A patologia clínica está presente em todos os passos da medicina moderna. Em que medida se pode afirmar como uma das mais importantes especialidades?
Não tenho dúvidas de que tomamos cada vez mais relevo. A medicina modificou-se muito ao longo dos últimos anos. Há um grau de diferenciação da especialização em cada uma das áreas, mas não deixa de funcionar em equipa. A medicina passou a ser muito mais defensiva, o que significa que os meios complementares de diagnóstico e terapêutico estão presentes no dia-a-dia e mais de metade das decisões clínicas são baseadas nesses meios. O hemograma, que antigamente era uma coisa muito difícil de realizar, foi das coisas que levou maior impulso, mas é quase como o advento do carro individual, que passou a ser muito banalizado. Creio que há alguma perda de valor. Fazem-se milhares de hemogramas por ano e agora com resultados muito rápidos. Não tenho dúvidas de que vamos ter pequenas máquinas, cada vez mais complexas, à cabeceira do doente.
Como tem evoluído a patologia clínica?
Antes era muito mais manual. Nem se pensava fazer o mesmo número de análises que fazemos hoje. Era muito complexo, às vezes até de algum risco para o operador. Há uma mudança sem precedentes. A patologia clínica sempre esteve na crista da onda da nova tecnologia e continuará a estar. Não tenho dúvidas de que a patologia clínica é a especialidade mais evoluída em termos tecnológicos.
A patologia contribui para uma medicina preventiva, que fica mais barata. Por que razão se evita, muitas vezes, realizar exames complementares?
A prevenção também tem um custo. Quando se aposta num seguro, vê-se o custo e não logo o benefício directo. Como todas as áreas, tem um benefício pelo custo de investimento. Há quem diga que Portugal pode ter tido vantagem na covid por ter mantido um plano vacinal muito rigoroso, o que teve um custo. Ainda estamos um bocadinho aquém daquilo que deveria de ser a chamada prevenção e deveríamos rentabilizar melhor tudo o que temos ao nosso dispor.
Mas tratar a doença não sai mais caro?
Evoluímos para uma medicina mais personalizada. Os testes, que continuam a ser massificados e iguais para todos os utentes, também deverão caminhar para uma personalização. Com os estudos genéticos entra-se numa abordagem do doente de forma mais personalizada. Conhecer antecipadamente dá-nos sempre uma melhor possibilidade de preparar o futuro. Somos realmente os nossos genes ou podemos enganá-los? Podemos enganá-los. Se assim não fosse não tratávamos nada. Mas, há uma certa predisposição. Aliás, a patologia começa a ser entendida para além daquilo que é a causa. O património celular é muito grande e nem tudo é nosso, a começar pelos microorganismos que habitam connosco. As bactérias que estão comigo fornecem- me alguns componentes, que em determinada altura tanto podem ser benéficos como não. Agora há uma grande abrangência daquilo que é o indivíduo.
O meio ambiente consegue alterar o nosso ADN?
Se não alterasse não teríamos tumores. O meio ambiente (radiações, o que inalamos, poluição…) interfere naquilo que são as nossas características multifactoriais. A catadupa de alterações que possam surgir, uma célula que se divide… A probabilidade de acontecer um erro está presente. Também temos mecanismos que eliminam esses erros. Se sobrecarregarmos áreas locais com determinadas características é provável que haja uma determinada predisposição.
[LER_MAIS]O mundo enfrenta uma pandemia provocada por um novo coronavírus. Vamos ter de nos habituar a conviver com ele, como sucedeu com outros?
Olhamos para os números e vemos muitos mortos. As mortes por tuberculose e por gripe, se calhar, são mais, mas não estão tão divulgadas. Neste momento, o problema concreto é ser uma nova entidade para a qual ainda não desenvolvemos uma imunidade de grupo. Os sistemas de saúde estão preparados para flutuarem com as protecções das vacinas. Se tudo ficar doente ao mesmo tempo não há como dar resposta. Se tudo for ficando de forma flutuante, conseguimos acudir. Já tivemos outras pandemias e casos mais graves como o ébola. Imaginemos que o efeito do vírus era tão devastador quanto o do ébola? Teríamos uma situação muito mais grave.
Será uma doença normal?
Sem sombra de dúvidas. Ninguém pode prever durante quanto tempo, mas vai-se tornar numa doença que eventualmente fará parte do portfólio habitual de screening, como a gripe A. Os coronavírus, por norma, não se testavam. O SARS-CoV-2 pode ter sintomatologia semelhante a outros coronavírus ou bactérias e num contexto urgente há que fazer esse screening. Este coronavírus veio para ficar e quanto mais depressa se lidar com esta situação melhor. Ainda é cedo para testarmos a imunidade a nível nacional. Como contivemos muito, não há ainda uma grande imunidade grupal. Não tenho bola de cristal, mas talvez em Setembro já estejamos nesse patamar. Até lá teremos encontrado mais focos, que disseminaram em mais grupos de população. Um ficou um pouco doente, outro nem deu conta, outro ficou mais grave e, infelizmente, outro não resistiu. Mas, aquele que não resistiu, que seja porque não foi possível apesar de todo o esforço e não porque não tivemos capacidade de incorporar no sistema de saúde essas pessoas.
Seria um risco não se ter feito o confinamento?
Neste momento, já temos alguma ideia de quais seriam os grupos de maior risco. Pensando na vida das pessoas, este libertar progressivo está correcto. Libertamos a contenção e é normal haver novamente casos. A população assintomática vai poder passar [vírus] e vão aparecer mais sintomáticos e mais casos graves. Mas, a introdução da máscara vai ajudar muito.
