Seis meses depois da tarde em que escaparam à morte, à frente do fumo e das chamas, Joaquim e Edite Godinho voltam a ter habitação própria. No sítio de sempre, com mais diferenças do que semelhanças. A chave chegou no sábado, 16 de Dezembro, a tempo do Natal, numa cerimónia presidida pelo primeiro-ministro, António Costa. Mas em Vale de Nogueira continuam a faltar os momentos onde nasce a identidade, aqueles pequenos nadas que são tudo, transformados em cinzas pelo incêndio de 17 de Junho no concelho de Pedrógão Grande. O ouro guardado ano após ano, a roupa que já era segunda pele, as memórias em papel de fotografia. Dão lugar a um vazio de negro tingido, que a família preenche com a ajuda de amigos e desconhecidos, numa corrente de solidariedade que não conhece distâncias, do norte ao sul do País. "Nunca pensei passar por esta situação e também não sabia que havia pessoas de tão bom coração", comenta Joaquim Godinho, o último a deixar o perigo para trás naquele corropio de diabos. "Só não perdi a vida, por pouco, mas não perdi". Agora há uma cozinha a estrear, mobília oferecida por alguém do Porto, uma televisão que volta a ser janela para o mundo e um tecto debaixo do qual os sonhos se reagrupam. Uma casa "mais pequena", que "não é a mesma coisa", admite Edite Godinho. Mas uma casa a que eles e os filhos, já adultos, podem colar a palavra "nossa". E é aí que a pertença começa. Até um dia custa, quanto mais seis meses.
Com o Natal à porta, Joaquim e Edite, 54 e 53 anos de idade, têm mais um motivo para sorrir. A mesma empresa que pagou a nova habitação vai reerguer os anexos, tão importantes para a subsistência familiar, dependente em boa medida do que a terra dá. Ele está desempregado há um ano, ela ajuda a irmã na venda ambulante. "Vão oferecer-nos a construção dos anexos. Estou muito contente. Foi a melhor notícia que me podiam dar, porque assim já posso fazer as coisas que antes fazia. O fumeiro, os presuntos do porco, tudo. E agora não tenho onde faça nada", explica Edite Godinho. Naquele 17 de Junho, o marido queimou-se numa mão e na cara, quando procurava salvar os animais. Alguns morreram, outros sobreviveram, mas com ferimentos. Quando as chamas pegaram à casa, as botijas de gás vazias rebentaram e toda a estrutura estremeceu, obrigando a reconstruir de raiz. Não esquecem a noite em sobressalto no centro de saúde, e o regresso, ainda com o incêndio activo, só para encontrar a rotina interrompida, a respiração suspensa.
O primeiro Natal do resto das vidas deles, de todos os que nos concelhos de Pedrógão Grande, Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos encararam o inferno e estão aí para contar, não podia nunca ser um Natal igual aos outros. Nem mesmo para os que já têm casa – 40% dos lesados, de acordo com o balanço da Unidade de Missão para a Valorização do Interior. Vai ser um Natal "mais fraco", porque "não há dinheiro", diz Edite Godinho. Mas também "não há aquela alegria" de outros anos. E é fácil perceber porquê. "Toda a gente que morreu conhecíamos. Toda a gente".
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No último meio ano, a presença de membros do Governo, incluindo o primeiro-ministro, nos territórios atingidos pelos incêndios, de deputados dos partidos da oposição e até de representantes da Comissão Europeia, tem funcionado como paliativo contra o esquecimento, a colocar a necessária urgência numa gigantesca operação de retorno à normalidade, lento e com muito ainda por fazer. Mas a visita que Edite Godinho mais deseja pelo Natal é a do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que nos últimos meses esteve várias vezes nos concelhos mais penalizados pelos fogos florestais. "Gostaria que ele viesse à minha casa ver o
pouco que temos. Dá-nos força de viver. Porque a gente chega ao pé das coisas… andei 30 anos a lutar e no espaço de meia hora foi tudo, perdi tudo. Não há explicação".
Adelaide Antunes: "Nem parece Natal". Ali perto, também no concelho de Pedrógão Grande, na povoação vizinha de Moleiros, à porta do número 17 do Caminho do Vale de Outeiros, há um pequeno mosaico em cerâmica que recorda as horas de aflição vividas por Abílio Conceição Nunes e Maria Adelaide Antunes, marido e mulher, ambos com 53 anos. Seis azulejos, pintados com a imagem de Nossa Senhora de Fátima e dos pastorinhos, com o Santuário da Cova da
Iria em fundo. "Fui eu que a pus aí. Agarrei-me a ela, foi o que me valeu, se não a gente morria", afirma Maria Adelaide. Depois do incêndio, a devoção está imortalizada no muro de protecção da casa, uma das primeiras a ser reconstruída. Foi entregue à família há dois meses e mobilada com móveis entregues pelo Município. Uma versão melhorada, com dois quartos.
