Qual a palavra que melhor descreve o que se está a passar no hospital?
Corrida… Estamos numa corrida contra o tempo pandémico, no sentido de ganharmos algum avanço face à evolução epidemeológica. A situação é muito grave. Neste momento [sexta- feira, dia 22] temos 206 camas afectas a doentes Covid. O primeiro passo do nosso plano estratégico passou por, face à estrutura física do hospital, definir de uma torre Covid e outra não Covid. Felizmente, o Hospital de Santo André tem esse desenho arquitectónico, que nos permite fazer uma separação adequada entre a área onde estão os doentes covid e o espaço onde se encontram os restantes. Neste momento, a torre nascente está afecta à Covid. Aí, temos dez camas de cuidados intensivos só para doentes Covid e as restantes em enfermaria. Junto ao Serviço de Urgência, criámos, inclusive, uma UCAP [Unidade de Cuidados Agudos Polivalente] com 20 camas. Fomos também forçados a integrar o hospital de Alcobaça neste combate. Nunca esteve nas nossas intenções, mas a evolução pandémica obrigou a afectar também parte da unidade de Alcobaça [Serviço de Medicina Intenta] a doentes Covid.
Desde Novembro, o CHL duplicou o número de camas para doentes Covid. Ainda há margem para aumentar essa capacidade, atendendo a que esse crescimento tem de ser acompanhado de recursos humanos?
A nossa porta está aberta 24 sobre 24 horas e servimos uma área com cerca de 400 mil habitantes. Logo, não podemos estabelecer um tecto, até porque todos os hospitais à nossa volta estão com os mesmos problemas. O funcionamento em rede nestas circunstâncias é difícil. Há poucas camas disponíveis para transferirmos doentes. Mesmo assim, já temos doentes Covid-19 numa estrutura na Marinha Grande [Santa Casa da Misericórdia], onde se encontram 13 pacientes, ao abrigo de um protocolo, que prevê a utilização de camas de nível I (enfermaria) para doentes sem alta clínica oriundos do CHL, que são geridas pela Unidade de Hospitalização Domiciliária, de forma a libertar camas para os doentes mais críticos. Conseguimos agora um acordo semelhante com uma estrutura em Porto de Mós e temos necessidade de recorrer a outras unidades fora do hospital, dos sectores social e privado, para nos receberem doentes não Covid.
É médico há 40 anos. Alguma vez, viu os hospitais numa situação semelhante?
Não. O que estamos a viver nos hospitais não tem comparação com nenhum outro tempo. É uma experiência que espero única, embora a probabilidade de que não venhamos a ter outras pandemia seja muito baixa. Em 40 anos de medicina, nunca fui confrontando com nada igual, nem sequer parecido.
Os profissionais de saúde têm mostrado que podem fazer sempre mais um pouco. Mas há limite. Estamos perto de o atingir?
Na corrida contra o tempo pandémico, umas vezes a pandemia vai à frente e nós temos de recuperar o atraso, outras conseguimos estar um passo à frente. Nas últimas semanas, no CHL conseguimos ir dando passos à frente e, até agora, nunca tivemos nada tão catastrófico como vimos noutros hospitais, com filas de ambulâncias para os serviços de urgência ou doentes a serem atendidos nas ambulâncias. [LER_MAIS]ão tivemos nenhuma situação dessas também porque, felizmente, conseguimos preparar-nos de forma a estarmos um pouco à frente da pandemia.
Como é que conseguiram?
Não tenhamos ilusões. A pandemia é tão trágica aqui como noutro lado qualquer. Basta ver que temos 206 camas alocadas à área Covid. Isto quer dizer que 30% da totalidade das camas do CHL está afecta à Covid. Temos 15 doentes ventilados, invasivamente e mais dez em ventilação não invasiva. É uma situação de uma enorme intensidade. Conseguimos fazer um ADRSU [Área Dedicada a Doentes com suspeita de Infecção Respiratória nos Serviços de Urgência], que ficou pronto no preciso momento em que se começou a sentir o crescimento acentuado de novos casos. Este ADR-SU tem 900 metros quadrados e duas grandes zonas de concentração de doentes. Ficámos com uma capacidade de resposta que nos deu alguma folga. Estamos a recrutar camas onde podemos dentro da estrutura hospitalar, mas já é complicado fazê-lo, porque tal significa, forçosamente, limitar as outras actividades. Neste momento, isso ainda não é muito expressivo, mas tememos que o recuo das restantes actividades venha a ser bastante significativo.
E os recursos humanos para operar essas camas? Onde os têm recrutado?
