Pode não ser a mais grave em termos de volume financeiro, mas é seguramente a mais mediática e a que terá feito mais vítimas de norte a sul do País. Investigada pela Polícia Judiciária (PJ) de Leiria, a burla informática conhecida por “Olá pai, olá mãe” já levou ao desmantelamento de duas redes, que criavam contas de Whatsapp e enviavam mensagens de forma massiva, fazendo passar-se por filhos ou familiares dos destinatários.
Regra geral, a mensagem dava conta de uma alegada avaria ou perda do telemóvel, informava que aquele era o novo número provisório e, logo que a vítima entrava na conversa, era criada uma narrativa para despertar a emoção parental e feito um pedido de pagamento urgente, inicialmente, entre os 690 e os 850 euros. Por ingenuidade, preocupação e até falta de tempo para [LER_MAIS]raciocinar e verificar a veracidade da história, milhares de pessoas caíram no logro.
Sempre que o impostor percebia a aflição e a aparente disponibilidade do outro lado da linha, ia subindo a fasquia, solicitando pagamentos de 5.000 e 8.000 euros.
Uma das vítimas, apurou o JORNAL DE LEIRIA, só percebeu que tinha sido burlada depois de já ter transferido 27 mil euros. E não foram só pessoas iletradas ou menos familiarizadas com as tecnologias digitais a ser apanhadas nesta burla informática. Na longa lista de queixosos constam, por exemplo, o nome da ex-ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, e o do ex-presidente do Tribunal Constitucional, João Caupers, que só não consumou a transferência porque não tinha instalada a aplicação MB Way no telemóvel e quando tentou fazer a movimentação através do banco, o IBAN fornecido já estava bloqueado.
Embora as contas sejam difíceis de fazer, tendo em conta que muitas das vítimas podem não ter apresentado queixa, estima-se que os cibercriminosos já lucraram mais de 4 milhões de euros só com esta burla. Rendimento que entrou rapidamente num circuito de branqueamento de capitais, para evitar a descoberta da origem e destino do dinheiro.
De olá mãe, a olá irmão, tio ou avô
As primeiras queixas relacionadas com a burla “Olá pai, olá mãe” começaram a chegar às autoridades policiais em finais de 2022. Inicialmente, os casos denunciados na nossa região configuravam um crime de burla simples e estavam a ser tratados de forma desfasada. Mas face à sucessão de denúncias, de norte a sul do País, a PJ de Leiria e o Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) decidiram encarar o fenómeno à escala global, tipificando-o como um caso de burla qualificada e branqueamento de capitais, o que tornou possível concentrar as queixas apresentadas à PJ, PSP e GNR a nível nacional e aceder a outros mecanismos legais de investigação.
Os frutos de vários meses de trabalho intenso dos investigadores chegaram em Novembro do ano passado. Numa operação realizada em Lisboa, os inspectores detiveram um homem de 41 anos, estrangeiro, em situação legal em Portugal, que tinha na sua posse o equipamento usado na burla informática, assim como milhares de cartões SIM. Na ocasião, a PJ percebeu que o suspeito usava sete modem’s em simultâneo, com 32 portas cada um, o que permitia a utilização de 224 cartões ao mesmo tempo. Os investigadores concluíram também que, entre Maio e Novembro de 2023, tinham sido operados nos sete modem’s cerca de 43 mil cartões.
De onde vinham estes cartões, ficou a perceber-se na semana passada, com a conclusão da investigação e o desmantelamento da rede. Um grupo recolhia os cartões oferecidos por uma operadora de telecomunicações em festivais de música e museus, que depois os vendia ao cabecilha para que pudesse abrir contas no Whatsapp e expedir mensagens de forma massiva.
Apesar do sucesso desta operação, as denúncias continuaram a chegar às forças de segurança. Com contornos mais apurados e sofisticados. Em vez de “olá pai, olá mãe” na saudação da mensagem enviada às vítimas, os burlões alargaram o leque familiar, passando a usar os termos, “olá irmão, tio, primo, avô ou avó”. Mais. Em muitos casos, as contas fictícias através das quais eram enviadas as mensagens já exibiam a foto e o nome do familiar da pessoa a quem tentavam burlar. Um grau de sofisticação descoberto no passado mês de Junho, quando a PJ deteve um casal estrangeiro, a viver em Leiria, que possuía um equipamento “altamente profissional” para consumar as burlas.
Esta segunda rede, que aguarda julgamento em liberdade, tinha na sua posse 49 modem’s, onde podiam operar 1.568 cartões SIM em simultâneo.
De conta em conta, até à conta final
Com um volume tão elevado de mensagens enviadas diariamente, os responsáveis pela expedição dos falsos pedidos de ajuda contavam com vastas equipas de cúmplices, que os auxiliavam na elaboração e manutenção das narrativas que despertassem a emoção maternal ou paternal nas vítimas, mas também na angariação de terceiros que disponibilizassem as suas contas bancárias (por vezes de forma incauta) para recebimento dos fundos sacados aos burlados. Desta forma, o dinheiro circulava rapidamente por contas nacionais e europeias, até chegar ao destino final, num outro continente. Todos ganhavam uma percentagem com o envolvimento no processo enquanto os principais cérebros da burla conseguiam fazer disto o seu modo de vida, encaixando milhares de euros por mês.
E, perante este modelo de branqueamento, dificilmente as vítimas virão a recuperar o seu dinheiro. Uma vez consumada a burla, uma das poucas esperanças reside num hipotético acordo com o burlão já em sede judicial, em troca da suspensão do processo.
“Nos crimes de natureza patrimonial, é possível haver um acordo entre a vítima e o agente do crime. Mesmo que o agente do crime não tenha dinheiro, ou aparentemente não tenha esse dinheiro, se com esse acordo ele puder ser restituido à liberdade ou até absolvido, o dinheiro muitas vezes aparece e as vítimas vêem ressarcida a perda do seu dinheiro”, esclareceu o advogado Carlos Melo Alves, em declarações à SIC.
A melhor defesa é desconfiar
Sendo os casos de burla informática um tipo de crime em que a vítima raramente ou quase nunca conseguirá ser ressarcida, a melhor forma de os travar é ter atenção redobrada em ambiente digital e reforçar a prevenção. “Num mundo de maiores ameaças tem de haver maiores defesas. Se as pessoas são tão defensivas no contacto pessoal, porque é que em ambiente digital, que nem sabem quem está do outro lado, nem em que região do mundo está, não desconfiam? É preciso estarem mais atentas e deixar de acreditar no Pai Natal”, alerta o director do Departamento de Investigação Criminal de Leiria da PJ.
Por outro lado, defende Avelino Lima, seria desejável a tomada de medidas concretas para impedir que se continuassem a distribuir cartões para telemóveis sem ser exigido um registo ao utilizador, mesmo em regime de confidencialidade. Como se viu, pela quantidade de cartões apreendidos pela PJ na semana passada, é evidente a facilidade com que se continuam a recolher cartões SIM gratuitos, que depois podem ser vendidos e utilizados por redes criminosas sem deixar rasto. Se entretanto, por alguma razão, cair numa destas burlas (ver caixa), não perca tempo com lamentações. Entre em contacto com a PJ. “Só há uma forma da vítima ser ressarcida e nem sempre funciona, mas nós temos conseguido. É apresentar queixa, no máximo, nas 24 ou 36 horas seguintes à entrega do dinheiro, porque os fundos dissipam-se a uma velocidade estonteante”, aconselha Avelino Lima.