Qual foi o seu papel na validação dos resultados, no recente estudo da Universidade de Oxford que deu a conhecer a dexametazona, como medicamento promissor no tratamento de pessoas infectadas por Covid-19?
Sou farmacêutica hospitalar em Ensaios Clínicos. O estudo envolveu praticamente todos os hospitais distritais e centrais do Reino Unido e os estabelecimentos de saúde recrutaram doentes para o ensaio. Estive ligada à equipa de investigação que, no Ashford and St. Peter’s Hospital Foundation Trust, estava a desenvolver o estudo. Por mim, passavam as medicações que tinham de ser fornecidas aos doentes e a escolha aleatória dos doentes que iriam receber a medicação. Este estudo foi suportado financeiramente pelo Departamento de Saúde Pública britânica, que estabeleceu que os ensaios clínicos de novas drogas terapêuticas, no combate à Covid-19, eram uma prioridade nacional.
A dexametazona, por mais promissora que seja, não é um tratamento eficaz a 100%. Segundo os resultados do estudo onde participou, este medicamente corta o risco de morte em 1/3 nos doentes nos ventiladores e, em 1/5 em quem está a ser tratado com oxigénio. Parece pouco, mas serão resultados melhores do que qualquer outra substância experimentada no tratamento da Covid-19.
Neste momento, os investigadores americanos estão com algum cepticismo quanto aos resultados, porque querem saber os detalhes do ensaio clínico. Isto porque, quando a pandemia apareceu, começou a haver algumas decisões clínicas que não eram baseadas em evidências científicas – testes ou medicamentos validados através de ensaios clínicos. Quando há um ensaio clínico, é necessário testar o medicamento, depois é preciso perceber os resultados e depois eles têm de ser escrutinados pela comunidade científica, que é o último passo que é preciso dar com a dexametazona. Apesar de a Universidade de Oxford ter comunicado que se tinha obtido estes resultados, é preciso vê-los em detalhe. Isto é, por exemplo, ver como este medicamento se comporta em grupos específicos de doentes, porque um dos efeitos secundários da dexametazona pode ser o aumento do nível glicémico e é preciso perceber como ela se relaciona com o subgrupo dos diabéticos. Isto demonstra que as decisões devem ser baseadas em factos provados e não em mitos. O que aconteceu, por exemplo, com a hidroxicloroquina foi que ela tinha efeitos práticos a nível laboratorial e extrapolou-se mundialmente a sua eficácia, apenas verificada em laboratório. Houve alguns pequenos ensaios clínicos, alguns nem sequer randomizados – atribuídos a alguns doentes ao acaso em grupos de tratamento – e foi o investigador a escolher quem eram os doentes a quem seria ministrada a substância. E, depois, houve algumas politiquices que a tornaram como medicamento mencionado em muitas orientações terapêuticas em vários países. O ensaio realizado no Reino Unido à hidroxicloroquina contou com mais de dois mil doentes tratados com esse medicamento, comparativamente a três mil que não o tomaram, isso permitiu que, ao fim de dois meses, se conseguissem resultados e se tivesse percebido que a substância não oferecia qualquer vantagem no tratamento dos doentes Covid.
Uma profissional realizada
Rita Pereira nasceu em Leiria, cidade onde fez os estudos, mas ao fim do dia, regressava para o lar no Reguengo do Fètal, Batalha. Frequentou a Escola Secundária Francisco Rodrigues Lobo e, depois, licenciou-se em Ciências Farmacêuticas, na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa. Do seu currículo, consta uma passagem pela Farmácia de Oficina e outra pela indústria farmacêutica. Fez consultoria em Gestão da Qualidade e verificação das normas ISO, para entidades na área da Saúde. Em 2013, porque o marido estava a trabalhar no Reino Unido durante a semana e regressava a Leiria aos fins-de-semana, resolveu mudar a família para Ascott, junto a Windsor, em Inglaterra. Deixou o emprego e embarcou numa aventura em família. “A nível profissional, decidi enveredar por uma área diferente que nunca tinha experimentado em Portugal. Quando me relacionei com o campo de Farmácia Hospitalar surgiu-me a oportunidade de trabalhar em Ensaios Clínicos e agarrei-a. Neste momento, sinto-me completamente realizada.”