Em relação aos recursos humanos temos ido buscar médicos, enfermeiros e assistentes operacionais a todas as especialidades. Todas as áreas estão a dar o seu contributo, incluindo os directores e serviços que habitualmente não têm actividade assistencial nem enfermaria, como a dermatologia ou endocrinologia. Também as áreas das cirurgias e da ortopedia estão a disponibilizar profissionais, nomeadamente médicos, para este combate. O hospital tem ido buscar recursos a todas as especialidades, conseguindo manter o resto actividade ainda em grande número. No entanto, tememos que, com o decurso da pandemia, sejamos obrigados a parar muita da actividade não Covid.
Como está essa actividade não Covid?
A urgente, a emergente, a prioritária e aquela que possa acarretar risco de perda de órgãos ainda está toda assegurada. Frisámos muito bem essa necessidade e, enquanto não formos forçados a isso, não abdicámos de conseguir dar uma resposta capaz a essas áreas. Estamos a suspender a actividade programada que possa ser atrasada três ou quatro semanas. É isso que está definido no nosso plano estratégico, mas tudo depende da evolução da pandemia. Confiamos que as novas medidas de confinamento, apesar de hesitantes, possam começar a ter algum efeito dentro de semana ou duas semanas que se reflicta em alguma descida da procura.
Além de “hesitantes”, houve medidas tardias como o encerramento escolas?
A questão de manter ou não as escolas a funcionar têm dois lados da medalha. Um deles, aquele que directamente vamos sentir no imediato, é que há muitos profissionais de saúde casados com outras pessoas também deste sector. Não sabemos ainda quantos iremos perder para que possam ficar a tomar conta dos filhos em casa. Isto, associado aos profissionais que estão em isolamento ou que testaram positivo à Covid, é um problema para nós. Neste momento, temos quase 100 colaboradores em isolamento ou positivos. A perda de mais uns quantos para dar assistência aos filhos é um stress adicional. Por outro lado, não há dúvida de que, sem a paragem das escolas, o confinamento seria sempre menos eficaz. Ter os estabelecimentos de ensino em funcionamento significa ter mais pessoas na rua. Pelos números que vi, são cerca de 4,5 milhões de portugueses em movimento. Com as escolas abertas, o confinamento seria curto.
Neste momento, qual é o seu maior receio, como médico e como director clínico?
O meu maior receio é não ter capacidade de resposta. É que chegue um dia em que já não sou capaz de responder às pessoas que procuram o hospital para serem tratadas ou avaliadas. Este é, de longe, o meu maior medo. O de não ser capaz de dar resposta, por não ter meios. O ter de escolher entre quem salvar… Esse é o contraste maior. No entanto, mesmo em doentes não tão graves, podemos chegar a um ponto em que a avalanche seja de tal modo grande que nem a esses consigamos acudir. Se chegarmos a 17, 18 ou 20 mil casos por dia, penso que não teremos capacidade de resposta, nomeadamente ao nível dos cuidados intensivos. Num cenário desses, vamos ter sérias dificuldades em responder mesmo até ao nível mais baixo de cuidados.
Que apelo faz às pessoas para que não se chegue a esse ponto?
Continuamos a ter, quer na urgência geral, quer na urgência dedicada a doentes respiratórios, um elevado número de pessoas com pulseira verde ou azul, ou seja, casos de menor gravidade. O que se pede é que essas pessoas se dirijam aos centros de saúde, outra grande resposta que pode ser dada nesta fase. Os cuidados primários devem ter uma resposta adequada a um tempo de pandémico como aquele que estamos a viver. O hospital tem uma porta muito pequenina para conseguir dar resposta a 400 mil habitantes, a não ser que todas as outras estruturas de saúde, nomeadamente os cuidados primários, nos façam uma contenção dos doentes que não precisam de cuidados hospitalares. Ora, se essa contenção não é feita, se a Saúde 24 continuar a mandar quase todos os doentes para o hospital, não vamos ter capacidade. Nós contamos connosco, mas também gostávamos de poder contar com os cuidados primários e com todas as outras estruturas de saúde, quer sociais, quer privadas. Nestes últimos casos, sobretudo para os doentes não Covid, mas, se necessário, também para os doentes Covid.
Dados da Direcção-Geral da Saúde indicam que mais de 30% dos doentes em cuidados intensivos têm menos de 60 anos. Está a cair a ideia de que esta é uma doença sobretudo dos mais velhos?
Na nossa região, temos uma elevada concentração de lares de terceira idade, até pela situação de Fátima, onde existe um grande número de instituições do género. Estimamos que, nesta região, os lares legais – não sabemos os outros – disponibilizem cerca de seis mil camas. É um stress adicional porque, quando vêem ao hospital, normalmente essas pessoas têm de ser internadas por terem muitas comorbilidades, associadas à idade. Em idades mais avançadas, o SARSCoV- 2 entra não só pela idade, mas também pelas comorbilidades. Aí, a mortalidade é forçosamente mais elevada do que em grupos etários mais baixos. Neste momento [dia 22 de Janeiro], temos nos cuidados intensivos um doente com 32 anos, uma doente com 43 anos e vários entre os 50 e os 60 anos. Esta segunda vaga da pandemia baixou bastante a faixa etária dos casos graves.
