Esta e outras unidades industriais da região fabricaram centenas de brinquedos. Mas sabia que a história da Botilde teve origem na Farinha Amparo?
Entre 1982 e 1984, a fábrica Plásticos Edmar, de Leiria, actual Planeta Plásticos, contribuiu para levar sorrisos às crianças portuguesas ao produzir milhares de Botas Botilde. A par da popularidade do concurso 1 2 3 da RTP, a mascote, uma bota velha de redondos óculos e sola rota, que servia como boca, era usada em porta-chaves e como parte de um brinquedo que consistia num aro por onde se enfiava o tornozelo, ligado por uma vara de plástico a uma Botilde, também de plástico.
O conjunto permitia saltar ao mesmo tempo que se rodava o brinquedo à volta do corpo. O objectivo era fazer o máximo número de saltos, sem bater na bota ou na vara de plástico. Enquanto a febre do 1 2 3 durou, os recreios de norte a sul do País encheram-se de campeões do novo desporto.
Depois disso, a Botilde ficou esquecida no fundo do baú colectivo da memória das crianças do início dos anos 80. Na semana passada, o Museu de Leiria lançou um repto online, em busca de uma Bota Botilde para a sua colecção de brinquedos de plástico produzidos na região.
Espanhóis responderam ao apelo de Leiria
Assim que o Museu de Leiria comunicou online que procurava uma Botilde, os serviços do espaço cultural obtiveram a resposta imediata de duas dezenas pessoas, dispostas a emprestar as que guardavam em casa.
Houve ainda quem contribuísse com informações e memórias pessoais relacionadas com a produção do artigo e com o seu uso lúdico. Foram até registadas propostas de Espanha, onde a bota surgiu em primeiro lugar.
Os serviços atribuem a resposta, por um lado à “nostalgia da infância” e, por outro, ao orgulho com que muitas pessoas, ligadas à produção da bota, falaram dos vários processos do fabrico.
Afinal, o famoso brinquedo tinha o dedo de Leiria e vamos poder ver a bota, juntamente com centenas de outros produtos em plástico e que são parte da história do século XX, em exposição a partir de 6 de Abril, na mostra PlastiCidade – Uma História do Plástico em Portugal.
As respostas de orgulhosos proprietários de botas não se fizeram esperar. O mais curioso, porém, é que a história da Botilde começou com outro produto famoso, a Farinha Amparo. A expressão popular, semi-insulto, “saiu-te a carta na Farinha Amparo!” serve, ainda hoje, para atirar a quem dá sinais de, na estrada, não ser um às do volante. É quase um sinónimo de se ter sido bafejado pela sorte sem se saber bem nem como nem porquê. Mas como surgiu a expressão?
Esta história também tem um dedo de Leiria e dos seus empreendedores. A Farinha Amparo foi comercializada até à década 80 e era popular pelos brindes que se encontravam no interior da embalagem; pequenos brinquedos que poderiam ser cartões de futebol, índios e cowboys, cães, ursos e outras pequenas figuras em plástico.
“Criei a Edmar a 1 de Junho de 1956 e a primeira coisa que produzimos foi um brinquedo para a Farinha Amparo”, recorda o fundador da Plásticos Edmar, Eduardo Maria Augusto da Silva, que emprestou parte do seu nome à marca.
A Botilde foi apenas um das centenas de produtos, entre botas, artigos em melamina e plástico, que viram a luz do dia a partir de quatro sectores de produção da empresa, mas, no início da actividade, os brinquedos eram um dos principais sustentos da Edmar.
“Pediam-me que lhes ‘arranjasse’ uma Botilde”
Os colaboradores dos anos 80 na Edmar recordam com carinho a bota rota e de ar cansado que era um dos prémios finais do concurso 1 2 3 e que ninguém queria. Por motivos óbvios, o que todos os participantes desejavam era o carro novo.
Os mais azarados levavam, para casa, a Botilde, camiões de areia e automóveis… tirados do ferro-velho. Carlos Castaño foi chefe de produção na Plásticos Edmar e recorda bem a azáfama dos tempos em que se fabricavam as Botildes.
