Há sempre uma dúvida que assalta o comum dos mortais: os pilotos, no Dakar, conseguem desfrutar das paisagens?
Nada. Vamos muito concentrados. Nos últimos dias, a ver os resumos diários do Eurosport, até me questionava se era aquela a corrida que tinha feito. As paisagens são fantásticas, mas a nossa corrida é feita apenas de pó, areia, pedras, dunas e céu.
Como é que treinam para o Dakar se pouco acesso têm ao carro?
Treinamos fisicamente. Como o carro pouco, a verdade é essa. Dá para fazer uma ou duas corridas antes das provas maiores, mas o desporto motorizado não tem essa questão do treinar, como um jogador de ténis, por exemplo. Não é economicamente viável. Obviamente, quantos mais quilómetros fizer mais confortável estás e mais rápido és, mas não é por andar todos os dias com o carro em Leiria que iria ser mais rápido na Arábia Saudita.
A prova não foi o que esperava.
Não, de todo, e não foi por falta de preparação do carro e da equipa. Considero que foi pouca sorte. Infelizmente, saiu-nos a fava. Coisas que fazem parte das corridas, que não conseguimos controlar. O carro foi devidamente preparado e a equipa é muito profissional, com muitas capacidades. Os problemas técnicos que aconteceram até os considero um bocadinho absurdos.
Porquê?
A caixa de velocidades era nova, de uma marca do melhor que existe. Não há histórico de situações idênticas e duas caixas novas, produzidas para este rali, a minha e a do meu colega Nani Roma, tiveram problemas, provavelmente com algum defeito de fabrico.
As avarias são depois analisadas?
No final de cada dia trabalhamos juntamente com os engenheiros para analisarmos todos os parâmetros e vamos percebendo o que poderemos ter feito mal ou que estamos a fazer bem. A verdade é que estava tudo dentro dos padrões, estávamos a fazer tudo certo e as coisas acabaram por acontecer.
Há alguma coisa que podia ter feito de forma diferente?
Em relação ao carro e à condução, não. Faria tudo exactamente igual. Fisicamente também estávamos muitíssimo bem preparados. Apesar de as etapas serem longas, sentimo-nos sempre muito bem. Mas há sempre alguns pontos, por exemplo no trabalho de mecânica, que deveríamos ter tido um bocadinho mais de tempo para estarmos rápidos a solucionar avarias. No entanto, os problemas que tivemos nunca poderíamos ser nós a resolver. De qualquer modo, se há ponto que temos de melhorar é o conhecimento mecânico.
Por falar nisso, foi fustigado por uma série inusitada de furos. Em quanto tempo consegue mudar um pneu no meio de deserto?
Medido pela telemetria, um minuto e 45. Esse foi o mais rápido. Houve outros que correram pior.
A quantidade de furos que teve foi normal?
Não é normal, mas foi normal neste Dakar. A marca com que corremos e que equipa 90% dos concorrentes desenvolveu um novo pneu, que não foi testado antes. Ou seja, tem um largo desenvolvimento tecnológico, mas as soluções para o terreno muito duro que iríamos apanhar, com pedra, não funcionou bem. Para ter uma ideia, uma das nossas adversárias, que tinha nove carros, teve 30 furos num dia. Não era só a Borgward, a Toyota ou a Mini. Houve muitos que tiveram quatro furos num só dia.
Quando percebeu que não ia chegar ao fim?
No dia da caixa de velocidades percebi que teria de sair da corrida, mas poderia usar o joker. Já não seria a mesma coisa, deixava de contar para a classificação geral, mas queria dar o melhor de mim, obter bons resultados nas etapas, treinar e acumular experiência. Infelizmente, depois do dia de descanso, em que o carro sofreu uma revisão profunda, avariou-se outra peça com defeito, desta vez de uma das marcas mais conceituadas em bombas de direcção. Foi na maior etapa, de 550 quilómetros, e a partir do quilómetros 96 ficámos sem direcção assistida. Fomos conseguindo resolver até ao quilómetros 211, mas depois foi impossível continuar. Ainda fizemos 100 quilómetros nas dunas, é um esforço que ninguém tem noção. Faltavam 350 quilómetros para o final e já não conseguimos substituir mais correias. Foi muito duro, muito difícil.
O que se pensa quando o objectivo não é cumprido?
Confesso que chorei no dia em que ficámos sem caixa de velocidades, mas até foi uma história caricata. [LER_MAIS]Partimos no lugar 132, porque tínhamos perdido muito tempo no dia anterior com os quatro furos, e digo ao meu irmão Manuel [navegador] que íamos ultrapassar 50 carros, no mínimo. Ao quilómetro 160 já tínhamos passado 35, numa especial de mais de 300 quilómetros. Íamos a contá-los, divertidos, tínhamos recuperado muitíssimo, e logo a seguir o carro pára e sentimos tudo a desabar por uma coisa que não depende de nós. Esperámos por um camião de assistência rápida, que não tinha uma caixa de velocidades, porque não havia histórico daquela peça ceder.
Quem acalma quem?
Estivemos sempre muito calmos. Há é tristeza e, mesmo que haja revolta, ela é interior. No Dakar estamos sozinhos. Não te vais zangar com a pedra, com a areia, nem com o carro. Cais na realidade, que as coisas estão a correr mal, e começas a pensar na vida. Tenho pena de não ter tirado uma foto, mas posso dizer que o sítio onde desisti é dos mais incríveis onde estive na vida. Era uma duna que tinha uns cem metros a descer, íngreme, altíssima, e uma extensão surreal. Tínhamos uma visão de 360 graus sobre o deserto da Arábia Saudita. Um vento e um frio incrível e ficamos ali parados. Passam imensas coisas pela cabeça. É uma má recordação num local fantástico.
