Quase a chegar aos 100 anos de escutismo na Diocese de Leiria-Fátima, como está a saúde do movimento?
Está bem, continua a crescer, continuamos a ter um papel atractivo para os jovens porque ainda somos diferentes em relação a outras actividades e porque o escutismo é um movimento de educação integral. Não é específico de apenas uma actividade, mas ajuda a formar os jovens em todas as áreas de desenvolvimento seja o ?físico, o intelectual, o carácter, o espiritual, o afectivo e o social. Ajudamo-los a crescer e a tornarem-se cidadãos activos nas suas comunidades ou no seu trabalho, que é o objectivo principal do escutismo. A visão do Corpo Nacional de Escutas (CNE) é pegar no jovem e nas crianças e fazer deles adultos prontos para serem cidadãos activos nas suas comunidades.
Que características tem o escutismo que outras actividades para jovens não têm?
Sobretudo, temos o contacto com a natureza. Temos a possibilidade de os jovens poderem errar e falhar. Na sociedade de hoje, cada vez mais, temos de ser perfeitinhos e não podemos falhar, mas, aqui os miúdos e miúdas podem errar, podem deitar abaixo as suas construções e voltar a fazê-las. Nós incentivamo-los a fazerem-no. Os projectos que vivem no seio do escutismo, são propostos por eles e não pelos adultos, e é com base nisto que os dirigentes, ao seu lado, os ajudam a construir novos empreendimentos. Nos outros movimentos, que têm os seus méritos, evidentemente, muitas vezes, é mais importante a vontade do adulto do que a do jovem. Isto não invalida que todos os movimentos e todas as actividades sejam importantes. O essencial é que os jovens estejam ocupados e construam coisas por si e para si.
Que impacto tem a ligação espiritual e religiosa do CNE à Igreja Católica?
Quando fundou o escutismo, Baden-Powell disse que a religião, fosse ela qual fosse, tinha de ser uma parte integrante do crescimento do jovem. Escuteiros [católicos, filiados ao CNE] ou escoteiros, devem todos ter uma confissão religiosa e professá-la. A religião é uma parte integrante da formação dos jovens e nós ajudamo-los a olhar para Deus ou para outro deus em que acreditem, e que isso faça parte da sua vida. Ajudamo-los a perceber que não estamos aqui por acaso, mas que existe uma entidade superior que nos ajuda a crescer e a evoluir. O escutismo vive independente da religião. É natural que as questões religiosas, sejam dos hindus, dos católicos ou muçulmanos, tenham uma influência nos valores dos escuteiros. Numa actividade internacional onde estão todas as religiões e escuteiros de todo o mundo, todos temos os mesmos valores, e todos procuramos o mesmo. São valores universais. Quando encontramos um escuteiro, seja em que parte do mundo for, ele tem os mesmos valores que nós, tem a mesma formação e procura o mesmo, que é o bem-estar da sociedade e o bem-estar de todos na comunidade, procurando fazer um mundo um pouco melhor. E isso é independente da religião de cada um.
São os mais novos que pedem para aderir ou são os pais que os trazem?
Temos um bocadinho de tudo. Há dias, ouvi um caminheiro [escuteiro entre os 18 e os 22 anos], na sua cerimónia de partida – aos 22 anos são convidados a deixar os escuteiros, pois já são cidadãos adultos prontos para a vida activa -, dizer “vim para os escuteiros porque os meus pais me puseram cá, e fui ficando”. Muitas vezes, chegam-nos também por influência dos amigos, dos vizinhos ou de um primo, que já andam nos escuteiros e os desafiaram a ir também. Ou ainda porque um colega na escola começa a contar as aventuras que tem, o andar de mochila às costas ou fazer um raide. Tradicionalmente, os chefes de escuteiros eram pessoas que foram escuteiras, desde pequenas.
Ainda é assim ou há outros adultos a formarem-se para serem dirigentes?
