“2017 é uma oportunidade perdida.” Carlos Guerra, comandante operacional distrital de Leiria, assume que os incêndios que devastaram o norte do distrito deveriam ter sido um mote para redesenhar a floresta e torná-la mais resiliente. A opinião é partilhada por Domingos Xavier Viegas, investigador que integrou a Comissão Técnica Independente e elaborou um relatório sobre os maiores fogos de Junho de 2017, e por Paulo Pimenta de Castro, presidente da Acréscimo, Associação de Promoção ao Investimento Florestal e um dos autores do livro Portugal em Chamas – Como Resgatar as Florestas.
O dia 17 de Junho de 2017 nunca mais será esquecido pelas gentes de Pedrógão Grande, um pequeno concelho do norte do distrito de Leiria. Aquele pedaço de terra, que luta contra o despovoamento dia após dia, era desconhecido por muitos, mas após a fatídica data, quando um incêndio devastou o concelho e provocou a morte a mais de 60 pessoas, passou a ser conhecido mundialmente. A reputada National Geographic chegou a realizar um documentário para explicar o raro fenómeno de downburst que em pouco tempo contribuiu para que as chamas varressem o concelho.
Cinco anos depois, as gentes locais estão cansadas de jornalistas. Preferem esquecer o inesquecível. O fogo obrigou os responsáveis políticos a olhar para a Protecção Civil de maneira diferente. Algumas coisas mudaram e procuraram ir ao encontro das recomendações deixadas pelos especialistas no relatório entregue à Assembleia da República. A floresta, cuja transformação era urgente, ficou igual ou pior, como assumem alguns dos especialistas.
“Infelizmente, 2017 não trouxe aos concelhos mais atingidos uma modificação da paisagem em termos do que se pensava ser um reordenamento florestal. Essa é a grande mágoa e a grande deficiência do que não se aprendeu em 2017”, sublinha Carlos Guerra. O comandante distrital (à época era Sérgio Gomes) acrescenta que a decisão de abandonar a monocultura caiu por terra. “As políticas a implementar pelo ICNF [Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas] no reordenamento do território passavam por novas culturas e faixas da rede primária e esse serviço ficou aquém do desejado. Diria que em alguns casos a situação está pior do que em 2017. Em muitos dos terrenos, o queimado de 2017 continua e aquilo que era apenas um eucalipto que queimou, rebentou e hoje são sete ou oito eucaliptos no mesmo pé”, explica.
Por isso, Carlos Guerra alerta que, em alguns locais, a “massa combustível é muito maior do que em 2017”, um “problema que não foi resolvido”.
Eucaliptos proliferam
Domingos Xavier Viegas constata que “se perdeu uma oportunidade muito grande de aproveitar o impacto que estes incêndios tiveram para mudar a mentalidade” dos produtores florestais e “criar condições às pessoas para gerirem melhor os seus espaços”. “O que estamos a ver, infelizmente em alguns territórios, e em particular naqueles percorridos pelo incêndio de Pedrógão Grande é uma floresta abandonada. O que ardeu está lá. Uma série de eucaliptos regeneraram e agora temos ali um matagal de pequenas varas, que estão a crescer e, se nada for feito, como tem acontecido até agora, há condições para que aconteçam incêndios muito graves”, avisa.
“Como muita coisa está deixada nas mãos dos proprietários privados, que por não terem outros incentivos ou outra motivação para fazer uma floresta diferente, continuam, até por inércia, a deixar que o eucalipto cresça ou se plante. É claramente indesejável para a questão dos incêndios”, destaca.
A falta de ordenamento do território nacional é um problema há muito reconhecido por governantes, mas cujas soluções tardam em aparecer, até porque muitos dos terrenos são de privados, alguns deixados em heranças, que os descendentes ignoram ou não se preocupam. Os incêndios seriam, e todos concordam, a oportunidade para começar a mudar a paisagem.
Domingos Xavier Viegas reconhece que essa é “ainda a grande falha” que não foi corrigida, de um modo geral, em todo o território, quer no que respeita à gestão da floresta por pequenos proprietários, quer por parte das autoridades que têm de gerir a floresta no seu todo.
Segundo o investigador, não são criadas zonas de descontinuidade quer pela eliminação física das chamadas faixas da rede primária quer no reajuste da floresta utilizando espécies não tão combustíveis, criando mosaicos, o que evitaria grandes extensões de monocultura, “que favorecem a progressão do fogo”.