Alargar os ensaios clínicos de novos tratamentos ao país inteiro é algo que Portugal também poderia fazer? É a minha opinião, mas é a de alguém que não conhece em detalhe a realidade portuguesa.
A comparação com o que vivo aqui faz-me ter pena que não possamos fazer o mesmo. Aqui, a maior parte da investigação de medicamentos e novas técnicas é feita a par com o Serviço Nacional de Saúde. Até as coisas simples como perceber qual a inclinação da cama dos doentes em risco de pneumonia por aspiração – quando os doentes estão deitados e são alimentados correm o risco de desenvolver essa condição. É uma cultura de medicina e terapias baseadas em evidências, que foi definida como sendo prioridade nacional. Aqui a investigação é uma prioridade e trabalha ao lado do SNS, onde estão doentes de todos os tipos e todos os géneros. Outra coisa que aqui é feita e que tenho pena de que em Portugal seja mais complicado, é a forma como o ensaio clínico é aprovado e posto em prática. É muito mais célere. A cultura relacionada com a investigação em saúde sente-se ao nível mais básico de um hospital distrital do Reino Unido.
Até agora, Portugal teve comparativamente poucos casos de Covid-19 e poucos óbitos, e, talvez por isso, muitas pessoas desvalorizam a doença. Mas, o Reino Unido, tal como a Espanha e a Itália, não teve tanta sorte. Como foi viver aí esta pandemia?
Estar na linha da frente tem sido uma experiência muito motivadora. Apesar de terem existido algumas indecisões políticas no início, referentes ao confinamento que foi decretado tarde de mais. A primeira opção foi a de tentar seguir um caminho parecido com o da Suécia, com uma liberalização maior dos movimentos das pessoas e um apelo à consciência individual em vez de medidas obrigatórias. Depois, houve um volte-face e tivemos um confinamento obrigatório, com regras rígidas. Não senti muito esse período porque deixava a família fechada em casa e continuei a trabalhar. No ambiente hospitalar, houve alguns problemas que foram comuns a quase todos os países afectados na Europa. Houve uma reorganização completa dos hospitais, com duplicação de capacidade de cuidados intensivos em menos de 48 horas. Com receio de que os hospitais ficassem sobrecarregados, construiu-se o hospital de campanha Nightingale que ficou praticamente pronto em duas semanas, com capacidade para 500 doentes ventilados e que nunca chegou a ter mais do que 40, mas não deixou de ser uma segurança. Houve falta de equipamento de protecção, tal como aconteceu em Itália, [LER_MAIS]França, Espanha e Portugal, e as regras eram relaxadas. Só havia equipamentos completos em procedimentos geradores de aerossóis com doentes positivos. Por vezes, nas Urgências não havia máscaras ou os equipamentos de protecção eram reduzidos, mas as coisas melhoraram e à medida que os abastecimentos foram melhorando, também as regras foram mudando. Antes, se se fosse apanhado a andar no corredor com uma máscara, tínhamos de preencher um grande questionário sobre a razão, agora há a obrigatoriedade de todos utilizarem máscara em todos os locais do hospital. Parece-me que a obrigatoriedade de usar máscara não foi baseada em factos científicos, mas nos stocks.
Em Portugal, muitos recolheram a casa antes ainda das medidas do Governo. E no Reino Unido? A indefinição política fez as medidas demorarem mais tempo?
