A sociedade portuguesa tem dificuldade a apreender o que são comportamentos machistas e de violência de género? Ou seja, há práticas tão profundas que, muitas vezes, não conseguimos dar um passo atrás e reconhecê-las?
Acontece com o racismo e com o sexismo. Quando, no Parlamento, o Bloco de Esquerda propôs a medida anti-piropo, muitos acharam disparatado, e dei-me conta que a maior parte dos meus amigos não fazia ideia do que é ser mulher e andar na rua. Tendemos a individualizar as coisas e a colocá-las no registo da moral individual, quando nada disto é moral individual! Isto é, quando alguém diz que uma sociedade é racista, o nosso primeiro instinto é afirmar "eu não sou racista". Não é assim que se distingue se uma pessoa é racista. Uma pessoa branca tem de perceber que "usufrui do privilégio branco". Não digo que todos os homens são machistas, mas um homem, para não o ser, tem de começar por reconhecer os privilégios de que usufrui por ser homem, mesmo que não os procure. É preciso reconhecer que o patriarcado não é individual e, por isso, o sexismo não existe apenas nos homens. O patriarcado é uma estrutura mental, política e social, sobre a qual o capitalismo assenta. O sistema, como está construído, depende do trabalho gratuito feito maioritariamente pelas mulheres; todo aquele trabalho invisível e não pago de reprodução social: o cuidado das crianças, dos idosos ou da casa.
Diz-se muitas vezes a pessoas solteiras: tens de arranjar uma mulher que cuide de ti, tens de arranjar um homem que cuide de ti…
Ainda há dificuldade em conceber que uma mulher possa ser feliz estando solteira. Há diferentes registos de família e não é obrigatório seguir o cânone. Quantas pessoas estão num casamento e se sentem sós? E quantas são solteiras e não estão sozinhas porque têm uma estrutura de amigos, de família que não é apenas de sangue, que lhes permite ter força para enfrentar a vida? Desconstruiu-se, de alguma forma, a norma de que as mulheres "têm que casar". Mas o essencial da velha ideia espreita todos os dias: as mulheres não precisam de casar, mas dificilmente se concebe que podem ser felizes não casando. Somos uma geração de mudança, mas existe ainda uma estrutura que nos tenta amarrar às normas. Existe um modelo de felicidade e família… mas não quer dizer que não podemos reagir. É claro que, nos modelos conservadores de família, as regras são claras. Quando queremos algo que fuja ao cânone, as regras têm de ser negociadas.
A discussão da questão do género pressupõe uma nova concepção daquilo que é o ser-se humano, fora do modelo de binómio masculino-feminino?
O género é uma coisa construída. Há uma frase que é algo assim: "não vou à casa-de-banho das mulheres por ser mulher, sou mulher porque vou à casa-de-banho das mulheres". Se, enquanto crescemos, nos dizem que apenas somos homens ou mulheres, há, desde logo, o sofrimento das pessoas que não se identificam com o género biológico ou com a concepção binária de género. Há ainda a ideia de que as questões da transsexualidade são casos aberrantes ou situações muito específicas e de um grupo muito reduzido da população… Isso está errado! A nossa sexualidade é mais fluída do que aquilo que acreditamos. Temos de aceitar concepções mais amplas daquilo que é um ser humano. Idealmente, deveríamos incentivar que as pessoas fossem aquilo que quisessem, que se pudessem vestir e identificar com o que quisessem, sem terem de estar constantemente a reagir e a responder ao que é definido como normal. Admiro todos os homens e todas as mulheres trans que se afirmam nessa diversidade. Quando o fazem, melhoram colectivamente a sociedade. Quantos mais e mais diversos pontos de vista houver na sociedade, mais saudável e mais rica ela será. Está na hora de se parar de morrer por se ser fora da norma.
Leia aqui a segunda parte da entrevista:
“Temos de desconstruir a imagem de que não somos um país racista e que temos ‘brandos costumes’”
Direitos das mulheres das minorias, migrações, racismo, xenofobia, questões de género são coisas que devem ser abordadas, desde cedo, nas escolas?