Paulo Pimenta de Castro concorda que não há ordenamento florestal. Assiste-se a pequenas intervenções individuais, que cada um faz por si, não existindo uma operação de planeamento. “O Governo vai lançar um Programa de Reordenamento e Gestão da Paisagem em dez freguesias dos concelhos de Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos, Pedrógão Grande, Arganil, Góis e Pampilhosa da Serra. Esse planeamento foi preparado, mas cinco anos depois dos incêndios ainda não está em discussão pública”, lamenta.
O engenheiro silvicultor sublinha que o planeamento do Governo deveria “antecipar as acções dos proprietários” e reconhece que há zonas que “estão piores” do que antes de 2017, sobretudo, devido ao aparecimento e crescimento de espécies invasoras, como as acácias. “Perdeu-se uma oportunidade, como já se tinha perdido em 2005 e nos incêndios anteriores. Somos pródigos nisso”, critica, ao avançar que a limpeza de terrenos a que são obrigados os proprietários não tem um impacto tão grande face a um incêndio, no caso de um eucaliptal.
Segundo Paulo Pimenta de Castro, “o eucalipto quando arde lança projecções que podem atingir quilómetros de distância”, tal como sucedeu com o fogo que passou a albufeira da Barragem da Aguieira e queimou as ‘ilhas’ existentes.
Maior consciencialização
Portanto, o presidente da Acréscimo considera que os encargos dos proprietários têm poucos resultados. “Em Pedrógão Grande até pode ser contraproducente. Ao se fazerem as faixas de protecção de dez metros abre-se a porta para a expansão das acácias. Este cocktail de acácias e eucaliptos não augura nada de bom”, reforça.
Mário Cerol era o segundo comandante distrital à data dos incêndios. Hoje, comanda os Bombeiros Voluntários da Nazaré e olha para trás com tristeza pelo facto de se continuar a “assistir a uma deficiente política florestal, com a contínua falta de ordenamento do território, com o êxodo do mundo rural e do interior”.
“A revogação do Decreto- Lei 124/2006, pelo Decreto-Lei 82/2021 [o Sistema de Defesa da Floresta contra Incêndios foi substituído pelo Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais], não veio clarificar , nem melhorar o edifício jurídico, criando lacunas que só criam mais entropias no sistema”. “Sinto que na limpeza das faixas de gestão combustível, nos primeiros anos após os incêndios, existiu uma grande mobilização e empenho quer de entidades públicas e privadas quer de particulares. Hoje começamos a notar mais dificuldade nessa manutenção devido à despesa que a mesma acarreta e à escassez de mão de obra para a sua execução”, adianta.
Também Carlos Guerra reconhece que é “preciso que haja uma maior fiscalização e uma maior sensibilização”, para que se continue a “avivar a memória das pessoas”. Muitas, “por dificuldades económicas ou físicas e até por dificuldade em contratar alguém que faça estes trabalhos de desmatação”, não o fazem.
Domingos Xavier Viegas nota ainda uma “maior sensibilização das pessoas no que toca ao número de ignições”, não obstante os registos virem a diminuir nos últimos anos, mas o investigar acredita que os incêndios de 2017 tiveram “impacto” na população, a par de outras medidas. “Naturalmente, uma maior sensibilização e uma maior vigilância têm contribuído para a redução do número de ocorrências diárias, o que é francamente favorável para o sistema de combate.”
Mário Cerol considera que muito mais ainda há a fazer para a consciencialização das populações. “Após 2017, começou a ser implementado o programa Aldeia Segura, Pessoas Seguras, foi criado o sistema de alerta via sms para os cidadãos, foi optimizado o Núcleo de Apoio à Decisão – Análise Incêndios Rurais na Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil, foram melhoradas as Equipas de Reconhecimento e Avaliação da Situação (ERAS) dos bombeiros e pouco mais. Portugal hoje conhece melhor os riscos, mas continua com um défice de implementação de medidas a montante, na prevenção, para que se possa afirmar que estamos no caminho certo”, lamenta.
O despovoamento do interior é para Carlos Guerra um “problema grave”, que também dificulta o reordenamento do território e o aproveitamento da floresta. “Enquanto a nossa floresta não se tornar rentável economicamente para o proprietário, vamos ter o abandono contínuo dos campos florestais. A falta de pessoas no interior é um problema gravíssimo para aquilo que é a sustentabilidade florestal. Não havendo pessoas não há práticas florestais, não há vigilância, não há vivência e não há, sobretudo, aquilo que é ter práticas agrícolas como se tinham há uns anos”, constata.
Operacionalidade melhorou após 2017