“A popularidade era tal que, quem sabia que eu era chefe de produção, pedia-me que ‘arranjasse’ uma Botilde, mas era-me interdito vender ou sequer doar um exemplar do brinquedo”, conta.
Os filhos de Castaño brincaram com o popular brinquedo, mas o chefe de produção da Edmar teve de o comprar numa loja, como qualquer outra pessoa. “Acredito que toda a gente da fábrica experimentou uma Bota Botilde”, conta e adianta que era motivo de orgulho participar naquele projecto tão popular.
“Admito que me sentia orgulhoso pela popularidade e por ver o nosso produto em todo o lado”, recorda o antigo proprietário Eduardo Maria, adiantando que não sabe precisar se os números de produção foram de milhares ou se chegaram aos milhões.
“Muitos amigos pediam-me Botildes, mas, devido ao contrato com o Carlos Cruz, não podia oferecer-lhes nenhuma.”
Leiria no caminho da Botilde
O concurso televisivo 1 2 3 teve início em Espanha e o apresentador Carlos Cruz conseguiu que a RTP, à época único operador televisivo em Portugal, com apenas dois canais, comprasse os direitos para Portugal.
O programa passou a ser transmitido nos serões de sábado, reunindo as famílias em torno da televisão. Nele foram lançados vários artistas que se tornaram celebridades como Carlos Cunha – no papel de Zé da Viúva -, Marina Mota, esposa de Cunha, na época, e que protagonizava no concurso a mulher do Zé da Viúva, o Fininho (Carlos Miguel) e Fernando Mendes.
O País parava para assistir e para saber se os concorrentes conseguiam, na final, levar para casa um carro, o prémio mais cobiçado… ou o dinheiro, em vários maços de notas de cinco contos.
Mas como foi que a produção da primeira e popular mascote do programa, a Bota Botilde, foi parar a Leiria? “A minha filha, Lina Maria, conheceu o Carlos Cruz em Lisboa e ele sabia que tínhamos a fábrica Plásticos Edmar e perguntou se estaríamos interessados em produzi-la”, recorda o empresário.
Após o pico de popularidade e ainda durante o percurso televisivo do concurso, a Botilde vestiu as pantufas e foi reformada, tendo sido substituída pelo Zé Sempre em Pé, uma mascote que jamais alcançou a mesma popularidade, obrigando ao regresso da popular bota míope e de sola rota.
Brinquedo foi uma das alavancas da indústria dos plásticos
[LER_MAIS] “A região produzia muitíssimos brinquedos, aliás, esta área foi uma das principais alavancas da indústria transformadora de plásticos, que remonta à década de 1930.
Muitos destes brinquedos foram alvo de recolha e encontram-se expostos no Museu do Brinquedo Português, em Ponte de Lima”, explica o vereador da Cultura de Leiria, Gonçalo Lopes.
Entre os brinquedos de criação própria da Edmar, Carlos Castaño recorda ter brincado há 66 anos, na escola primária, com uma reprodução de um pequeno avião com linhas semelhantes ao do caça norte-americano F16, que só entraria em serviço em 1973. Terá sido um exercício divinatório do sector de produção da unidade industrial?
Também cubos mágicos, peças do jogo de “futebol de berlinde” Subbuteo, aviões, motorizadas, mealheiros e até ovos de Páscoa saíram, durante anos, das linhas de produção da Edmar, para as mãos das crianças.
“O Museu do Brinquedo de Ponte de Lima contactou-me há tempos em busca de brinquedos da Edmar, mas, rapidamente, descobrimos que eles tinham uma colecção melhor do que a minha!”, conta, a meio de uma gargalhada, Eduardo Maria Augusto da Silva.
Segundo o vereador da Cultura, pelo menos a Tecnoplás, Carfi e a Plásticos Lena – a última, associada à produção da Bota Botilde, em formato porta-chaves – estiveram também envolvidas na produção de brinquedos nos último quartel do século XX, em Leiria.
“A informação é muito recente, pelo que ainda não averiguámos com certeza quais os canais exactos de produção e o papel de cada fábrica na mesma, mas a ideia de subcontratação parece plausível. O que parece claro é que existiu uma sinergia por parte das empresas da região nesta construção, conta.”