Acredito que sim. Houve movimentos a pressionar o governo para fechar as escolas, mas só se ficou em casa após ter sido decretado. A maior parte das pessoas seguiu as regras de confinamento e senti que vivíamos num grande Big Brother. Toda a gente espiava toda a gente, para ver se estavam a cumprir as regras de confinamento. Houve vários episódios, quase cómicos, com alguns políticos a dizerem na televisão que tínhamos de ficar em casa e depois fizeram o contrário. Houve uma polémica com um dos conselheiros do primeiro-ministro que viajou para o norte do país, quando as viagens estavam proibidas. Ainda temos restrições de número de pessoas em reunião – seis pessoas, com dois metros de distância e na rua -, onde podemos reunir. Dentro de casa, não são permitidos ajuntamentos. Outra coisa que aqui foi tratada de maneira diferente do que em Portugal, foram os exames escolares. Em Março, o Ministério da Educação cancelou todos os exames. Significa que quem se preparava para ingressar no ensino superior não sabe como as notas vão ser atribuídas.
Por cá, os números não param de subir. Será que, por não termos sido tão afectados quanto outros países, os portugueses desvalorizam e insistem em comportamentos de risco?
Por vezes, brinco e digo que quase parece que são duas doenças diferentes. Tanto se pode ter uma infecção pelo coronavirus e ter uma evolução positiva e sintomas moderados, como pode ser uma forma mais grave. Estamos a fazer um mapeamento do material genético dos doentes, para perceber por que razão um determinado grupo da população tem agravamento de sintomas. A determinado momento, deixa de ser a infecção pelo coronavírus a criar problemas, para passar a ser a resposta do organismo. Por exemplo, a nível da coagulação do sangue, as pessoas têm um risco mais agravado de trombos, embolias pulmonares, tromboflebites ou AVC. O organismo reage ao coronavírus de forma descontrolada e é essa resposta avassaladora que causa o agravamento da saúde dos doentes, devido a esta avalanche de inflamação, que o sistema imunitário tenta combater. É uma situação assustadora. E não sabemos por que razão ela se torna mais grave em determinados grupos de pessoas, por isso, todos temos de nos precaver para o risco. Além da dexametazona, há outros medicamentos em estudo, cujos resultados ainda não foram publicados. Alguns deles, refreiam a resposta imunitária, porque é ela que, muitas vezes, causa dano ao organismo e há resultados promissores. A diferença entre terapias com anticorpos monoclonais é que a dexametazona é barata e existe em todo o lado. Essas outras terapias têm o mesmo problema de uma vacina: têm de ser produzidas em grande escala e são de alto custo, sendo que nem todos os Estados podem adquiri-los.
Sendo que existem duas formas da doença, uma mais grave e uma mais leve, quem age como se ela fosse só “uma gripezinha”, está a jogar à roleta russa?
Tem-se debatido muito a diferença de incidência em diversos grupos sociais ou étnicos. Em pessoas negras e asiáticas, a incidência é muito maior. Quando se tentou perceber as razões, concluiu-se que algumas destas pessoas têm culturas e formas de viver diferentes de uma família europeia. É normal haver várias gerações a viver na mesma casa, o que traz consequências na transmissão porque sabemos que a idade é um risco adicional. Também se percebeu que a mensagem sobre a doença, cuidados a ter, consequências e apelo à responsabilidade pessoal não tinha sido bem transmitida a determinados grupos. Isto é sempre um balanço entre comportamento pessoal e a informação que a pessoa teve. Para se fazer uma decisão informada, é preciso ter acesso aos dados e aos factos. No Reino Unido, estamos na fase de tentar perceber o que se pode fazer, sem que os números da infecção não cresçam muito e que a economia comece a avançar. As regras de distanciamento físico e a máscara, usada correctamente, podem contribuir bastante para que possamos aligeirar as regras e colocar a economia em movimento. Temos de ir buscar algumas coisas ao modelo sueco, nomeadamente, não impor regras porque as pessoas têm de ter consciência individual. Se há 100 pessoas numa festa e o espaço é pequeno, não conseguirão manter a distância física. Nos espectáculos… ou seja, ter o Coliseu dos Recreios com metade da capacidade é o mesmo que se faz no trabalho de escritório, onde também há dias de trabalho alternados, com teletrabalho e com rotas que indicam onde nos vamos sentar. Terá de haver uma mudança nas interacções sociais, no trabalho, nas manifestações culturais e nos espectáculos, durante algum tempo.