No Sport – é assim que o Sport Castanheira de Pera e Benfica é conhecido na terra – o futebol sénior despediu-se em 2012. Mas a terra clamava pela bola ao domingo e a nova Direcção já tinha bem definido o desígnio de apresentar equipa na temporada que agora começa.
A vila não podia continuar a morrer aos poucos e o desporto tinha de ter um papel a desempenhar. Era, de resto, essa a função que Gonçalo Assa queria ter para aceitar um cargo nos órgãos sociais: organizar um onze que representasse condignamente o nome de Castanheira de Pera,
A tragédia de 17 de Junho levou Gonçalo Assa – o bombeiro faleceu devido às graves queimaduras que sofreu – mas, até por isso, o guião teve de se manter. Tozé, pai de João Carvalho, o craque do Benfica e da selecção de sub-21, era “como um irmão” de Gonçalo e foi ele o escolhido para substituir o insubstituível.
Passados três meses da tragédia, o cheiro a queimado permanece, incómodo, como que não deixando esquecer o que não é possível esquecer. Também o campo de futebol, com eucaliptos a rodeá-lo por três dos lados, sofreu com o incêndio. Mas houve algo que não sofresse?
“O depósito de rega ardeu, a vedação de um dos lados do campo ficou destruída e o relvado tem uma área de 150 metros quadrados que terá de ser substituída, pois tem pequenas áreas queimadas”, diz José Chamorra, vice-presidente do clube.
Não é por isso que os treinos vão parar ou os jogos deixar de decorrer. O primeiro deles é já no sábado, frente ao Lusitano de Chão de Couce e, para esta gente, pouco importa se ganham ou perdem. “Não se pode pensar que a equipa é forte ou que vai ganhar os jogos todos. Temos muito mais do que objectivos desportivos”, enfatiza António Carvalho, o presidente.
Apesar de todas as dificuldades, dos apoios para a construção de uns balneários e de uma bancada que tardam em chegar, o momento em que roda a bola retira, por momentos, toda aquela rapaziada da tristeza dos dias, das obras de reconstrução e do pensamento naqueles que partiram.
Do plantel, composto por um elevado número de atletas com idade júnior, consta Rodrigo Tomé. Ele é filho de Fernando Tomé e irmão de Fernando Paulo, dois dos bombeiros que estavam no veículo acidentado que acabou por levar à morte de Gonçalo Assa. Ambos ficaram queimados, mas o irmão teve alta hospitalar já em Agosto.
O progenitor sofreu mazelas mais graves e apenas na segunda-feira foi transferido para uma clínica de reabilitação. “Está a fazer fisioterapia, mas tem graves sequelas, problemas ao nível da respiração e nunca mais vai ser a mesma pessoa”.
Os dias têm, pois, sido “difíceis” para aquelas bandas. “Não se consegue orientar uma ideia perante aquilo que aconteceu. São tantas coisas más que nós, que andámos no terreno, ficamos baralhados com o que se passou”, desabafa o presidente, preocupado, sobretudo, com o futuro das crianças que de mais perto viveram aqueles momentos.
[LER_MAIS] “Essencialmente preocupo-me com o trauma que os vai acompanhar a vida toda. Tenho uma filha com 10 anos e qualquer fumo que haja, para a maior parte das nossas crianças deste concelho, já é um problema. Nós, adultos, digerimos de outra forma, mas eles, quando tiverem oportunidade de sair desta terra, vão mesmo sair, porque têm a mente naqueles dias.”
Também para Rodrigo, as recordações dos momentos trágicos só momentaneamente lhe saem da cabeça. Para tentar esquecer vai até ao quartel dos bombeiros, onde frequenta a recruta, e claro, joga, orgulhoso, à bola no Sport, o clube da terra.
Uma paixão antiga, que só o sonho de Gonçalo Assa conseguiu cumprir. “Temos de continuar a olhar para o futuro, não é? Quando ia a Lisboa visitar o meu pai via coisas que não via na Castanheira, mas prefiro isto. Estamos mais à-vontade, lá é muita confusão. Estou no 12.º anos, mas quero estudar perto, em Coimbra ou Leiria, para poder chegar depressa.”