Acredito que sim. Trabalho, aqui no CES [Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra], com o professor Boaventura de Sousa Santos tos e com um grupo de colegas, a partir de uma proposta epistemológica, que é também uma proposta de intervenção nas sociedades, que se chama Epistemologias do Sul. Nessa proposta, Boaventura identifica três formas principais de opressão e uma delas é o patriarcado e toda a opressão que daí resulta, não apenas contra as mulheres, mas contra quem foge aos papéis de género considerados "normais". A “masculinidade tóxica” também afecta os homens. Quando falamos que o patriarcado destina às mulheres um papel de sujeição, de silêncio, não significa que os homens não sofram também a violência que essa forma hegemónica de “ser e comportar-se como um homem” lhes inflige… Que o homem não sofra também a violência do homem. "Um homem não [LER_MAIS] chora, não pode exibir emoções, tem de ser forte, tem de provar que é sexualmente activo…" Há toda uma série de violências que acontecem também contra os homens, que mais tarde, podem vir a traduzir-se em manifestações violentas de poder, porque têm de estar, constantemente, a provar qualquer coisa. Estas questões têm de ser discutidas nas escolas, porque acontecem desde muito cedo. O meu sobrinho não aprendeu em casa a rigidez dos papéis de género. Nunca houve aquela coisa do rosa para as meninas e o azul só para os meninos. Jamais me esquecerei do dia em que a minha irmã lhe comprou uma escova de dentes e ele, com cinco anos, disse que não podia levar os amigos da escola lá a casa. "Porque eles vão ver que tenho uma escova de dentes corde- rosa." Isto vem também da escola! Se sabemos que estas coisas são construídas desde muito cedo, por que não começamos também a conversá-las e a desconstrui-las desde muito cedo?
E quem irá falar e ensinar os mais novos? Serão os professores que foram educados dentro destas construções sociais? E quando as crianças chegam a casa e se deparam com as construções dos pais?
Nada disto é fácil. Acredito na construção de uma sociedade não patriarcal, não capitalista e não colonialista – seguindo os três eixos de opressão que as Epistemologias do Sul identificam. É óbvio que isto é uma utopia! Mas enquanto não a tivermos como sonho, ela jamais irá acontecer. As utopias – não sou eu que o digo – são o "ainda não". Precisamos de utopias fortes para não ficarmos acomodados no cinismo. Se nos adaptarmos ao possível, abdicamos de qualquer papel ou responsabilidade. Até podemos fazer formação de professores e educadores e eles podem desconstruir os preconceitos, porém, quando os miúdos vão para casa, os pais ficam desagradados. Recordo-me de discussões familiares por causa dos brinquedos para as crianças no Natal. Acredito que chegámos longe nesse esforço. Hoje, é relativamente fácil aceitar que uma menina brinque com um carro de bombeiros, mas quantos pais aceitam um filho brincar com uma boneca? Os rapazes deveriam brincar com bonecas, também eles deviam desenvolver o seu potencial para o cuidado desde cedo. Quando há várias crianças juntas e as meninas pegam nas bonecas e os meninos pegam nos brinquedos classificados como masculinos, há sempre quem diga: "vês? É genético!" Não é! É apreendido desde o primeiro momento de vida. Mal a criança sai da barriga da mãe, estão a pôr-lhe um fatinho rosa ou azul, em função dos seus órgãos genitais! É como aprender a falar. As crianças aprendem uma quantidade de informação gigante num espaço de tempo muito pequeno e se, até aos dez anos, lhes ensinarem dez línguas elas aprendem-nas sem dificuldades, imaginem a absorção que fazem daquilo que é a norma e do que é o desvio da norma.
Basta observarem os adultos.
A minha sobrinha de quatro anos está fascinada com as princesas. Não lhe digo que as princesas não prestam. Tentamos mostrar-lhe outros modelos de heroínas. Mas isto é difícil de combater quando todo o seu universo – os desenhos animados, as amigas, a escola – lhe diz outra coisa. É um processo que vai levar gerações. Nós, aqui no CES, temos um projecto chamado O CES Vai À Escola e vamos aos estabelecimentos de ensino do secundário e básico… Por exemplo, o projecto Intimate aborda as questões da intimidade a partir das margens das prioridades políticas. Há projectos que abordam a questão do racismo e da memória colonial, mostrando o outro lado da narrativa glorificadora da expansão colonial. Tem sido uma actividade de sucesso, que o CES pretende continuar. Já fui à Escola Secundária Domingos Sequeira, em Leiria, levar algumas destas questões para trabalhar com os estudantes, convidada por Elsa Margarida Rodrigues que é lá professora de Filosofia. Levei o projecto Alice, onde pensámos a Democracia, os Direitos Humanos e a Economia a partir de concepções alternativas, a partir dos territórios que foram colonizados e de saberes que foram desvalorizados pelo Ocidente. Os miúdos têm interesse em ideias diferentes e gostam de desconstruir, mas é preciso haver vontade para fazer. É por isto que me preocupa muito que os professores sejam uma classe descontente. Deveria preocupar-nos a todos. Precisamos de docentes do ensino público motivados para educar cidadãos e cidadãs, para ensinarem algo mais do que ter sucesso num exame. Temos de educar cidadãos e cidadãs para que não votem no primeiro Bolsonaro que lhes aparece, por não serem capazes de questionar mentiras veiculadas como notícias e desconstruir argumentos demagógicos.