de repente, porque a prescrição não pode rebentar na mão do juiz, é tudo feito a correr, com uma série de limites. E as pessoas apanham coimas que podem ir até cinco milhões ou podem ficar suspensas durante anos da sua actividade! A pessoa fica, de facto, bloqueada. Claro que, para alguns, pode dar jeito a prescrição, mas actualmente são situações marginais. Há cada vez menos processos a prescrever. A investigação é que tem de ser mais rápida.
Fazendo uma incursão ao seu tempo como inspector-geral da Agricultura, do Mar, Ambiente e Ordenamento do Território, nunca se falou tanto como agora, na urgência de ordenar o território, fazer uma gestão racional dos recursos. Porém, não estamos a gerir racionalmente o País. É difícil pôr a máquina a funcionar?
É. Há um problema de cadastro centralizado, ou seja, de uma percepção organizada do que se passa no território. Creio que só 3% do território é do Estado. A maioria é dos particulares e isso coloca problemas enormes de incêndios, de limpezas das matas, etc., que cabem aos particulares. Isto implica inspecções das câmaras municipais, que nem sempre são feitas de forma eficaz… e os particulares têm encargos significativos para fazer limpezas em terrenos rurais que não produzem grande rendimento. Por isso é preciso pensarmos no território de uma forma mais estruturada. Embora a minha experiência tenha sido um bocadinho fugaz, nunca percebi como organizamos, por exemplo, o armazenamento de água. Há imensa água que se perde e há uma excessiva limitação à fiscalização da sua qualidade. Preocupa-me a contaminação dos aquíferos. É fácil fazer o controlo das grandes indústrias, que, curiosamente, são as que têm mais regras de compliance ambiental e que, proporcionalmente, são as que poluem menos. Apesar do esforço do SEPNA e de outras autoridades, há um universo de pequenas indústrias e oficinas, que têm um efeito devastador nos aquíferos. Temos um risco ambiental, em Portugal, e vamos ter um problema de qualidade da água cada vez mais grave. O País não está organizado para fazer as retenções necessárias de água. Temos de nos habituar a ter períodos cada vez mais longos onde a chuva não vem e outros onde vem com grande violência.
Que medidas considera necessárias para ajudar a região de Leiria a desenvolver-se?
Já não vou a Leiria com muita regularidade. Sei que há um projecto que passa pelo TGV parar em Leiria. É um factor de desenvolvimento relevante, dada a proximidade que cria relativamente a Lisboa e até ao Porto. Comparo Leiria com outros distritos e acho que Leiria sempre foi muito auto-suficiente. Há uma capacidade de empreender entre as pessoas de Leiria que fez com que o distrito crescesse para lá do que seria razoável esperar, se compararmos com os distritos vizinhos, para os quais havia expectativas maiores. Não sei se Leiria precisa do Estado. Claro que ajuda e esta questão do comboio ajudará, sem dúvida.
Como foi que um jovem criado na Praça Rodrigues Lobo, com o Lis à vista, chegou a uma das mais importantes firmas portuguesas de advogados?
É preciso sorte. Se não se tiver sorte, se não for o momento certo, na geração certa, as coisas não acontecem. Além disso, ainda vivemos num País onde a igualdade de oportunidades é possível e, por isso, as pessoas com trabalho, com dedicação e com o factor sorte, acabam por conseguir. As empresas, as entidades e os clientes querem o melhor trabalho, não querem “o amigo”, que serve para algumas coisas, mas não serve para tudo, quando queremos algo bem feito. Com dedicação, com estudo, com capacidade de sacrifício é possível. A escola salvou-me. A escola pública, em primeira linha, mas o seminário sobretudo, porque me deu um grande enquadramento pessoal. Depois entrei para a universidade pública e, nas universidades portuguesas, qualquer pessoa chega onde quiser. Não senti filtro algum em função da origem da pessoa. É um aspecto notável do nosso País.
Pedro Duro é sócio na sociedade de advogados de Lisboa CS’Associados, nas áreas de Contencioso e Arbitragem, Penal Contraordenações e Compliance.
Conta com mais de duas décadas de experiência, tendo focado a sua actividade nos regimes sancionatórios de variados sectores, tanto numa perspectiva preventiva (regulação e compliance) como em contexto processual, na relação com as entidades administrativas, tribunais ou outras entidades, públicas ou privadas, nacionais ou internacionais, com funções de investigação ou com poderes sancionatórios.
Tem estado envolvido num número crescente de investigações internas.
No percurso pro?ssional, além da advocacia e de uma passagem pela docência de Direito Penal, na Faculdade de Direito de Lisboa, incluem-se, ainda, as funções de jurista na Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, de director- -adjunto do Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça e de Inspector-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território.
Foi membro da direcção do Fórum Penal e actualmente integra o Conselho Superior (supremo órgão jurisdicional) da Ordem dos Advogados.
Viveu a in?ância e juventude em Leiria.