Os outros pilotos param e perguntam o que se passa?
Depende. Se for por acidente todos param, se for por problema mecânico, do top 30 para trás, param, se pedirmos. Há pessoas que vão viver o verdadeiro espírito e esses sim, ajudam os outros.
Concorda com a regra que desconta o tempo perdido por um participante que pára com o objectivo de auxiliar alguém?
Claro. Enaltece-se na comunicação social o facto de os pilotos fazerem isso, mas, quando se vê um acidente, parar não é fair-play, é uma obrigação e vem no regulamento. Se não auxiliar, está sujeito a ser eliminado. Tem de ficar durante três minutos após o helicóptero, ou o auxílio, chegar.
Este ano ajudou alguém?
Não, graças a Deus, mas no ano passado sim. No Peru, chamei o helicóptero e aguardei. Depois, retiram-nos esse tempo.
É mais fácil ou mais difícil ter um irmão como navegador?
Para mim será mais fácil, mas para a minha mãe será mais difícil. Fiz o Dakar do ano passado com o Jorge Monteiro, um leiriense por quem nutro uma grande amizade e fizemos um excelente Dakar, mas a relação familiar torna tudo completamente diferente. Além de irmãos, somos os melhores amigos, e temos apenas ano e meio de diferença. Acredito que o Manuel está no top de navegadores a nível mundial. Já andei com alguns e é o à-vontade com que se trabalha na navegação a certeza com que diz as coisas e sobretudo, porque todos se perdem, como se resolve e a rapidez com que se resolve. Se quisesse apostar… nas tem a licenciatura e o mestrado em Engenharia Civil, trabalha em Lisboa. Acho que não é o objectivo de vida dele, mas tenho pena.
É mais fácil exceder-se com o irmão no calor da prova?
Não me lembro de ter discutido com ele dentro do carro. Todos cometemos erros. Posso destruir o carro em cinco quilómetros e ele perder-se num quilómetro, mas temos de estar tranquilos. É a nossa máxima. Sou uma pessoa muito emotiva, reajo fervorosamente, mas dentro do carro tenho o meu mindset completamente formatado. Estamos perdidos. Temos de tomar uma decisão. Paro o carro e digo: o que queres que faça? Tento ajudá-lo para que consiga perceber qual é o caminho. Se assim não for, ele começa a enervar-se, eu também, cometemos mais erros e torna-se numa bola de neve.
O Ricardo chegou a apelidar o percurso de perigoso. Foi muito diferente do que tinha experimentado no Peru?
Muito. No Peru é areia e dunas. Na Arábia Saudita existe uma variedade imensa de terreno, com pedras, pistas rápidas, dunas rápidas, dunas difíceis, dunas lentas, até neve. Por dois dias não apanhámos neve no deserto. Tem todas as condições para ser um excelente Dakar, como já foi este ano. É um país que tem um potencial económico fortíssimo, quer dar-se a conhecer ao mundo e tudo o que criaram este ano, que já foi muito bom, poderá ser ainda melhor.
A prova ficou marcada pela morte do motard Paulo Gonçalves
Estava parado com problemas de direcção, à espera da assistência numa neutralização. Tinha pouca rede, mas pelas mensagen no WhatsApp consegui perceber o que se estava a passar. Nem queria acreditar. Achei que tinha visto mal. Nunca se pensa que acontece aos nossos amigos. Era uma força da natureza, uma inspiração. Não tinha de provar nada a ninguém e esforçava-se. Ele dava sempre o melhor, apesar de não ter a moto mais competitiva. E dá vontade de questionar tudo: o Paulo mudou o motor em plena prova, dois ou três dias antes, quando poderia ter desistido. E perguntamos por que foi mudar o motor. Por que raio tinha o camião de chegar a tempo e horas com o motor. É porque tinha de ser assim.
O Dakar já reclamou algumas pessoas. A morte não vos passa pela cabeça?
Não, enquanto piloto. Sim, enquanto ser humano. Pensamos que raio de riscos desnecessários corremos na vida, mas quando colocamos o capacete isso passa. Não sei se é da adrenalina, mas é a nossa paixão, a intensidade com que vivemos as coisas, o querer dar mais. Sabemos os riscos que corremos e as motos correm um risco muito maior. É o nosso combustível para nos sentirmos válidos e a viver a vida.
O medo está presente, ainda assim?
O todo-o terreno é conduzir no desconhecido, é ir a conhecer o caminho a velocidades muito elevadas. Não diria medo. Apanhamos sustos, a seguir vamos a defender-nos mais até ganhar confiança e, quando ganhar confiança novamente, vamos voltar a assustar-nos. É sempre assim.
Quanto custa fazer um Dakar?
É um desporto caro, muito dispendioso, que só é viável com o apoio dos nossos patrocinadores, que são de Leiria, menos um. Empresas que apostam no valor de leirienses e às quais agradeço imenso as oportunidades que nos têm dado. Mas só com o suporte das próprias marcas, como a Borgward, a Toyota, ou a Mini, que estão presentes oficialmente, é possível viabilizar estes orçamentos.
Em 2021 vamos voltar a vê-lo no Dakar?
Espero que sim. Tenho de voltar. Desde o dia em que desisti que penso que o Dakar não me vai vencer. Eu e o Manuel deixámos muito bom impressão na equipa. Perceberam que não foi por nossa causa que não chegámos ao fim. Acredito que às vezes para dar um para a frente temos de dar dois para trás. Já demos os dois para trás e agora vamos dar muitos para a frente. Adquirimos experiência e estamos mais fortes.