Foi uma semana agitada para o Sá Carneiro. Há quem acredite que o fundador do PPD/PSD, antigo primeiro-ministro e eterno alvo de comissões de inquérito para saber se foi vítima de acidente de avião ou atentado, deu umas voltas no seu eterno descanso, ao ouvir esta semana Pedro Passos Coelho, actual líder do partido que ergueu, proferir um discurso, que muitos consideraram, xenófobo e racista, ao manifestar-se contra a nova lei da atribuição da nacionalidade portuguesa no discurso do Pontal.
São, provavelmente, os mesmos crentes em que a integração de vários credos, etnias ou raças devem ser celebrados em festa. Foi também por isso, que o outro Sá Carneiro, o bairro, este bem vivo, se agitou.
Sim, numa época em que parecemos estar a voltar atrás nas conquistas que pensávamos inquestionáveis como sociedade, em que os defensores da supremacia branca (ou de qualquer outra) saem cada vez mais das suas cavernas pelo mundo, o Saka, como é carinhosamente tratado pelos moradores, preparou uma chapada de luva branca em mão negra e engalanou-se para a 5.ª Edição da Festa Africana.
No passado fim-de-semana, nos Marrazes, os tachos dançaram, as ancas foram com tudo, a kizomba disse presente, o funaná apertou na pista, os vestidos de cores vivas desfilaram e a cor da pele dissipou-se alegremente numa festa que se pretende para todos. Se não foram, deviam ter ido, mas não se preocupem, “para o ano há mais”, diz a organização.
O bairro, que foi construído no início dos anos 80 para albergar os retornados das antigas colónias, maioritariamente angolanos, que numa primeira fase do regresso a Portugal haviam vivido no RA4, sempre foi estigmatizado, como provavelmente todos os bairros sociais do País.
Diz que é uma coisa humana e portuguesa, estranhar o que não se conhece. Olhado de lado pela cidade, temido e a diabolizado por muitos, chegou a hora de provar mais uma vez que La Palisse era uma pessoa de valor: “Aqui, como em todo o lado, há pessoas boas e pessoas más”. Esta afirmação pode ser atribuída a qualquer pessoa com quem falei, e já agora, a mim também.
Por isso, para além das motivações clássicas de qualquer festa, como reencontrar velhos e fazer novos amigos, fomentar o sentimento de comunidade, ou simplesmente beber umas imperiais e ir dançar como se consegue e sabe na pista de dança, este ano a festa teve propósitos ainda mais dignos e filantrópicos.
“Festa é bom, mas não chega, não resolve problemas, por isso nesta edição, com a criação da associação de moradores do bairro Sá Carneiro, o objectivo passa por angariar fundos para a construção de uma sede e a criação de actividades que ocupem, divirtam e cuidem dos idosos e das crianças de cá”.
Quem o diz é o Bocas, que no cartão do cidadão se chama Luís Gomes mas diz que ninguém o sabe, morador há 33 dos seus 37 anos, envolvido na organização do evento e na associação que conta com um ano de vida e vontade de fazer e crescer.
Também diz que “são precisos mais homens na associação”, porque dos 15 elementos, 12 são mulheres e “para carregar coisas pesadas ou fazer força isso não é bom”. Bocas, eu até ajudava, mas isto já está montado, parece-me tudo muito bem montado, só ia atrapalhar…
Conhecer o povo pela gastronomia
[LER_MAIS] Vamos lá começar a festa então, que isto de salvar o mundo enquanto se lambem os dedos do petisco, varre o bigode da espuma da imperial e se dança ritmos tramados para o esqueleto é uma maneira tão válida como outra qualquer de salvar esta chafarica chamada Terra.
Cozinha, aqui vou eu. O menu incluía Cachupa e Moamba, claro, o cardápio tinha outros pratos, e eu li, mas vamos dizer que nem sequer li, que isto de ser jornalista pressupõem provar a tipicidade da coisa, e não há melhor maneira, para conhecer um povo, do que provando a sua gastronomia, como algum chefe famoso já deve ter dito.
Dirigi-me a uma das cozinheiras, fiz o meu melhor sorriso e disse: “venha daí uma de Cachupa e outra de Moamba, e no fim, quero as receitas, pode ser?” “Claro que sim” respondeu a senhora simpática vestida de um largo sorriso, e túnica de padrões fortes e coloridos, tudo típico da indumentária Africana.
Andei por ali no meio de uma dança entre panelas, mulheres de colher na mão e o salivar de clientes de senha em riste, a pensar que devia escrever que estas eram as fragâncias do sabor a África, mas sei lá eu a que é que sabe África.
A Moamba chegou primeiro, o prato angolano, apresentou-se para mim, que sou um menino da cidade pouco entendido em comida do mundo, como um frango que passou algum tempo numa panela com molho de tomate e especiarias, que não imagino quais sejam, acompanhado de um puré com uma consistência para a qual já tinha sido avisado mas não estava preparado.
Era ali entre uma plasticina para comer e um puré de ontem, mas, ultrapassando a consistência, é coisa boa, pareceu-me ser feito de algum tipo de farinha que a receita me vai ter de esclarecer.
Seguiu-se a Cachupa, Miss Gastronomia de Cabo Verde, à primeira vista é uma feijoada com milho, e à segunda também. No confronto, ganhou a Cachupa.
Foi com o intuito de conhecer a gastronomia e as tradições africanas que Inês Carvalho, vizinha do bairro há 20 anos se deslocou à festa, ficou “mais fã da festa do que da gastronomia” diz com um sorriso e alguma pena. Não se preocupe Inês, eu também.
Em relação aos vizinhos, nada a dizer, são pessoas “integradas na sociedade, como nós, a fazerem pela vida, com os quais eu nunca tive problemas”. Partilha da ideia que a festa africana do Saka é uma boa ideia para acabar de vez com o mito de bairro problemático e que o “momento alto foi o desfile de moda”.
As meninas e os meninos, pese embora o nervoso miudinho de irem desfilar para os amigos e vizinhos deram show na passerelle, caminharam sorridentes entre os aplausos, os sorrisos e os incentivos do género “És boa”, “Gata linda” e outros que também me apeteceu verbalizar mas que não pude, porque estava em trabalho e porque sou tímido.
Arrancou o baile, juntaram-se os pares, rolou a festa e os corpos começaram a mover-se, daquela forma muito africana, de ritmo quente e gingã que o meu corpo não está preparado para aguentar.
Fui à barraca da cerveja, para a despedida, bebi três servidas pelo algarvio, contou-me que visita o bairro há 20 anos porque a irmã casou cá, que veio “para estar cá um ano por causa do trabalho e que, como casou com uma moradora e gosta de cá andar, não conta voltar mais ao Algarve”.
Se eu morasse num bairro, onde conhecesse toda a gente, com uma escola em construção, com um parque infantil enorme e onde os miúdos podem andar à solta e em segurança se calhar também não me apetecia de lá sair. Fiquei sem saber o resultado do habitual solteiros contra casados… não, não estou a falar do SCP contra o Steaua de Bucareste, esse ficou empatado a zero.
E, pior que isso, fiquei sem saber o segredo das receitas. Podem ir à internet que elas devem lá andar, mas não é a mesma coisa. É um pouco como a festa africana do Saka, podem ler muita coisa mas não há nada como ir vivê-la. Para o ano maior e já com o espaço para a associação poder fazer o bem. Agora vou ali ver uns tutoriais sobre dançar kizomba porque para o ano quero dar show.