Da localidade Fontes, onde se encontra a nascente do Lis, à Praia da Vieira, na Marinha Grande, onde este abraça o oceano, são cerca de 40 quilómetros com milhares de histórias para contar sobre a relação especial entre quem habita as margens e as águas de um curso de água que dá de beber à cidade de Leiria e faz parte da identidade local.
Da nascente até à foz, explica o autor do livro Caminhos do Lis – Da nascente até à foz, Joaquim Santos, há “uma intensa” relação com o rio, que se reflecte na criança que brinca nas águas translúcidas da nascente e em quem vive da agricultura nos Campos do Lis.
Santos, jornalista e investigador, explica que o livro surgiu da relação que, ele próprio, tem desde jovem com a cidade e com o rio. “O rio sempre fez parte do meu imaginário. Há já muitos anos que imaginava fazer este percurso e conhecer o rio todo.” Quando surgiu a oportunidade, durante dois meses, de máquina fotográfica a tiracolo e bloco de notas na mão, o autor deixou-se levar pela corrente do rio Lis.
“A nascente tem um enquadramento paisagístico deslumbrante.” Para o investigador, não há outra nascente igual, com tal beleza – “a envolvência com o monte, as águas que descem e que, depois, jorram. O rebentar da águas naquela pedra calcária”. Este é apenas o ponto de partida. Daqui para jusante muitas histórias se contam.
Quem ali vive, cuida do rio como se do jardim da sua casa se tratasse, explica Joaquim Santos. No percurso desde as Fontes até às Cortes, as crianças brincam, baloiçam-se em cordas penduradas nas árvores e atiram-se às frescas águas. Os mais velhos dividem-se entre a pesca e a agricultura. Nesta zona, o Lis quase entra dentro das habitações. A envolvência do rio é também aproveitada para fins turísticos. “A restauração, o cuidado com o rio, as casas à beira- rio. Tudo está muito bem aproveitado”, considera Joaquim Santos.
No percurso das Cortes até ao Vidigal, em São Romão, ainda dentro do concelho de Leiria, a actividade agrícola é intensa. Ao chegar à cidade, o rio “dá o seu primeiro beijo” quando se cruza com a ribeira do Sirol. Deste local, o investigador guarda as mais bonitas recordações de infância vividas enquanto residente na freguesia dos Pousos. “Tantos mergulhos naquela ribeira, descobrindo e redescobrindo o lendário Buraco da Moura.”
Passando a conhecida cascata do Lis, depois da ponte dos Caniços, encontramos o Moinho do Papel. Criado em 1411, por ordem de João I e recuperado pelo arquitecto Siza Vieira, dependia do rio tendo sido uma das primeiras fábricas de papel na Península Ibérica e, mais tarde, também moinho de grão para fazer farinha. “Actualmente, ainda existe uma moleira que produz farinha para comercializar e ali se vende pão de fabrico caseiro.”
Continuando em direcção à cidade, há outro trecho lindíssimo do rio, o Polis.Mais à frente, muito procurado pelos cidadãos de Leiria, para as suas caminhadas e actividades desportivas, está o Marachão. Entre os séculos XVIII e XX, foi “imensamente aproveitado pelas damas e pelos cavalheiros”. Contudo, o percurso que agora podemos ver, nem sempre assim foi. O rio “entrava mais dentro da cidade” e não havia os grandes muros de protecção em cimento, que há hoje.
[LER_MAIS] Foi preciso tomar medidas para “resguardar a cidade da fúria das águas”. Havia graves cheias na cidade, registandose a pior em 1902, conta o autor que, recentemente, descobriu a Empresa Recreativa da Navegação do Rio Liz. Segundo uma notícia que encontrou no jornal O Leiriense.
Em Outubro de 1855 uma cheia afectou essa empresa. O rio subiu repentinamente, “levando o pégão que sustentava a ponto do norte do passeio, e fazendo cair parte d'esta, em consequencia da rezistencia que lhe opunham algumas adufas que ainda se conservavam no rio, e que pertenciam á Enpresa da Navegação Recriativa do Liz”, lê-se.
Além disso, já em 1855, revela o investigador, a imprensa local noticiava que, na Estrada Nacional n.º1, estavam a ser construídas, entre a Batalha e Pombal, “pontes soberbas, com boas estruturas”, enquanto as, até aí, existentes sobre o Lis eram de madeira, sem qualquer segurança.
Continuando o percurso, após o Estádio Municipal, é nos campos da Estação que se dá o “beijo perfeito” do Lis com o Lena. Uma paisagem completamente diferente da original devido ao betão construído nas margens. “O Lena passa a ser Lis, numa orquestra perfeita das duas águas, transformando-se e transformando tudo à sua volta.”
Chegamos aos Campos do Lis, “um campo que alimenta muitas famílias”. Muitos são os cidadãos que dependem das águas, vivendo da agricultura. Mas nem só os leirienses usufruem dessa imensa área agrícola. “Um pouco antes da ponte que serve a estrada para Amor, vive uma senhora com mais de 90 anos e que, embora não sendo de Leiria, há várias décadas faz aí as suas rezas para curar os males humanos. Pessoas de todo o País e até do estrangeiro, ali acorrem.”
Em Monte Real, um monumento, que data de 1957, evoca as obras de defesa, enxugo e rega do vale do Lis, com uma frase de Salazar, dedicada ao rio e à sua importância. Durante o Estado Novo, o ditador deslocava-se frequentemente a Monte Real e a ele se devem “as grandes obras de vulto que toda aquela zona teve”.
Já quase a terminar a viagem, o percurso desde a vila termal até às Tercenas é, para o investigador, “deslumbrante”. “Se é belo todo o percurso do rio até Monte Real, de lá até à Praia da Vieira é lindíssimo.” Um percurso rico em fauna e flora, onde ainda se podem ver rosais, plantações intensivas de arroz” e também pastores, descreve. “Os rebanhos a beber água do rio, as garças, toda aquela envolvência é deslumbrante. Qualquer leiriense perde se não fizer este percurso.”
Porém, agora, devido ao incêndio que, nos dias 15 e 16 de Outubro deste ano, destruiu grande parte da Mata Nacional, a imagem mudou. O cenário verde, repleto de fauna e flora, que contemplava o “beijo do rio Lis com o Oceano Atlântico”, é agora um cenário de devastação monocromática. As águas chegam desamparadas. O verde transformou-se em cinzento e o som da natureza é, agora, o silêncio.
Durante os 40 quilómetros, que percorreu em dois meses, Joaquim Santos sentiu a vida do rio, presenciou a relação íntima que os cidadãos têm com o Lis. Contudo, considera que muito poderia ser feito para torná-lo, num ponto de atracção turística. Além de ser uma parte da personalidade dos leirienses, o rio Lis poderia ser o ex-líbris da região. Poderiam existir “espaços infantis e bibliotecas ou espaços de estudo à beira-rio”, de modo a envolver as crianças e os jovens com o Lis. “Vivia-se muito mais o rio se fossem criadas verdadeiras condições à beira-rio.”