Em que circunstâncias é que um autor se torna um autor de culto para si?
No caso da música e do cinema, não tanto na literatura, tem muito a ver com a fase da vida. Na minha ligação com o cinema, por exemplo, há filmes maus de que gosto, que foram importantes para mim. Às vezes são encontros mais ou menos fulgurantes do ponto de vista estético e artístico, outras vezes tem a ver com como chegámos lá, quem nos sugeriu, qual era o nosso estado de espírito.
Chega a ter aquela relação com a obra em que vai além do gosto e passa para o interesse pelo autor?
Tenho muito interesse pelo autor, mas não para o meu juízo da obra. Não é a vida do autor, nem as opiniões, que me vão fazer gostar mais ou menos.
Não chega a idolatrar?
Chego, quando acho que as pessoas são, além do mais, fascinantes. Mas não me acontece descobrir uma coisa biográfica sobre o autor e dizer espera aí, já não gosto tanto dele. Significava que não podíamos gostar de nada até lermos as biografias. Primeiro vou ler tudo sobre o Tolstoi e depois é que digo se gosto do Guerra e Paz, tenho que ver se ele tratava bem a mulher. Isso acho um bocadinho policial. Agora, leio biografias e gosto de perceber a relação da arte com a vida.
Hoje, naquela que podemos chamar a geração YouTube, há mais interesse em ser ídolo do que em idolatrar alguém?
Ainda há muita idolatria no bom e no mau sentido. Eu pratiquei vários actos de idolatria, na sequência da morte do Cohen. E acho que outros o fizeram.
Que tipo de relação tem hoje com a internet?
Uma relação intensíssima, excepto com as redes sociais. Todas as outras coisas que são populares na internet estou o mais possível ligado. Mas o Facebook… ainda lá estive algum tempo, e depois fiquei embaraçado. Há um efeito de contaminação: vamos ser todos básicos e ofensivos.
O caminho que a web está a seguir, de que as redes sociais são um exemplo, é sinal de que a cultura mais tradicional se está a desagregar?
Já estava antes, por exemplo, numa certa ideia de que todas as opiniões se equivalem. Até há poucos anos havia a ideia do crítico, a pessoa a quem reconhecemos um conhecimento especializado, uma autoridade, e portanto lemos essa pessoa, concordando ou discordando. Hoje em dia não há ninguém em Portugal.
É um culto do amadorismo?
Não é tanto amadorismo. A internet é toda à volta da ideia de democratização. E uma das ideias de democratização é que todos são iguais. E isso é relativamente novo. Em Portugal, até há não muitos anos, o que escrevia o Eduardo Prado Coelho era muito importante, mesmo para quem não concordava e não gostava. E isso desapareceu.
Como referência, não é importante?
Foi muito importante no passado e hoje em dia ainda existe, de alguma forma. Mas é mais difícil às novas gerações, imagino eu, aceitarem essa figura. Por outro lado, isso quebrou aquela ideia de uma espécie de sumo pontífice, de pessoas que dizem este livro é mau e o livro morre ali ou este filme é mau e o filme sai de cartaz. Ainda existe em certos países, mas cá ninguém fecha um espectáculo. E ainda bem, porque havia terríveis abusos de poder, pelo facto de as pessoas que estavam no espaço público serem poucas e ser-lhes concedida uma aura às vezes excessiva. Hoje em dia se me falarem de um livro muito bom eu posso estar a lê-lo 15 segundos depois.
É também um mundo em que o papel do intelectual foi descontinuado, para usar um termo das empresas.
Não tenho muita simpatia pelo termo intelectual. Primeiro, porque é um termo usado com uma elasticidade gigantesca. Chama-se muitas vezes intelectual a pessoas, incluindo a mim, em que é ridículo usar essa palavra. E, depois, a história dos intelectuais do século XX é vergonhosa. Não vale a pena achar que foram lúcidos, porque, em grande parte, foram cúmplices de tiranias e despotismo.
A democratização que as redes sociais e a internet permitem não nos torna reféns de algum populismo?
Sim, claro. Sobretudo preocupa-me uma espécie de efeito bola de neve: de repente alguém cai em desgraça e torna-se o saco de pancada. Pode ser a pessoa, uma obra, uma ideia. Há fenómenos virais de ódio e perseguição.
Prevalece o gosto da maioria?
O gosto que prevalece é sempre o gosto da maioria, num certo sentido. Por outro lado, o gosto da minoria tem formas de transmissão intergeracional mais fortes. O cânone, a escola, a crítica, o ensaio e o pensamento não são feitos pelas maiorias. É possível que artistas que nunca corresponderam ao gosto maioritário continuem a transitar e a existir, porque continua a haver minorias activas que fazem com que eles existam. Há um aspecto potencialmente muito positivo na internet que são as comunidades de gosto, com pessoas de países e nacionalidades diferentes. E depois há o reverso da medalha: pessoas que conduzem a sua vida online só rodeadas de quem tem a mesma opinião que elas. Fez-me muita impressão ler entrevistas sobre o Brexit a vários escritores ingleses e havia duas constantes quase sem excepção: eu sou por ficar e não conheço ninguém que tenha uma opinião política diferente da minha. Isso é horrivelmente empobrecedor e em última análise perigoso do ponto de vista democrático.
A internet veio uniformizar ou ajudar a diversidade?
Há fenómenos e cantos diferentes da internet. Desde a teologia à pornografia, não há nenhuma área da vida humana que não esteja na internet. Nesse sentido, a internet alarga a oferta, o balanço é gigantescamente positivo.
Um computador a escrever um texto ou uma máquina a fazer uma pintura – é arte?
Aquilo que me parece é que isso feito por um computador dificilmente tem uma intenção estética. Pode ter uma lógica e até pode ser bonito, mas são coisas mais atribuíveis ao acaso. Se houver uma sala de pessoas a dizer frases, de vez em quando alguém vai dizer uma frase que pode ser um verso, mas isso não prova que é um poeta. Mas não me inquieta nada, não creio que os poetas vão ficar no desemprego por causa dos computadores.
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