Há mais jovens a chegar ao hospital infectados com Covid-19 com sintomatologia grave?
A maioria dos doentes Covid que nos chegam a necessitar de cuidados hospitalares estão nos grupos etários dos 70, 80 e mais anos, mas há mais pessoas de grupos etários que até aqui não eram tão visíveis.
Fazendo uma retrospectiva dos últimos meses, como é que chegamos a este ponto? Como passamos de país exemplar no combate à primeira vaga ao pior do mundo no número de casos por um milhão de habitantes?
Há o efeito do relaxamento que se sentiu na fase final da Primavera e no Verão, com o bom resultado que tivemos. Por outro lado, houve da parte económica uma extrema pressão sobre os decisores políticos para o alívio das restrições. Estes dois factores conjugados fizeram com que as medidas de restrição fossem hesitantes. Tivemos uma marcha um pouco titubeante no confinamento, não sei se por má avaliação, se por informação deficiente e/ou insuficiente. Os resultados estão à vista e não há volta a dar. O sistema de saúde tem de responder. Não podemos fechar portas. A população que servimos está de olhos postos em nós e nós temos de responder.
O que tem a dizer aos negacionistas da Covid-19 e a quem ainda pensa que “isto é uma gripezinha”?
Quando a evidência não é suficiente, é muito difícil, porque esse tipo de pessoas não muda facilmente, sobretudo quando não quer mudar. Portanto, se a evidência de uma onda assustadora, como aquela que estamos viver, não é suficiente para alguém a aceitar como existente ou válida, então, não há forma de chamarmos essa pessoa a uma realidade que ela não quer ver.
A máscara veio para ficar?
A máscara é um instrumento base de combate à pandemia. A gripe sazonal diminuiu claramente muito à conta das máscaras. Mas continuamos a ter muitas pneumonias virais, agora ligadas ao SARS-CoV2. Também porque o Inverno tem sido duro, frio e húmido, e, com as más condições de habitação que os portugueses têm, a pneumonia e as infecções respiratórias têm uma enorme incidência.
Em 2016, em entrevista ao JORNAL DE LEIRIA, disse que foi o “projecto” que o fez vir para o Centro Hospitalar de Leiria (CHL), deixando o de Santa Maria. Cinco anos depois da mudança, as expectativas que trazia cumpriram-se?
Cumpriram-se e, em alguns pontos, até foram excedidas. Falando do Serviço de Pneumologia, do qual sou director, tínhamos um projecto que foi estabelecido com o Conselho de Administração de então, que passava por criarmos uma unidade de ambulatório de Pneumologia, com excelente qualidade e capacidade de prestação de cuidados. Tivemos depois um financiamento por parte de um industrial da região para a podermos ampliar. Esta é uma região muito dinâmica e solidária, que tem ajudado o hospital. Isso sentiu-se particularmente durante a pandemia, quer na primeira vaga, quer na segunda, com ajuda para a compra de equipamentos e outros apoios.
Ficou surpreendido com essa dinâmica?
Tem sido uma surpresa extraordinária. Neste últimos cinco anos, o hospital evoluiu de uma forma extraordinária. Criou-se um número significativo de novos serviço e houve um incremento da capacidade de resposta assistencial do CHL. A pandemia veio virar do avesso toda esta estratégia. Neste momento, o foco é o combate à Covid e tentar manter o maior equilíbrio possível entre as esferas Covid e não Covid. Os outros doentes não podem ser esquecidos. É absolutamente necessário que cuidemos deles. Estamos a manter toda a actividade da oncologia médica, toda a cirurgia prioritária de tumores, assim como toda a urgência da traumatologia e de cirurgia Mantivemos sempre a unidade de hemodinâmica a funcionar, assim como a Via Verde Coronária e dos AVC.No cenário actual, que não é optimista, o hospital está completamente à superfície e a conseguir dar resposta.
É responsável pela criação do laboratório do sono no CHL. A situação actual afectou-lhe o sono ou consegue descansar quando vai para casa?
Para quem trabalha 12 a 14 horas por dia e já não sabe o que é ter um fim-de-semana há largos meses, chegar ao final da jornada de trabalho e ter sono é fácil. A investigação, uma área de que gosta muito, é, neste momento, um assunto em suspenso. A investigação parou. Tínhamos vários projectos em curso, que lamento que estejam parados, mas, de facto, é não há condições para ser de outra forma.