A 18 quilómetros…
Professor de Educação Física aposentado, Hélder Soares estava afastado dos meandros do futebol há duas décadas e meia. No entanto, o dia 17 de Junho provocou uma revolta tal que fez com que quisesse voltar a ter um papel bem activo na terra que adoptou para viver em 1973.
“Uns dias depois da tragédia fui ao hospital de Tomar com a minha esposa. No momento em que estava a efectuar a inscrição para a consulta, a funcionária disse, com ar de sofrimento: 'de Pedrógão Grande? Coitadinhos!' Isso incomodou-me.”
É o problemas das terras em que a desertificação vai, lentamente, ganhando a batalha. O Recreio Pedroguense, um histórico emblema com 76 anos de história, estava em vias de fechar as portas, porque não havia quem quisesse fazer parte da Direcção.
“Decidi ajudar e, com outras quatro pessoas, formámos uma comissão administrativa. Porquê? Se cada um der uma pequena contribuição dentro da sua área, as coisas poderão começar a modificar-se, apesar de saber que a transformação irá demorar muito tempo.”
O regresso do Recreio Pedroguense ao futebol sénior tem sido embalado com a ajuda de muitas pessoas. “Pessoas que ficaram muito entusiasmadas com a ideia e acederam a pagar as quotas, ou médicos que fazem os exames clínicos de forma gratuita e que vão fazer o acompanhamento das equipas nos jogos.”
Hélder Soares, por sua vez, assumiu a responsabilidade de liderar a equipa sénior, que regressa às competições da Associação de Futebol de Leiria após dois anos de ausência.
O primeiro jogo é este sábado, na vila, frente ao Grupo Desportivo da Ilha, num campo que, também ele, esteve em vias de ser consumido pelas chamas. A capitanear a equipa vai estar Paulo Jorge, de 39 anos, atleta que regressa ao futebol federado após sete temporadas com as chuteiras no armário. Para treinar tem de fazer 60 quilómetros, mas não podia perder esta prova de vida que a sua terra está a querer dar ao mundo.
“Achei de muita coragem e, claro, deixou-me muito contente este regresso do Recreio Pedroguense. Estou a viver em Ansião, mas tudo me liga a Pedrógão Grande”, explica o jogador. Paulo Jorge é de Escalos Fundeiros, o local onde o incêndio começou.
“Estava lá no início do fogo. Ajudei em casa da minha avó, que ardeu parcialmente, mas naqueles momentos de aflição nem temos tempo de pensar no que está à volta. Só depois é que tive conhecimento da extensão da tragédia. Infelizmente, houve muitos amigos que partiram, como o Gonçalo Assa, que jogou comigo no Recreio e no Sport.”
Comercial de profissão, todos os dias tem de falar do que aconteceu a 17 de Junho. “É impossível esquecer. Podemos tentar, mas as outras pessoas vão perguntando. E mesmo que não falasse, são imagens que se fixam na memória, mas para as quais não há palavras. Quando vi o que vi e não consigo explicar…”
Tiago Coelho, de 25 anos, estava afastado do futebol há algum tempo e vai aproveitar este regresso para se estrear nas competições seniores, ainda por cima, no “clube da terra”. Foi dos atletas do plantel mais afectado com o que se passou.
Andou a proteger a própria casa com baldes, meteu-se à estrada quando a situação se tornou caótica, mas a sua história acabou por ter um final feliz. E entende que a sua participação será, antes de mais, uma homenagem a todos os que pereceram.
Tudo está a ser preparado para marcar a época de forma indelével. Até as próprias camisolas de jogo vão ser especiais. “Foi criado um símbolo para o equipamento, com alusão à natureza, ao renascimento e à esperança, para que todos percebam que entramos a pensar naqueles que não estão cá, aqueles faleceram na tragédia.
No fundo, que a nossa participação é uma homenagem a eles”, explica Rui Capitão, outro membro da comissão administrativa. Desta vez, até as vitórias morais vão ter valor. “Vamos tentar o melhor, pensando sempre que os triunfos serão sempre dedicados às pessoas que perdemos.”