Acredito piamente que os livros nos escolhem. Acredito que nos observam, nos seguem, nos estudam. Acredito que há livros que se colocam no nosso caminho e nos cativam, nos atraem e nos dizem «Fica comigo!»
Acredito, mesmo, que os acasos não se dão por acaso. Dão-se porque tem de ser, como aconteceu com o Livro de que vos vou falar e que vivia numa sala forrada de prateleiras de madeira tosca. Vivia, lá, empoeirado e esquecido e completamente ignorado pelos vizinhos, obras literárias de renome.
À noite, depois de um dia de correria e azáfama, naquela casa de uma família feliz, o silêncio era quebrado pelo debitar do miolo que cada uma das obras carregava. Nesse momento, O Livro fechava-se na sua capa, protegendo-se daquele estranho mundo ao qual não o deixavam, nem queria, pertencer.
Refilavam os eruditos, enalteciam-se os snobs, protestavam os arrogantes, defendiam-se os poéticos, apaixonavam-se os românticos, lamuriavam-se os trágicos, fingiam os dramáticos, pigarreavam os didáticos, idealizavam os epistemológicos, identificavam-se os biográficos, saltitavam os aventureiros, imaginavam os fictícios, informavam os realistas, suspendiam os misteriosos, amedrontavam os terríficos, declamavam os prosódicos, todos eles tentando impor os seus géneros.
O Livro sabia por que não pertencia aqueles vis seres de papel. Jamais incluiriam no seu círculo, um livro que não sabia ler.
Um dia, O Livro afoitou-se.
«Digam-me, por acaso, sou uma Enciclopédia?» perguntou, agitando-se na prateleira numa tentativa de atrair sobre si os holofotes.
As gargalhadas soaram como o silvar de flechas lançadas, com desdém, atingindo-o, dolorosamente.
«Uma enciclopédia?» indignava-se um dos vizinhos «Onde estão os teus óculos?» ironizava «Uma enciclopédia cansa a vista e vem, sempre, acompanhada de óculos.»
«Aprende a ler ou pensas que já nascemos ensinados?» acrescentava outro.
«Posso emprestar-te um mapa!!!» zombava um Atlas «Talvez haja alguém que te queira, o que eu duvido… Nem toda a gente quer livros que não sabem ler!»
Então, O Livro não se conteve e engoliu, amargamente, uma lágrima que o insuflou.
O caos instalou-se, imediatamente, naquele bairro de papel.
«Ai, meu Deus, choraste! Para além de não saberes ler, também não sabes que um livro nunca chora! Salvem-se!» gritavam «vem aí o dilúvio!»
Então, O Livro sacudiu a capa, afastou as folhas molhadas, mediu a distância e lançou-se pelo ar caindo junto da porta dum quarto.
Ouviu uns passos pequenos.
«Pobre coitado!»
Umas mãos quentes afagaram-no.
Depois, um sorriso enorme e uns olhos brilhantes iluminaram-lhe a capa.
«Uau! Folhas novinhas! Vou já pôr-te a secar. Ah, é verdade! Ainda não sei ler, nem escrever, mas havemos de aprender juntos. Agora, só te vou desenhar e pintar»
E, pelas mãos daquela criança que O Livro, depois de muito observar, seguir e estudar, acabou por escolher, foram desenhadas as mais belas histórias numas folhas em branco que, afinal, nunca nada tinham tido para O Livro ler…
Texto escrito segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico de 1990