Há uma entrada de adultos que não foram escuteiros, e não é mau que isso aconteça, porque dá uma outra vida ao movimento e uma outra perspectiva. Actualmente, notamos haver mais jovens que fizerem o seu percurso no movimento e que querem ser dirigentes, para contribuir e dar aos mais novos aquilo que receberam. Há um factor que tem pesado na decisão de ficar, que tem a ver com o mercado de trabalho, eles nem sempre sabem onde vão trabalhar e, muitas vezes, têm de sair para o estrangeiro. Efectivamente, temos recebido também muitos pais ou outros adultos que não são escuteiros e que querem aderir ao movimento e são todos bem recebidos.
Na vossa proposta educativa, existe o “painel de empreendimento” que, fora do mundo do escutismo, ajuda a trabalhar em equipa e a liderar projectos. É semelhante àquilo que vemos nas empresas, com a atribuição de responsabilidades, prazos, recursos, orçamentos e metas. Quão importante é isto na vossa pedagogia?
É uma das partes essenciais, porque tem a ver com o método como desafiamos os jovens e as crianças desde pequenos a trabalhar em conjunto numa equipa e a fazerem propostas que serão votadas pelos seus pares. É escolhida a iniciativa que tem maior adesão do grupo. Convidamos os lobitos, os exploradores, os pioneiros e os caminheiros a fazerem essa proposta e a votarem nela. Nas propostas que perdem, há sempre qualquer coisa que se vai buscar, para enriquecer a mais votada. Ensinamo-los a trabalharem com os outros, ensinamo-los a votar e a importância da escolha.
A pedagogia é diferente para os caminheiros, que são escuteiros adultos?
O método é sempre o mesmo. O que temos feito – penso que este método ajuda a combater as radicalizações actuais – é trabalharmos em comunhão, porque aqui faz-se muita vida comunitária, muitos projectos e escolhas são feitas por todos. À medida que crescemos, as questões são mais trabalhadas, as preocupações, sobretudo nos mais velhos, são “o que vou fazer no amanhã quando for trabalhar?” Pedimos aos caminheiros que planeiem, individualmente, o seu Projecto Pessoal de Vida (PPV), para perspectivarem o que farão no futuro. Esse plano é debatido com todos, do dirigente aos caminheiros mais velhos e os da sua idade. Notamos muito que eles só têm um plano A, e quando lhes perguntamos pelo B, percebem que têm de equacionar uma alternativa, porque as coisas poderão não resultar como planeiam.
Há cerca de 30 anos, havia o lema “todos diferentes, todos iguais”, no CNE. Enquanto dirigente, o que sente quando vê alguns escuteiros de então, agora homens e mulheres adultos, a alinharem em posições extremistas?
Entre aqueles que conheço e com quem mantenho relações, não há ninguém com posições extremadas. Até têm uma posição muito crítica sobre os extremos. O escutismo ensina-nos a aceitar todos. Não nos interessa a cor da pele e não nos interessa a religião. O CNE actualmente tem uma posição muito aberta sobre religião, ideologias e sobre o pensamento. A ideia é acolher todos, trabalharmos todos em conjunto e desenvolvermos todos a nossa comunidade. O movimento adapta-se em função daquilo que os jovens querem e não em função daquilo que o chefe adulto quer. Agora, apareceu a questão da Inteligência Artificial, e estes jovens questionam os adultos se podem ou não confiar e o que devem fazer. O conselho que damos é que tenham pensamento crítico. Porque nem tudo o que entra pelo ecrã é verdade. Pensem e procurem outras fontes de informação, para poderem ter uma opinião consubstanciada e pensarem no que querem fazer.
Mais “bom-senso” e menos “senso-comum”?
Exactamente… mais bom-senso. Contudo, é da natureza humana, que haja pessoas com posições mais extremadas do que outras.
A nível estatístico, há mais homens ou mais mulheres no escutismo da Região de Leiria-Fátima?
