O escritor Daniel Abrunheiro chamou- lhe um dia “o Natal dos pombalenses”, quando percebeu o grau de importância com que cada família e grupo de amigos se mobilizava para poder estar presente; ajustava a vida profissional para voltar à terra, e vivia aqueles dias de festa – que, este ano, pela primeira vez foram seis, contados entre 25 e 30 de Julho – num “Bodo de convívio”.
No número 27 da Rua São João de Deus não há grandes dúvidas sobre isso. Quem o diz é Raul Testa, 34 anos, adjunto da presidente da Câmara da Marinha Grande, mas com raízes em Pombal.
É ali, no quintal do avô Raul Testa Fortunato, figura local prematuramente desaparecida, que, todos os anos, se reúnem várias gerações da família, e que vão trazendo amigos.
O JORNAL DE LEIRIA encontrou- os no sábado à tarde, entre o almoço – sempre tardio – e o jantar.
Do grupo (que já chegou a ser de 50 almas) apenas Conceição Amorim continua a morar, com o marido e as filhas, em Pombal, sem contar com Isaura dos Santos, 81 anos, a única que resta da geração mais antiga. Vieram dos lugares onde fizeram novo lar: Lisboa, Leiria e até do Funchal.
É Isaura quem faz os doces “para a gente toda”. Chegaram na sexta-feira, mesmo ao final do dia, e andaram entre os largos do Cardal, da Biblioteca e do Arnado.
É neste último que está instalado o recinto dos espectáculos e onde a festa dura até de madrugada. “Agora, como já estamos mais velhos, já não fazemos aquele número de ir tomar o pequeno-almoço antes de voltar para casa”, como ainda fazem os mais novos. É tradição local ocupar o café Esquina depois dos concertos.
“Também já não vamos às padarias comprar pão, a sair do forno”, conta Paula Testa, mãe de André e Adriana, ele com 28, ela com 21, ambos assíduos na festa da terra onde os pais foram meninos. Trazem amigos, todos os anos, a quem gostam de mostrar a cidade e uma festa que consideram ímpar.
O pai, Vítor Pataco, presidente do Instituto Português da Juventude e Desporto, também ele filho da terra, tem outras memórias para juntar a este rol. Talvez a mais antiga seja a de jogar à bola na Praça Marquês de Pombal, [LER_MAIS] mesmo em frente à Igreja Matriz.
Mais tarde, com os amigos construíram outras, “quando já éramos crescidos e tínhamos outras responsabilidades. Durante muitos anos, organizávamos a meia maratona, que era ao domingo de manhã. O que quer dizer que era sempre uma dificuldade, depois de uma noitada…”
Agora que os filhos também já são crescidos, não há segredos sobre as noites do Bodo. Depois do jantar de sábado, o grupo não dispensa uma boa disputa nos carros-de-choque, antes da noite em que todos os amigos se encontram, num canto qualquer da festa.
Margarida Ferreira, amiga do casal, é natural de Lisboa e vem pela segunda vez. É ela quem conta como já viu muitas festas pelo País inteiro, “mas nunca uma onde as pessoas convivam assim, cheias de saudade uma das outras, o que é notório quando se encontram na rua”.
Ali, no número 27, a reunião do Bodo tornou-se “uma tradição tão importante quanto o Natal. Talvez até tenha mais força, para nós”, assegura André Pataco, pois que ali conseguem reunir-se todas as ramificações da família, ao contrário do que sucede em Dezembro.
A tarde aproxima-se do fim e, entre o grupo, há agendas para gerir. “Os dias deveriam ter 48 horas”, diz Paula Testa, pois além do convívio no quintal que foi dos pais e dos tios, há outros espalhados pela cidade.
Ricardo Tecedeiro, o coordenador da Polícia Judiciária do Funchal, é um dos que não podem faltar a outro evento que se tornou tradição: a sardinhada em casa da família Araújo (ver caixa). O mesmo acontece com Vítor Pataco, e com quase meia centena de pombalenses.
A sardinhada dos Araújos
“Não posso precisar se foi em 1986 ou 87, mas sei que éramos cinco. No sábado, fomos 50. Já chegámos a ser mais”.
Adérito Araújo, o mentor da sardinhada mais emblemática do Bodo, conta que tudo começou “precisamente para que a malta se pudesse encontrar, numa altura quando já tínhamos ido para fora estudar”.
O professor universitário reside em Coimbra desde então, mas em 54 anos de vida jamais falhou um Bodo. “Ande lá por onde andar, naquele fim-de-semana estou sempre em Pombal. Na pior das hipóteses adiamos para o domingo, como já aconteceu”, conta, ele que agora começa a sentir-se mais no papel de comensal do que de organizador, numa altura em que os sobrinhos começam “a tomar conta daquilo”.
Adérito Araújo é o mais velho de seis irmãos, cinco deles homens. Não admira, por isso que, nos primeiros anos, a sardinhada fosse uma coisa sem qualquer igualdade de género. “Mas isso era pela simples razão de ainda não termos namoradas. Quando começámos a ter, elas acabaram por ir”. E assim, quase sem se dar conta, passaram 33 anos.
Adérito acredita que esse espírito de convívio e partilha presentes na sardinhada (“que é muito mais do que uma refeição”), em casa dos pais, ilustra bem o que sentem os pombalenses em relação ao Bodo.
“Temos poucas tradições em Pombal, é natural que nos agarremos a isto. Por isso é que o programa nem sequer nos interessa, embora não gostemos que façam de nós parvos, nesse aspecto”.
Os seis dias de festa terminaram na terçafeira, com um concerto do artista Toy que proporcionou a maior enchente nos concertos.