A máscara para a população em geral precisa ser certificada?
Antes de mais, são necessárias medidas conjuntas: diminuir a proximidade, desinfecção das superfícies, lavagem das mãos e uso da máscara. Levar ao extremo a escolha da máscara só vai criar dificuldade. Mais vale tê-la bem colocada (tapar boca e nariz) e escolher os momentos. A máscara cirúrgica protege os outros de nós. Se estiver numa área onde haja doentes positivos, essa máscara não é eficiente. Se existem máscaras melhores do que outras? Sim, mas para o contacto social qualquer máscara serve.
É possível aparecer uma vacina segura em um ou dois anos? O efeito grupal é sempre melhor. Em termos de produção concreta será muito difícil ter uma vacina que seja abrangente. Provavelmente, vão surgir várias vacinas com diferentes capacidades de protecção. Uma única, que se possa generalizar, vai demorar muito tempo. As primeiras vão surgir, talvez até este ano, mas serão muito restritas. Poderão ser usadas num conjunto de população de maior risco.
São conhecidas várias mutações deste coronavírus. Isso é um problema para criar imunidade?
O organismo quando cria imunidade a um determinado agente, a resposta difere de pessoa para pessoa, mas ela é comum o suficiente para um teste conseguir identificar as respostas como comuns e válidas. O facto de geneticamente serem diferentes, não quer dizer que em termos daquilo que gera a resposta imunológica seja necessariamente diferente. Todo o património genético do vírus é utilizado pela nossa maquinaria celular para o transformar em proteínas. Esta mutação é como o vírus da gripe. Há vírus que são mais pleomórficos que outros e a sua variedade genética tem maior ou menor implicação no contacto com aquilo que é a nossa resposta imune. Haverá um anticorpo mais comum que servirá de base à nossa resposta imunológica.
Ouvimos falar da gravidade deste coronavírus como também já foi apontado como “bonzinho” pela cientista Maria Manuel Mota. Afinal, quão devemos estar preocupados?
Um ponto comum é que proporciona uma dificuldade respiratória ou uma incapacidade de fazer a função pulmonar no seu pleno. Se é pelo facto de ser mais trópico, apresentar-se mais a nível pulmonar do que noutras áreas, questiona-se. Há quem diga que tem uma actuação mais na micro- -circulação, que impede alguma vascularização de pequena dimensão, que depois, em termos fisiológicos, limita a função. Fala-se de algumas sequelas noutros órgãos. Por isso, também se mudaram as medidas de suporte nos doentes mais complicados, nomeadamente evitando os microtrombos, para que não seja uma causa adicional de outras complicações. Se é bonzinho ou não? Depende do estado de saúde da pessoa e mesmo assim não é linear. O nosso sistema imunológico tem capacidade de o debelar numa percentagem boa, o problema é saber quem consegue. Bonzinho? Comparemos com aquilo que outros causam, como a bactéria da tuberculose ou o vírus do ébola. Ser bonzinho é a mortalidade que esse vírus introduz ou as co-morbilidades que ele deixa? Ser bonzinho é relativo. Se dissermos que demora muito tempo a haver uma resposta nos casos mais complicados por aí não é bom. Se até existem pessoas que nem sequer souberam que o tiveram, ele é bonzinho. Temos de saber com o que estamos a medir. Pelo número de mortes e pelos assintomáticos é bonzinho, pelas sequelas que deixa ainda estamos para ver.
O hospital de Leiria criou um laboratório Covid-19. Como foi possível montá- lo em tão pouco tempo?
Realocamos o espaço e agora criámos uma unidade de colheitas [análises ditas normais] noutro local que será uma mais-valia para a resposta à comunidade. Vamos conseguir responder em mais horas durante o dia, avançando naquilo que é a ausência de jejum para fazer as colheitas. Criámos uma sala dedicada à Covid, verificámos todas as medidas que deveria ter. Demorámos um par de dias. Foi o tempo de virem alguns reagentes e ultimar uma parte física que tinha a ver com o controlo dos fluxos do ar. Os primeiros testes arrancaram no dia 19 de Março. Em Abril já fizemos quase 3500 testes. Fazemos cerca de 150 por dia. Este mês está a subir alguma actividade, portanto deveremos chegar aos 4000.
Como está a ser desenvolvido todo o trabalho no hospital de Leiria?
Os testes são feitos a pedido da urgência. Desde este retomar de actividade começámos a fazer testes nas cirurgias programada e de ambulatório, às grávidas, à marcação da consulta externa e hospital de dia.
É possível que algumas das pneumonias atípicas diagnosticadas em Fevereiro já fossem o novo coronavírus?
É difícil. Se assim fosse tínhamos identificado mais casos positivos quando começámos a identificar massivamente a população. Os casos devem ter sido bem identificados. Isso era uma esperança, porque se assim fosse a imunidade grupal estava adquirida.
Qual o futuro da patologia?
O sermos mais fechados será cada vez mais uma coisa do passado. A sensibilidade dos testes vai ser cada vez maior. Vamos ter à cabeceira de cada doente um mini-laboratório. O laboratório poder-se-á manter numa área confinada, porque há um grande grupo de análises que vão continuar massificadas, mas vai aparecer uma patologia de acompanhamento, com equipamentos cada vez mais sofisticados e capazes de fazer diagnósticos elementares e precisos. Onde a decisão clínica for necessária as fronteiras vão cair e vamos avançar. O futuro parece ser grandioso.