Há 34 agrupamentos estabelecidos na Diocese de Leiria-Fátima, cujo território se estende de Alcobaça, a sul, a Ourém, a este, e a Pombal, a norte, e 2.406 escuteiros inscritos. Segundo o último censo escutista, a região tem cerca de 53% de mulheres e o restante são homens. É a tendência da sociedade dar cada vez mais destaque ao papel da mulher. A nível da população, segundo sei, há mais mulheres do que homens e isso tem in?uência no efectivo do CNE. Mas também tem a ver com a igualdade de oportunidades. Lembro-me de há vários anos ir a um encontro à Dinamarca e, lá, já se discutia o género e a igualdade. Era uma coisa que, em Portugal, ainda não era muito falada. A nível geral, a tendência crescente é haver cada vez mais mulheres nos escuteiros. O escutismo foi um dos primeiros movimentos onde a co-educação apareceu. Por vontade dos nossos jovens, o escutismo tem andado sempre um bocadinho à frente do seu tempo. Portanto, a questão da co-educação é uma questão perfeitamente normal nos escuteiros.
O que está a ser preparado para o centenário da região de Leiria-Fátima, que se celebra este ano?
Inspirados pela figura do primeiro chefe regional, o major Joaquim Pereira dos Reis, um ilustre leiriense da época, queremos celebrar “100 anos à volta da Fogueira”, em momentos-chave como o Acareg 2024, último acampamento regional do primeiro centenário que marca o arranque das celebrações. Vai ter lugar na Batalha, na Quinta do Escuteiro [local para acampamento, com 5,2 hectares, carvalhal e sobreiral, rico em fauna e ?ora autóctones], entre os dias 5 e 11 de Agosto e são esperados cerca de 1.200 escuteiros. Faremos uma viagem no tempo, até há 100 anos, com escuteiros dos nossos agrupamentos e com um grupo francês que quis participar. Viveremos tradições já perdidas no tempo e cada agrupamento será uma pro- ssão de antigamente. Teremos ocinas especícas com artesãos a explicar as tradições e algumas prossões que se perderam. Mais à frente, a Marinha Grande será a base nacional portuguesa da maior actividade escutista mundial, o JOTA JOTI – Jamboree [encontro] no ar [radioamador] e Jamboree na internet, que reúne mais ou menos dois milhões de escuteiros em todo o mundo. Vamos ser ali o arranque do ano escutista 2024/25.
E que mais?
Teremos também a Luz da Paz de Belém, que vem da Igreja da Natividade, na Palestina, e que será distribuída em Leiria por movimentos e por todos os nossos agrupamentos, a quem serão enviadas propostas de vivência do centenário ao longo do ano, nas unidades, agrupamentos, paróquias e comunidades. Vamos ter também o dia de BP em Leiria em Fevereiro, durante dois dias, onde comemoraremos o aniversário do fundador do escutismo e esperamos ter à volta 2.200 escuteiros na cidade. No dia 20 de Março vamos ter o Dia da Região, uma cerimónia mais formal para celebrarmos o dia de aniversário do centenário. Em Agosto de 2025, aparte das comemorações, teremos em Portugal a actividade internacional Moot 2025 e sabemos que algumas rotas serão na nossa região e na nossa Quinta do Escuteiro. Estamos a distribuir estas actividades por todos os concelhos da região. No último trimestre de 2025, teremos um “congresso”, onde os jovens vão participar activamente, porque queremos que sejam congressistas e apresentem, em palestras, a sua visão para o futuro da região de Leiria e Fátima e do escutismo.
Natural das Caldas da Rainha, mas a viver em Leiria desde que se conhece, Pedro Nogueira, 48 anos, estudou na Secundária Domingos Sequeira e fez a licenciatura em Contabilidade e Auditoria, em Coimbra.
Tinha 14 anos, quando subscreveu o apelo do pároco da Barosa, à época João Feliciano, para formar um agrupamento de escuteiros.
“Em 1990, ele reuniu um grupo de miúdos e eu fui um deles. Fizemos um primeiro acampamento na Curvachia, que me marcou muito, e fui-me mantendo até hoje, porque sempre gostei da envolvência da natureza e porque, quando somos dirigentes, é bom vermos os jovens a crescer e ver que o escutismo promove neles uma transformação que lhes permite estarem sempre prontos a ajudar e terem uma participação em questões do dia-a-dia e serem críticos daquilo que recebem e vêem”, explica.
Foi eleito chefe regional da Junta Regional de Leiria-Fátima do Corpo Nacional de Escutas para o mandato 2023-2026.