“Uma sala mítica”, diz Sofia Lisboa, sobre o chamado Orfeão Velho, na Rua Latino Coelho, desocupado desde 2010, onde os Silence 4, ainda em início de carreira, se apresentaram ao vivo no festival de teatro Acaso, no mesmo palco aberto para outra banda então a experimentar os primeiros passos num percurso que haveria de alcançar projecção nacional: The Gift.
O festival Acaso é organizado pela companhia de teatro O Nariz e não é o único que tem raízes no Orfeão Velho: na lista encontram-se, por exemplo, alguns dos primeiros concertos promovidos pelo núcleo fundador da Fade In, associação hoje responsável pelo festival Entremuralhas, e o primeiro festival – o Megafone – criado por Gui Garrido, actualmente director artístico do Festival A Porta.
Derradeiro inquilino do Orfeão Velho, desde meados dos anos 90 até 2010, O Nariz abre o imóvel à comunidade e entre actividades próprias e programação de terceiros estabelece uma âncora para a cultura no centro histórico da cidade, um destino onde desagua a noite de toda uma geração.
“A sala de espectáculos de Leiria era aquela casa”, sublinha Pedro Oliveira, da companhia O Nariz, com “memórias boas” de “centenas e centenas de actores que ali passaram a representar”, entre eles, Mário Viegas, José Raposo, João Lagarto ou Carmen Dolores. “Um local de criação” e “uma residência artística permanente”, que, além do teatro e das sessões de contadores de histórias, ia do rock ao jazz.
Na conversa com o JORNAL DE LEIRIA, a memória de Pedro Oliveira regressa por segundos ao auditório, “que recuperado ficava uma coisa magnífica”. Com “tudo o necessário para qualquer grupo de teatro de uma cidade média”, o Orfeão Velho era também um daqueles lugares “onde as pessoas se encontram e organizam coisas”, com potencial para um “papel-chave no desenvolvimento cultural” de Leiria. “Este tipo de movimentos, quando se perdem, dificilmente se recuperam”.
Localizado no epicentro da movida de Leiria, “se existisse hoje seria um espaço de excelência”, acredita Célia Lopes, da Fade In. “Conseguimos criar ali momentos únicos, porque era realmente muito intimista”, explica, “as pessoas tinham um contacto muito directo com as bandas porque eles tocavam e depois iam para um barzinho que ali havia e acabavam por passar a noite com o público”.
Nomes como Ashram, Xiu Xiu, Destroyer, Matt Elliot, Ataraxia, Sieben, Mazgani, Parenthetical Girls, Tony Wakeford. The Strugglers, Frog Eyes, Vermilion Sands e outros, muitos vindos do estrangeiro.
A direcção do Orfeão de Leiria cessa o acordo com O Nariz em 2010 e entrega o imóvel aos proprietários em 2014. Mas entre 1964 e a inauguração da nova sede em 1997, o edifício na Rua Latino Coelho é o coração onde pulsa toda a actividade do Orfeão de Leiria. E é lá que ocorre a fundação do ensino artístico de música, sob a orientação de Guy Stoffel. “Foi escola, foi sede do grupo de teatro, foi sede das actividades do coro, foi sede da parte associativa, porque chegou a ter bar”, recorda António Moreira de Figueiredo, que, no início dos anos 80, frequenta o edifício enquanto dirigente e membro do coro.
“Passou por ali o Miguel Torga, passou por ali o João de Freitas Branco, passou por ali o Afonso de Sousa, passou por ali também o David Mourão-Ferreira, o Coimbra Martins, muitos intelectuais”, assinala. Entre tertúlias, ensaios, aulas, espectáculos e bailes, o espaço (e a instituição) impunham-se na agenda.
Habitação ou hotelaria
Segundo João Ribeiro, filho da proprietária, Maria Alice Ribeiro, existem estudos encomendados pela família a arquitectos que colocam a hipótese de investimento para habitação ou hotelaria, preservando o aspecto exterior do imóvel. “Se houvesse uma alternativa cultural, que fosse viável economicamente para nós, tudo bem”. Com a pandemia, o processo encontra-se em stand-by.
Para Saul António Gomes, é “verosímil” e “ altamente provável” que naquele lugar, antiga judiaria, tenha existido a oficina de Samuel de Ortas, que colocou Leiria na história da tipografia em Portugal, sobretudo, devido à impressão, em 1496, do Almanach Perpetuum, de Abraão Zacuto.
“O que lá está hoje é uma construção que assenta, em princípio, numa herança medieval, de três edifícios que deram origem a um só”, adianta o historiador. Terá sido ali, também, que pernoitaram oficiais do exército inglês aquando da passagem do Duque de Wellington por Leiria, em 1808, no contexto das invasões francesas.