Mas há sempre um mas. Não há como ignorar a angústia, quando a sobrevivente de Moleiros fala. A voz que treme, a emoção que inunda o olhar, a tristeza que permanece. No Natal que se avizinha, é como se os dias quentes de Junho se mantivessem no calendário a ferver com lembranças indesejadas. O casal amigo que não volta a ser, a insónia na primeira noite atravessada de braço dado com o fogo de Escalos Fundeiros, o cadáver sobre o alcatrão na estrada que agora todo o País conhece, o carro de bombeiros acidentado, um passado que teima em não sarar e um futuro que é outra coisa qualquer. "Nem parece Natal", desabafa Maria Adelaide. Numa família em que os rendimentos fixos se resumem a uma magra reforma por invalidez, do marido, o incêndio de 17 de Junho empurrou para o desemprego o filho do casal, que trabalhava como madeireiro. Hoje está emigrado. Sem pinhais onde procurar sustento, o estrangeiro parece a saída mais fácil, numa região que sofre com escassez de emprego, população e oportunidades.
Faça-se luz, pede Sebastião Esteves. Em Nodeirinho, aldeia onde morreram 11 pessoas a 17 de Junho, também Sebastião Gonçalves Esteves, 84 anos, tem casa nova para morar. No dia 16, como que a inaugurar o período festivo, o primeiro-ministro, António Costa, deixou-lhe a chave da habitação financiada pela Mota Engil – há copos e garrafas de bebida em cima da mesa que revelam a passagem da comitiva oficial e lembram o brinde para celebrar o momento. Mas o antigo motorista, com 36 anos de Lisboa, viúvo, ainda não sabe se passa o Natal entre aquelas quatro paredes brancas que brilham com o brilho do que é novo. Falta algo indispensável: electricidade. Anunciou-se no momento solene do último sábado, mas depois a escuridão impôs-se. "Quero vir para aqui e luz está quieto, não há, não me põem cá o contador. Está a baixada feita, está tudo feitinho ali, tudo pronto, é só chegar e ligar o contador. Nada. E assim estou neste impasse", queixa-se Sebastião Esteves ao JORNAL DE LEIRIA, na segunda-feira, 19. Chama-lhe burocracia, garante que está tudo pago e lamenta a malandragem que lhe atrasa a vontade. Da energia depende um Natal com a família – os enteados, que moram em Lisboa. "Queriam cá vir, mas se não houver electricidade já não podem vir. Como é que vão aqui dormir? Como é que vamos aqui fazer o Natal? Não se pode fazer nada".
Quando a mulher morreu e foi sepultada no cemitério da Graça, no concelho de Pedrógão Grande, há 16 anos, Sebastião Esteves deixou-se ficar pelo Nodeirinho. Ali tinha tudo o que precisava. "Uma bicicleta, para os meninos", quando subiam de Lisboa à aldeia, para o visitarem. "Estava nova. Ardeu tudo, foi tudo embora". As fotografias dos pais e do sogro, as televisões, as ferramentas, o micro-ondas por estrear, o fogão de grelha. "Tudo isso desapareceu, agora não tenho nada". Naquele 17 de Junho, refugiou-se em casa, na casa que já não existe, sozinho quando ouviu o lume rugir. "Disse assim, a morrer, morro em minha casa". Sem mais para onde escapar, escondeu-se das chamas na casa de banho. E esperou. "O calor era tanto que você não faz ideia". Seis meses depois, ainda lhe custa recordar como fintou a morte, como salvou o carro só com baldes de água e como encontrou o derradeiro esconderijo no tanque da aldeia, Nodeirinho, quando já sabia que só lhe restava a roupa que trazia vestida, porque tudo o resto, das memórias ao conforto comprado com a modesta reforma, desapareceu com o incêndio que chocou um país inteiro.
Depois de três noites no lar da Misericórdia em Pedrógão Grande, Sebastião dormiu os últimos seis meses debaixo de tecto emprestado. Grato pela solidariedade de quem o ajuda, não deixa de baptizar o refúgio: uma estufa no Verão, um frigorífico no Inverno. Daí a sentença, quando abre a porta da casa nova, com as chaves que lhe valeram a visita do primeiro-ministro: "Já vinha hoje para aqui se tivesse luz". Uma sala que também é cozinha, um quarto. O suficiente. "É diferente, a minha tinha mais largueza". Só que era "mais antiga, já com 80 e tal anos". O fornecedor de electricidade prometeu ligar o contador amanhã, sexta-feira, 22. Faça-se luz. O Natal é quando o homem quiser.